As
operadoras de planos de saúde conseguiram aquilo que as instituições
financeiras tentaram sem sucesso, que foi afastar a incidência do Código de
Defesa do Consumidor aos seus contratos. Por incrível que possa parecer,
decorre do disposto no art. 35-G da Lei n° 9656/98 a aplicação subsidiária do
Código apenas àqueles contratos estabelecidos "entre usuários e operadores de
produtos".
Como é
notório, a imensa maioria das operadoras de planos de saúde só oferece no
mercado planos de saúde coletivos, intermediados por entidades de classe,
empresas empregadoras e por administradoras de benefícios. Essa intermediação
descarta, segundo a lei, a aplicação mesmo subsidiária do Código de Defesa do
Consumidor aos contratos coletivos de planos de saúde.
As
operadoras aperceberam-se das brechas legais e da falta de proteção dos
contratantes nos planos coletivos e passaram a não firmar mais contratos
individuais ou familiares. Segundo números oficiais da ANS, os consumidores de
planos coletivos empresariais cresceram de 6,1 milhões, em março de 2000, para
33,8 milhões, em março de 2015. Em contrapartida, os consumidores dos planos
individuais ou familiares cresceram apenas de 4,7 milhões para 10 milhões no
mesmo período, praticamente o mesmo crescimento experimentado no número de
consumidores dos planos coletivos por adesão, de 3,0 milhões em março de 2000,
para 6,7 milhões em março de 2015.
A tendência
de crescimento dos planos coletivos empresariais superou o dobro do crescimento
do número de contratantes de planos privados de assistência à saúde, no mesmo
período. Muitos contratantes de planos individuais e familiares, sob a enganosa
alegação de preços mais baratos, acabaram alterando seus contratos para
coletivos. Contratos tipicamente familiares, que abarcam três a quatro vidas de
uma mesma família, estão sendo disfarçados como coletivos empresariais.
De acordo
com os números da ANS, em 2014 mais de quarenta milhões de usuários eram
contratantes de planos coletivos enquanto que apenas dez milhões eram
contratantes de planos individuais ou familiares. A proporção já era de um
usuário de plano individual para quatro usuários de planos coletivos, com
tendência de diminuição do primeiro grupo e de crescimento do segundo grupo.
A
inoperância da ANS e as brechas propositalmente inseridas na lei pelos planos
de saúde já deixam desprotegidos mais de quarenta milhões de consumidores
brasileiros, que podem ter seus contratos rescindidos unilateralmente, sofrer
reajustes abusivos porque não limitados pela ANS e diminuições da rede
credenciada, a partir de simples negociação com a pessoa jurídica que
intermediou os contratos coletivos firmados pelos consumidores.
O parágrafo
único do art. 13 da Lei n° 9656/98 veda a recontagem de carências, a suspensão
e a rescisão unilateral dos contratos de planos de saúde individuais ou
familiares, deixando sujeitos a essas arbitrariedades por parte das operadoras
de planos de saúde os contratantes dos planos coletivos.
O parágrafo
único do art. 16 da Lei n° 9656/98 assegura a obtenção de cópia do contrato, do
regulamento e das condições gerais apenas aos contratantes de planos
individuais ou familiares. Vale dizer, os contratantes de planos de saúde
coletivos não têm assegurado o direito básico à informação consagrado pelo art.
6º, III do Código do Consumidor.
O art. 35-E
da Lei n° 9656/98, no seu inciso III, veda a suspensão ou rescisão unilateral
apenas dos contratos individuais ou familiares, sendo que o parágrafo 2º desse
artigo sujeita à prévia aprovação da ANS apenas os reajustes dos planos
individuais e familiares.
