O consumidor é vulnerável por presunção constitucional absoluta,
conforme art. 5º, LV da Constituição Federal. Essa vulnerabilidade, segundo a
doutrina, classifica-se em técnica, econômica e jurídica. É técnica porque o
fornecedor detém as informações dos produtos e dos serviços que coloca no
mercado e também estabelece as condições de sua comercialização. É econômica
porque o fornecedor quase sempre detém poderio econômico muito superior àquele
de seus consumidores. É jurídica porque os fornecedores dispõem de
departamentos jurídicos altamente especializados e segmentados para seus ramos
de atividade, enquanto que o consumidor procura advogados "generalistas" que,
não raro, não aprofundaram o estudo do direito do consumidor.
Mesmo nesse cenário de vulnerabilidade extrema e evidente, há quem
defenda a desnecessidade da proteção do consumidor. Hoje se fala em
auto-regulamentação para todos os setores, como se o nível de consciência
social das empresas estivesse excelente, e em mínima ou nenhuma intervenção do
Estado, remontando aos tempos do liberalismo econômico e do laisser
faire e laisser passer. Há também aqueles que dizem que o
consumidor está empoderado pela internet e pelas redes sociais e que, por isso,
não mais necessita da proteção do Estado.
Sábio foi o constituinte de 1988 ao inserir o direito do
consumidor dentre os direitos e garantias fundamentais e ao protegê-lo por
cláusula pétrea. Não fosse isso, certamente algum luminar, defensor do "mercado
moderno", sugeriria tirar o direito do consumidor da Constituição Federal. Não
é exagero ante a recente transformação, inconstitucional registre-se, da
Secretaria Nacional do Consumidor em Secretaria Nacional das Relações de
Consumo, Decreto nº 9.360 de 2018, defendida inclusive publicamente pelo
Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor em reportagem de "O Globo".
A nosso ver, a vulnerabilidade do consumidor, ao menos no Brasil,
está mais exacerbada do que nunca. Primeiro, diante do cenário político e do
cenário econômico. Infelizmente, tem muita empresa ainda que pensa que a
solução para seus problemas econômicos está na retirada dos direitos dos
consumidores. Isso como se seus proprietários e executivos não fossem
igualmente consumidores de um sem número de outros produtos e outros serviços.
É mais do que óbvio que o retrocesso nos direitos dos consumidores em um setor
repercutirá em diversos outros setores do mercado. Nesse sentido, retroceder
nesses direitos pode melhorar imediatamente o desempenho econômico da empresa,
mas, de outro lado, representará uma série de consequências para os empresários
e executivos nas suas vidas pessoais, sobretudo quando forem idosos e já
tiverem sido descartados pelas empresas que defendem, inclusive contrariando
pilares constitucionais.
Proteger os consumidores dos excessos do mercado é, sobretudo,
defender a sociedade. O bom capitalismo coexiste com a defesa do consumidor,
porque os bons empresários e as boas empresas colocam os consumidores no centro
de seus negócios e usam a excelência de atendimento como estratégia para atrair
mais consumidores e gerar mais lucro.
Se existe intervencionismo exagerado do Estado certamente não é na
defesa do consumidor. Hoje os impostos confiscatórios e a falta de devolução
para a população em bens e serviços é o principal problema. O empresário gasta
com impostos, com segurança, com plano de saúde para seus funcionários e tudo
isso ocorre num cenário de incertezas econômicas e políticas.
Como se diz popularmente, a corda sempre arrebenta do lado mais
fraco. Como o Estado não consegue reduzir sua ineficiência administrativa e os
gastos públicos, não consegue cortar impostos e acaba compensando o mercado com
a redução de direitos que impactam suas atividades. Isso começou com os
direitos trabalhistas, com a reforma que reduziu direitos há muito assegurados,
e agora o foco recai sobre os consumidores, igualmente vulneráveis.
