"A botinha representa a nossa caminhada na vida.
Subi e desci. Andei depressa e devagar. Cansei e descansei. Entristeci e me
alegrei. E, assim, sempre caminhei. Hoje estou gasta e cheia de
marcas, mas com a certeza de que valeu a pena". (Ditinho Joana)
Ler o jornal, acessar a internet, ouvir o rádio - atualizar-se. Fazer
telefonemas, responder e-mails, participar de reuniões - comunicar-se. Tomar
banho, fazer as refeições, praticar esportes - cuidar-se. A vida é uma sucessão
de ações cotidianas (que se repetem diariamente), corriqueiras (desenvolvidas
cada vez mais em alta velocidade) e rotineiras (do francês routine, o caminho
muito frequentado).
Há um costume equivocado, em meu entender, compartilhado por muitos. É o hábito
de separar prazer de obrigação, trajeto de destino, vida pessoal de
profissional. Assim, vejo pessoas declararem que sonham passar os últimos dias
de suas vidas em uma casa no campo, longe da agitação urbana. E outros que
afirmam trabalhar com afinco durante meses apenas para garantir a posse de
alguns bens ou uma viagem de lazer no próximo interlúdio.
Ditinho Joana é um artesão nascido, criado e residente na pequena São Bento do
Sapucaí, em São Paulo, próxima à divisa com Minas Gerais. Em seus 40 anos de
carreira, tem talhado em madeira de lei parte de sua história e da vida rural
local, lançando mão apenas de uma machadinha, um canivete e um formão. As obras
são esculpidas em bloco único, dispensando o uso de colagens ou encaixes. E seu
trabalho faz-me lembrar da declaração de Michelangelo, ao cinzelar em pedra, de
que "apenas tirava as sobras, pois a estátua já estava lá". O ícone do
trabalho de Ditinho é uma bota. Simples, amarrotada, calejada. A bota que
capinou o chão, que escalou montanhas, que pisou o barro. A bota que o conduziu
de lavrador a artista, que edificou sua casa e construiu sua família. Atendendo
hoje em seu próprio ateliê, seu sorriso gracioso denuncia que a trajetória -
cotidiana, corriqueira e rotineira - valeu a pena. A vida que a gente vive parece herdada com instruções, uma bula escrita
pelos ascendentes e pela sociedade ensinando-nos o "como usar". O
que devemos, podemos ou não dizer e fazer. O que é ético, antiético e aético. O
que é moral, imoral e amoral. O que é certo e o que é errado. Tarefas por
realizar, planos por concretizar, horários por cumprir. Dias que sucedem,
com noites intercaladas, algumas maldormidas, outras serenas pela leveza da boa
consciência.
Não dá para ignorar todas as
instruções. Mas é possível reescrever algumas. E encontrar prazer
na obrigação, contemplar o trajeto até o destino, conciliar vida pessoal e
profissional. Descansar em uma casa no campo em um final de semana e não apenas
ao final de uma vida.
A lição de Ditinho é para ser aprendida. Espero que minhas botas também fiquem
gastas e repletas de marcas. Continuo caminhando...
Por Tom Coelho