1. O produtor rural
antes da reforma tributária
Embora a nossa
pretensão seja tratar da posição jurídica do produtor rural (física ou
jurídica) em razão das alterações promovidas pela reforma tributária, a partir
da Emenda Constitucional nº 132/2023 e regulamentação pela Lei Complementar nº
214/25, é preciso contextualizar o regime atual.
Neste sentido, sob a
perspectiva da tributação estadual sobre o consumo, temos o ICMS (artigo 155,
II, CF - LC nº 87/96), onde o produtor rural (física ou jurídica) é
contribuinte, uma vez que exerce com habitualidade a venda de mercadorias, ou
seja, realiza a comercialização dos produtos agropecuários, fruto de sua
produção agrícola ou pecuária. Por ser um tributo estadual, em cada Estado que
explorar a atividade rural, terá um estabelecimento com respectiva inscrição
estadual a fim de apurar o respectivo imposto. Vale lembrar que o ICMS é não
cumulativo, cabendo dentro desta apuração, abater eventuais créditos,
estornando-os, no entanto, nas saídas isentas ou não tributadas, salvo se
houver alguma legislação em sentido contrário [1].
A tributação do
ICMS, no entanto, para os produtores rurais, em geral, nos estados, recebe
tratamento favorecido e diferenciado, por meio da concessão de isenção, redução
de base de cálculo, crédito presumido/outorgado ou mesmo diferimento,
especialmente, com fundamento em convênios do Confaz, de tal maneira que,
embora contribuintes, não é comum o recolhimento deste imposto nesta etapa da
cadeia por eles.
De outro lado, sob a
perspectiva da tributação do consumo pela União, temos as contribuições do
PIS/Pasep e Cofins (artigo 149, 195, CF; Leis 9.718/98, 10.637/2002 e
10.833/2003; IN 2.121/22), exigidas sobre a receita bruta ou faturamento, por
meio dos regimes cumulativo ou não cumulativo, tendo como contribuinte a pessoa
jurídica. Com isso, sabendo que a maior parte (acima de 90%) atua como pessoa
física, tais contribuições atingem uma menor parcela de produtores rurais que
exercem a atividade na pessoa jurídica, embora esta pequena parcela possa
representar uma grande parte da produção rural nacional.
Sob a perspectiva
dos produtores rurais pessoas jurídicas, quanto ao PIS/Cofins, a legislação
também oferece um regime de tributação diferenciada e favorecida em diversas
hipóteses. Nesse sentido, temos a alíquota zero para diversos insumos
agrícolas, alimentos, frutas, hortícolas (artigo 1º, da Lei nº 10.925/2004;
artigo 28, III, da Lei nº 10.865/204), bem como a suspensão na venda de
produtos agropecuários utilizados como insumo na produção agroindustrial (Leis
nº 10.925/2004; artigo 8º e 9º; Lei nº 12.058/2009; Lei nº 12.350/2010; Lei
12.341/2011; Lei nº 12.599/2012; Lei nº 12.839/2013, entre outras). Por sua
vez, as operações por produtores rurais pessoas físicas ou jurídica com
suspensão, em geral, atribuem aos adquirentes (contribuintes) o direito a um
crédito presumido de PIS/Cofins, a fim de observar a não cumulatividade [2]. Vale lembrar, ainda, que o produtor rural pessoa
jurídica, no regime não cumulativo de PIS/Cofins, poderá gozar de créditos
básicos, a serem utilizados para abatimento de referidos tributos ou mesmo
ressarcimento/compensação quando do acúmulo, nas saídas com alíquota zero,
suspensão, isenção ou imunidade, embora algumas legislações determinem o
estorno.