Segundo, diante das relações, muitas vezes espúrias, entre
empresários, empresas e o Governo. Tais relações espúrias, no Brasil, são
conhecidas desde o Império mas, mais recentemente, vieram à tona com a operação
Lavajato e com diversas outras operações desencadeadas pela Polícia Federal,
que mostraram que más empresas e maus empresários buscaram facilidades no
Governo em troca de benefícios diversos, por exemplo, em contratos com o poder
público, na edição de medidas provisórias, decretos e regulamentos que
favorecessem suas atividades.
Terceiro, resultante da soma dos dois primeiros fatores, existe hoje um
sem número de propostas legislativas em trâmite que podem prejudicar muito a
vida dos consumidores brasileiros, tornando o mandamento constitucional da
proteção do vulnerável da relação de consumo praticamente letra morta.
Já foi aprovado na Câmara dos Deputados o texto base da mudança do
sistema do cadastro positivo do atual "opt in" para o futuro "opt out". Na
prática, todos os cerca de duzentos milhões de consumidores brasileiros, mesmo
sem concordar com isso, serão inseridos nos bancos de dados dos bureaus de
crédito. A partir daí todas as suas informações de pagamento serão a eles
remetidas para o permanente cálculo do score, que será o fator determinante no
cálculo do risco para empréstimo e quaisquer outras relações de crédito com
consumidores.
Quem pedir para sair do cadastro será presumido mal pagador e não obterá
empréstimos. Terá inclusive dificuldades para abrir ou manter contas em bancos
e para ter cartões de crédito. Informações valiosíssimas para o mercado serão
gratuitamente colocadas à disposição das empresas, contra a vontade de seus
titulares e visando lucro. Tudo isso acontecerá sem que o Brasil tenha aprovado
uma lei de proteção de dados.
Está em trâmite a regulamentação dos distratos imobiliários, ou seja,
serão definidas as regras para as construtoras nos casos da desistência ou
inadimplemento dos consumidores que adquiriram imóveis na planta ou lotes.
Embora a questão já esteja consolidada na jurisprudência do STJ, o setor
imobiliário busca na Câmara dos Deputados regras que lhe sejam mais favoráveis.
A nova regulamentação dos planos de saúde também está sendo estudada na
Câmara dos Deputados. Como o projeto proposto tencionava afastar a aplicação do
Código de Defesa do Consumidor, o que na prática já ocorre com a rescisão unilateral
e com os reajustes unilaterais dos contratos coletivos, hoje correspondentes a
80% dos contratos firmados, sua tramitação acabou atrasando na Câmara.
Enquanto a lei não muda, a ANS permite a comercialização dos planos
acessíveis, que são aqueles que o consumidor paga pouco, mas que em compensação
não consegue usar, e também permite que sejam comercializados planos de saúde
com maiores franquias e maior coparticipação. Esses regramentos paliativos não
vêm impedindo que consumidores deixem de contratar planos de saúde e passem a
demandar o SUS. Cada vez mais consumidores deixam de pagar planos de saúde,
porque não têm condições econômicas para isso, e recorrem à saúde pública.
Os projetos de lei de proteção de dados tramitam há anos e parecem que
agora, por força da preocupação com o novo modelo do cadastro positivo, terão
uma tramitação mais célere. As empresas internacionais, no entanto, já pedem um
período de adaptação às novas regras de dois anos, como se já não tivessem se
adaptado às normas americanas e europeias sobre o tema.
Está pendente de apreciação na Câmara dos Deputados a revogação das
cobranças autônomas dos despachos das bagagens pelas empresas aéreas, cuja
suspensão já foi aprovada no Senado. Como a colocação do tema em votação pode prejudicar
as empresas aéreas, que já vêm cobrando por isso em virtude da autorização da
ANAC, tudo indica que o tema não será votado na atual legislatura, pela falta
de vontade política.
Além dessas, exemplificativamente mencionadas, outras tantas
propostas prejudiciais aos consumidores tramitam no Congresso Nacional.
