Vem causando
bastante polêmica a tramitação de projeto de lei visando a alteração do art. 20
do Código Civil, a fim de permitir a publicação de biografias não autorizadas
de pessoas públicas. De acordo com a redação atual da lei, biografias podem ser
proibidas pelos interessados, por exemplo, quando se destinarem a "fins
comerciais". A modificação proposta dispensa a autorização quando forem
retratadas pessoas "cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha
dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da
coletividade.".
Sem sombra
de dúvida, mesmo se aprovada a modificação legislativa em trâmite, a atividade
dos autores e das editoras estará exposta a um risco muito maior se não houver
autorização do biografado. Isso porque o objetivo comercial das publicações
depende diretamente da divulgação de questões íntimas das pessoas públicas
retratadas que elas, muitas vezes, não têm interesse em divulgar.
Consequentemente, qualquer interessado que for atingido na esfera da sua intimidade,
pela divulgação de fato falso ou verdadeiro, terá o direito de pedir
judicialmente a apreensão dos escritos, bem como as perdas e danos
correspondentes. Vale dizer, quem não pedir autorização do biografado estará
sujeito ao risco de demandas judiciais e a toda a sorte de incertezas que elas
acarretam, inclusive relacionadas à demora no desfecho dos processos.
A
Constituição Federal assegura no seu art. 220 a liberdade de manifestação de
pensamento. Entretanto, nosso sistema constitucional de pesos e contrapesos não
dá lugar a liberdades absolutas. Ao mesmo tempo em que assegura a liberdade de
manifestação de pensamento, a Constituição Federal: veda o anonimato; assegura
o direito de resposta e a indenização por danos patrimoniais e morais; protege
a intimidade, a vida privada, a honra, a imagem das pessoas, etc.. Quem dá os
limites ao exercício da liberdade de manifestação de pensamento, no primeiro
plano, é a Constituição Federal, com as particularidades das leis
infraconstitucionais.
O objetivo dessa
alteração legislativa é dar maior segurança àqueles que publicarem biografias
de pessoas públicas, com fins comerciais, sem autorização prévia dos
interessados. Esse propósito, a nosso ver, não será atingido, porque os abusos
e os excessos, que certamente ocorrerão, continuarão sendo alvo da reprimenda
constitucional e dependendo das decisões dos juízes e dos Tribunais, a quem
compete avaliar, caso a caso, o descumprimento da Constituição Federal e da
lei.
É certo que
pessoas públicas têm proteção jurídica débil, mercê da grande exposição que
assumiram perante a população em geral, em virtude da sua profissão, da
carreira política, da assunção de cargos e funções na administração pública ou
mesmo do convívio social. Essa proteção jurídica mais tênue, contudo, não
concede a quem quer que seja o direito de devassar a esfera da intimidade
alheia, protegida no plano constitucional.
A liberdade
de expressão e a dispensa de autorização, tratada na modificação legislativa
proposta, asseguram o direito pleno de divulgar informações banais,
corriqueiras e já de domínio público a respeito das pessoas notórias. O
trivial, o banal e aquilo que já se conhece, contudo, não atendem aos objetivos
puramente comerciais dos autores e das editoras.
O interesse
público estaria a justificar apenas a divulgação de fatos relevantes da esfera
pública das pessoas notórias, como o modo de se vestir, de se alimentar, de se
portar socialmente, de atuar na profissão, na carreira política, o modo de
exercer de tratar os subordinados, etc.. Quem professa publicamente a
simplicidade, por exemplo, não pode gastar fortunas na vida privada de forma
oculta. Aquele que posiciona na mídia como defensor das mulheres não pode bater
na própria mulher, sem a divulgação correspondente. Quem tem imagem pública
ligada à saúde não pode fazer uso de substâncias ilícitas e exigir que isso não
venha a público. A divulgação do fato independentemente de autorização só se
justificará quando for relacionada à postura da pessoa pública na sociedade. O
uso de maconha por nadador olímpico e recordista mundial é fato de interesse
público, que dispensa autorização para a sua divulgação.
A divulgação
de fatos históricos igualmente está assegurada pela lei, com seus protagonistas
e participantes.
Assim como a
liberdade de expressão tem limites, a dispensa da autorização para a publicação
de biografias não trará aos autores e às editoras a proteção que eles almejam.
Isso porque as informações de cunho íntimo, reservadas pelas pessoas para si
mesmas ou apenas para os convivas de seu círculo mais íntimo, continuarão
protegidas pela Constituição Federal. Pensar o contrário implicaria em
prestigiar o vazamento clandestino de informações, muitas vezes decorrente da
quebra de confiança e de remuneração por parte daquele que obteve a informação
íntima.
Caberá
sempre ao Judiciário reprimir os abusos e os excessos, após as publicações
posto que vedada a censura prévia.
A alteração
legislativa não prestigiará o direito de fuxicar a vida alheia, tendo em vista
que sua interpretação deve ser sistêmica, tendo sempre presente o norte
constitucional. A autorização será dispensada apenas em relação à faceta
pública da pessoa notória, que continuará tendo direito à preservação de sua
intimidade. Informações íntimas dependerão da autorização do biografado, ainda
que tácita decorrente, por exemplo, da sua divulgação pública anterior pelo
interessado. Recomenda-se àqueles que não querem correr o risco de apreensões e
de longas demandas judiciais que continuem pedindo prévia autorização, ainda
que dispensável.
Por Arthur Rollo