Vê-se, portanto,
que, em verdade, na prática, o produtor rural pessoa física na tributação sobre
o consumo atual, não recolhe tais tributos, uma vez que o ICMS é normalmente
exonerado e não é contribuinte de PIS/Cofins. De outro lado, a situação não se
altera muito quando temos uma pessoa jurídica, na medida em que o ICMS continua
exonerado e o PIS/Cofins, na maioria das operações, tem tributação à alíquota
zero ou suspensão, permitindo, em algumas hipóteses, no regime não cumulativo a
manutenção de créditos e ressarcimento/compensação [3].
Diante deste
contexto, o que muda para o produtor rural com a reforma tributária?
2. A reforma
tributária: IBS/CBS e o produtor rural
A reforma tributária
sobre o consumo, por meio da Emenda Constitucional n. 132/23, bem como a Lei
Complementar n. 214/25, extingue os tributos PIS/Cofins e ICMS, trazendo em
substituição a CBS, da União, e, o IBS (estados/municípios/DF). Mas não se
trata de simples alteração de nomenclatura, havendo mudanças relevantes no
regime jurídico tributário para o produtor rural (pessoa física e jurídica).
Como ponto de
partida, é certo que o produtor rural (física e jurídica) não será contribuinte
do IBS/CBS, quando auferir receita bruta inferior a R$ 3,6 milhões no
ano-calendário ou quando for integrado [4].
Nesta hipótese, já
surgem alguns aspectos a serem analisados: (1) - a receita bruta será avaliada
sob regime de caixa ou competência? Ou teremos para pessoa física o regime de
caixa e para pessoa jurídica de competência? (2) - o que comporá esta receita
bruta? Todas as receitas do produtor rural ou somente aquela que seja
decorrente do exercício da atividade rural, nos termos do artigo 2º, da Lei nº
8.023/90?; (3) - venda com entrega futura, como ficará? (4) - e os
adiantamentos? (5) - por sua vez, o produtor rural com contrato de integração
também o torna não contribuinte, no entanto, ele pode, ao mesmo tempo, além
desta operação, ter outras propriedades rurais exploradas economicamente por
outras modalidades de negócio como arrendamento e parceria, neste caso, com
seria? Continuaria a não ser contribuinte para todas as receitas? Ou somente da
integração? Ele seria então não contribuinte e contribuinte ao mesmo tempo?
Como seria a questão dos créditos decorrentes da não cumulatividade nesta
hipótese?
Ademais, estabelece
o artigo 164, § 6º, da Lei Complementar nº 214/2025, uma norma antielisiva, ao
enunciar que "Caso o produtor rural, pessoa física ou jurídica, tenha
participação societária em outra pessoa jurídica que desenvolva atividade
agropecuária, o limite previsto no caput deste artigo será verificado em
relação à soma das receitas auferidas no ano-calendário por todas essas
pessoas". Pretende esta previsão legal impedir que o produtor rural, talvez,
segmente, de forma simulada, a receita bruta entre a pessoa física e uma ou
mais pessoas jurídicas a fim de se manter como não contribuinte do IBS/CBS.
Todavia, muitos aspectos nos parecem merecer análise e solução: (1) - mas,
qualquer participação societária geraria a aplicação deste dispositivo?; (2) -
a soma seria somente no tocante às receitas agropecuárias?; (3) -
eventualmente, a soma levaria em consideração a participação societária ou
divisão de receitas decorrentes da atividade agropecuária? (4) - receita de
contrato de integração entraria neste cômputo, tendo em vista que, de antemão,
já estaria excluída para fins de reconhecimento do produtor não contribuinte?
(5) - se uma das partes forem contribuintes de IBS/CBS, as receitas serão
levadas em consideração?
Ainda quanto ao
produtor rural não contribuinte, outro reflexo relevante seria o fato de que,
apesar de não recolher IBS/CBS, ao fornecer bens e serviços, irá gerar crédito
presumido aos adquirentes - contribuintes - [5].