Sem dúvida alguma a mais grave de todas as vertentes é a vulnerabilidade
institucional do consumidor, porque, a despeito da existência de órgãos
públicos e de associações voltadas à sua defesa, os consumidores não têm as
mesmas armas do mercado no seu relacionamento com os poderes constituídos.
Pouco acesso os consumidores têm ao Executivo, além da atuação
institucional dos órgãos públicos, muitas vezes limitada pela ausência de
garantias constitucionais semelhantes àquelas asseguradas ao Judiciário e ao
Ministério Público. Os órgãos públicos de proteção dos consumidores lidam com o
poderio econômico das maiores empresas do Brasil, que têm relações habituais
com todos os poderes. Não raro aquele que conflita com as empresas é destituído
do cargo, por ordem superior desencadeada por pedido do mercado. Os cargos
máximos da defesa do consumidor, quase todos, são passíveis de exoneração "ad
nutum". Ainda que o pretexto para a dispensa de seu ocupante seja outro, muitas
vezes o pedido vem do mercado.
Menos ainda os consumidores têm acesso ao Legislativo. Muito embora
muitos empunhem a bandeira do consumidor durante a campanha eleitoral, poucos
são aqueles que defendem os interesses dos mais fracos. O mercado promove
palestras e eventos de convencimento dos parlamentares, contrata pareceres,
enfim, usa de todas as possibilidades que o poder econômico assegura. De outra
parte, quando as entidades do consumidor realizam seus seminários, dependem da
contribuição do mercado que, em contrapartida, inclui dentre os participantes
seus representantes mais qualificados.
Com o Judiciário também as empresas se relacionam através dos melhores e
dos mais capacitados advogados. Todos os julgamentos dos recursos repetitivos,
que decidem as questões consumeristas mais relevantes no plano nacional, contam
com o acompanhamento dos representantes dos setores envolvidos. Não raro, mais
de um representante do mercado acompanha de perto tais ações, entregando
memoriais e realizando sustentações orais nos julgamentos.
As entidades de defesa do consumidor, que além de poucas têm pequenas
estruturas e poucos recursos econômicos, não conseguem fazer frente a tamanha
demanda de assuntos e de compromissos nos poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário.
O Sistema Nacional do Consumidor, muito unido e bastante articulado, já
sofreu e sempre sofre muitas baixas em seus quadros, de seus mais qualificados
representantes que são contratados pelo mercado. São diversos os exemplos de
profissionais qualificados que passaram pela Senacon e pelos Procons que foram
contratados por bancos, seguradoras, montadoras e pelas maiores empresas do
mercado.
O consumidor é vulnerável no plano institucional e esse aspecto é o mais
difícil de ser modificado. Depende da estruturação com independência
financeira, na formação de seus quadros e sobretudo na sua atuação
institucional dos órgãos públicos de defesa do consumidor, que permitam
contrariar interesses econômicos sem que isso custe a cabeça de seus
dirigentes, como invariavelmente acontece com aqueles que atuam de forma
técnica e independente. Depende da formação de uma bancada de defesa do
consumidor no Legislativo, com representantes que defendam a causa
especialmente após a eleição e alertem o sistema quanto a quaisquer tentativas
de retrocesso nos direitos dos consumidores. Depende da proliferação de
associações civis fortes na defesa do consumidor, que disponham de recursos
financeiros e quadros técnicos permanentes, que não dependam exclusivamente de
sua devoção à causa para recusar as propostas diuturnas do mercado.
Como se percebe, o caminho a percorrer, além de longo, demandará
bastante tempo. Enquanto isso, a nós consumeristas, resta a proteção da
Constituição Federal, que só pode ser ameaçada pelo poder constituinte originário,
em virtude da proteção da cláusula pétrea. Que parem de difundir a "fake news"
de que o consumidor brasileiro não mais precisa de proteção.
Por Arthur Rollo