A falta de
proteção dos contratantes de planos coletivos vem levando a inúmeras práticas
abusivas, que acabam tendo que ser corrigidas no Judiciário. O Conselho Nacional
de Justiça já identificou a litigiosidade envolvendo planos de saúde como um
problema, a ponto do TJ-SP criar uma câmara temática visando reduzir o número
desses conflitos. A despeito da judicialização já ser insuportável, está sendo
cogitada a liberação dos reajustes também dos planos de saúde individuais. Se
isso acontecer, a exemplo do que já ocorre com os planos coletivos, muitos
consumidores serão expulsos indiretamente pela impossibilidade do pagamento das
mensalidades ou passarão a contratar planos mais baratos, com menor cobertura.
A diminuição
do número de usuários de planos de saúde repercute diretamente nas políticas de
saúde pública, porque quem não tem acesso à saúde privada acaba sendo atendido
pelo SUS. Assim como uma quebradeira dos planos de saúde pode inviabilizar a
saúde pública, reajustes abusivos também podem inchar o já combalido sistema
público de saúde.
Não é demais
lembrar que saúde é um dos pressupostos da dignidade da pessoa humana, eleita
como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil pelo artigo 1º da
Constituição Federal. Sem tratamento de saúde adequado não existe vida digna.
Muitos, infelizmente, não têm acesso a tratamentos de saúde adequados e quem
tem, em um futuro próximo, deixará de ter, em virtude de discriminações
ilícitas entre usuários de planos de saúde individuais e coletivos criadas pela
própria Lei n° 9656/98.
Consumidor,
nos termos do art. 2º, "caput" da Lei n° 8078/90 é quem adquire ou utiliza
produto ou serviço como destinatário final. Nesse sentido os contratantes de
planos coletivos também ostentam claramente a condição de consumidores, porque
utilizam diretamente os serviços prestados pelas operadoras. A relação é
indireta apenas na forma de contratação e de pagamento, sendo direta em relação
à utilização. Negar a condição de consumidores dos usuários de planos
coletivos, portanto, é uma falácia que apenas aproveita aos contratantes mais
fortes dessa relação, que são as operadoras de planos de saúde.
Ademais
disso, nada justifica sob o prisma constitucional a distinção de tratamento
operada pela Lei n° 9656/98 entre contratos de planos de saúde individuais e
coletivos. O serviço se não é o mesmo é muito semelhante e a condição jurídica
dos usuários é rigorosamente a mesma. Sem falar que o art. 5º, XXXII da
Constituição Federal coloca a defesa do consumidor como um direito fundamental,
protegido por cláusula pétrea inclusive.
Qualquer lei
que restrinja direitos de consumidores típicos é inconstitucional e assim deve
ser reconhecida. Não há porquê diminuir os direitos dos contratantes dos planos
coletivos em relação aos direitos dos contratantes dos planos individuais. A
vulnerabilidade e a necessidade dos serviços é a mesma. Reajustes de planos
coletivos sempre são "negociados" com as pessoas jurídicas que representam os
consumidores sob a ameaça de rescisão unilateral dos contratos. Rescindido o
contrato com a pessoa jurídica milhares e milhares de consumidores ficarão sem
acesso à saúde privada, tendo que contratar novos planos de saúde, com
recontagem de carências.
Está mais do
que na hora dos operadores do direito refletirem sobre a questão dos planos coletivos
no Brasil e passarem a enfrentar as práticas abusivas nos contratos coletivos
de planos de saúde à luz do Código de Defesa do Consumidor, impedindo reajustes
exagerados, rescisões unilaterais de contratos que deixam na rua consumidores
doentes e diminuições das coberturas contratuais, que configuram também forma
de aumento indireto dos planos de saúde, porque paga-se o mesmo por um serviço
de qualidade bastante inferior. Não temos dúvida de que essas distinções
operadas pela Lei n° 9656/98 são inconstitucionais e assim devem ser
reconhecidas, em sede de ADI no controle concentrado de constitucionalidade, ou
incidentalmente nos processos no controle difuso de constitucionalidade.
Por Arthur Rollo