Este aspecto será muito relevante e, apesar de o crédito presumido ser para o
adquirente na cadeia posterior, caberá ao produtor rural ficar atento, uma vez
que, se não for em patamar adequado, poderá gerar uma preferência por aqueles
produtores que sejam contribuintes, obrigando, até mesmo, a migrar para a regra
geral do IBS/CBS, diante da opção que possui [6].
Para tornar mais
complexa a questão, ainda, quanto ao produtor rural não contribuinte, prevê o
artigo 138, § 2º, I, "b", o diferimento no fornecimento de insumo agropecuários
e aquícolas, porém, "somente será aplicado sobre a parcela de insumos utilizada
pelo produtor rural não contribuinte do IBS e da CBS na produção de bem vendido
para adquirentes que têm direito à apropriação dos créditos presumidos" (artigo
138, § 3º), sendo que este regime encerrado mediante "a redução do valor dos
créditos presumidos de IBS e de CBS" (artigo 168, § 9º, I).
Enfim, lembramos que
haverá alíquota zero de IBS/CBS para fornecimento e importação de tratores,
máquinas e implementos agrícolas para produtores não contribuintes (artigo 110,
I, LC 214/25).
De outro lado, os
produtores rurais (pessoa física ou jurídica) poderão, por opção ou pela regra
da obrigatoriedade, serem contribuintes de IBS/CBS.
Nesta hipótese, o
primeiro passo é atentar ao regime diferenciado (artigo 126, LC 214/25),
sobretudo a redução da alíquota em 60%: (1) - incidentes sobre o fornecimento
dos alimentos destinados ao consumo humano relacionados no Anexo VII desta Lei
Complementar, com a especificação das respectivas classificações da NCM/SH
(artigo 135); (2) - incidentes sobre o fornecimento de produtos agropecuários,
aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura (artigo
137) [7]; (3) - incidentes sobre o fornecimento dos
insumos agropecuários e aquícolas relacionados no Anexo IX desta Lei
Complementar, com a especificação das respectivas classificações da NCM/SH e da
NBS (artigo 138).
Além disso, teremos
os produtos tributados à alíquota zero de IBS/CBS, que comporão a cesta básica
nacional de alimentos (artigo 125) [8], que incluem
no rol os produtos hortícolas, frutas e ovos (artigo 143, V; artigo 148 [9]).
Possível notar que,
em comparação ao regime de tributação anterior pelo ICMS e PIS/Cofins, onde
exação fiscal quase não existia, por não ser contribuinte, ou diante de
isenções, redução de base, crédito presumido, alíquota zero, no IBS/CBS, sendo
o produtor rural contribuinte, em geral, excluída as hipóteses específicas de alíquota
zero (cesta básica), a operação sofrerá tributação, embora com a redução na
alíquota.
A outra importante
alteração se dá, para o produto rural contribuinte, quanto à possibilidade de
apuração de créditos decorrentes da não cumulatividade [10],
de tal sorte que todos os bens (materiais e imateriais), serviços e demais
direitos utilizados na atividade econômica agrossivilpastoris, tais como ativos
em geral (máquinas, equipamentos, computadores, drones, veículos, implementos,
entre outros), insumos (fertilizantes, adubos, corretivos, bioestimulantes,
sementes, entre outros), energia elétrica, combustível, serviços em geral
(contabilidade, agronomia, auditoria, jurídico, RH, manutenções, TI, segurança,
limpeza, etc), embalagens, frete, seguro, arrendamento de imóvel, armazenagem,
entre outros, desde que exista o destaque IBS/CBS e sua idoneidade, gerarão
crédito para abatimento no fornecimento de bens e serviços [11]. Ademais, havendo acúmulo poderá ser
restituído/ressarcido [12].
Ainda a respeito das
aquisições, no caso de produtor rural contribuinte, poderá adquirir insumos com
diferimento de IBS/CBS, melhorando, em tese, seu fluxo de caixa (artigo 138, §
2º, I, "a"), o qual será encerrado caso "o fornecimento do insumo agropecuário
e aquícola, ou do produto deles resultante: a) não esteja alcançado pelo
diferimento; ou b) seja isento, não tributado, inclusive em razão de suspensão
do pagamento, ou sujeito à alíquota zero", ou "a operação seja realizada sem
emissão do documento fiscal", de tal sorte que os tributos serão recolhidos
pelo "contribuinte que promover a operação que encerrar a fase do diferimento,
ainda que não tributada" (artigo 138, § 6º).
3. Considerações
finais
Sem pretender
esgotar a análise das mudanças decorrentes da reforma tributária e a criação do
IBS/CBS para o produtor rural, neste breve texto resta claro que teremos
alterações relevantes que exigirão um maior conhecimento técnico de gestão,
controles, assessoriais, seja contribuinte ou não.
Acesse outros artigos e matérias sobre a Reforma
Tributária, clicando em https://www.mmcontabilidade.com.br/Materia.aspx?id=23939
[1] - Art. 155,
II, § 2º, I e II, CF. Vale lembrar, ainda, do disposto no art. 20, LC 87/96: "§
6º Operações tributadas, posteriores a saídas de que trata o § 3º, dão ao
estabelecimento que as praticar direito a creditar-se do imposto cobrado nas
operações anteriores às isentas ou não tributadas sempre que a saída isenta ou
não tributada seja relativa a: I - produtos agropecuários;".
[2] - V. IN
2.121/22.
[3] - Embora
não recolha tributos nestas operações, não significa que, efetivamente, não
suporta a carga fiscal do sistema tributário, na medida em que existem resíduos
que advém de toda a cadeia produtiva.
[4] - Art. 26,
VI; art. 164, LC 214/25.
[5] Art. 168,
LC 214/2025.
[6] Art. 165,
LC 214/2025.
[7] "Art. 137:
§ 1º Considera-se in natura o produto tal como se encontra na
natureza, que não tenha sido submetido a nenhum processo de industrialização
nem seja acondicionado em embalagem de apresentação, não perdendo essa condição
o que apenas tiver sido submetido: I - a secagem, limpeza, debulha de grãos ou
descaroçamento; e II - a congelamento, resfriamento ou simples
acondicionamento, quando esses procedimentos se destinem apenas ao transporte,
ao armazenamento ou à exposição para venda."
[8] - "Art.
125. Ficam reduzidas a zero as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre
as vendas de produtos destinados à alimentação humana relacionados no Anexo I
desta Lei Complementar, com a especificação das respectivas classificações da
NCM/SH, que compõem a Cesta Básica Nacional de Alimentos, criada nos termos
do art. 8º da Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023. Parágrafo
único. Aplica-se o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 126 desta Lei Complementar
às reduções de alíquotas de que trata o caput deste artigo."
[9] - "Art.
148. Ficam reduzidas a zero as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre
o fornecimento dos produtos hortícolas, frutas e ovos relacionados no Anexo XV
desta Lei Complementar, com a especificação das respectivas classificações da
NCM/SH. Parágrafo único. Os produtos mencionados no caput deste
artigo, observadas as regras de classificação da NCM/SH, podem apresentar-se
inteiros, cortados em fatias ou em pedaços, ralados, torneados, descascados,
desfolhados, lavados, higienizados, embalados, frescos, resfriados ou
congelados, mesmo que misturados".
[10] Art.
156-A, § 1º, VIII, CF: "VIII - será não cumulativo, compensando-se o imposto
devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas
quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de
serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal
especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição;".
[11] - Importante
atentar aos fornecedores do Simples Nacional, não contribuintes, bem como
hipóteses de alíquota zero, suspensão, isenção, entre outros.
[12] - Arts. 39
e 40, LC 214/25.
Autor: Fábio Pallaretti Calcini. É doutor e mestre em
Direito do Estado pela PUC-SP, ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais (Carf), professor da FGV Direito SP e Ibet, sócio tributarista Brasil
Salomão e Matthes Advocacia.