"Combater a si próprio é a mais dura das guerras, vencer a si próprio é a
mais bela das vitórias."
(Friedrich von Logau)
Desde
pequeno acostumei-me com a guerra.
Acho que por
influência de meus pais - e um cara chamado Freud disse que as coisas sempre
começam assim - passei a considerar a guerra um ato normal, quase essencial.
Primeiro foi
uma guerra para sair do conforto do ventre de minha mãe, onde eu tinha alimento
e segurança, num dia que chamaram de parto e que depois deram o nome, talvez só
para me tapear, de aniversário. Eu chorei muito e esperneei ainda mais naquele
dia. Mas não teve jeito. Tiraram-me de lá, fazendo-me ver um clarão que quase
me cegou. Ainda levei um tapa no traseiro sem motivo algum! Os anos seguintes
me mostraram que raramente adianta chorar e espernear...
Depois veio
uma guerra particular bem interessante que consistia em ficar em pé e aprender
a andar. Meu pai guerreava para comprar fraldas e leite em pó, enquanto minha
mãe também travava outra guerra que se estenderia por anos: fazer-me comer o
que ela colocava no prato, o que envolveria coisas como fígado e ervilha, em
vez de chocolate e gelatina.
Lá pelos
quatro anos de idade fui apresentado a um verdadeiro arsenal de guerra. Era um
começo de ano e todo mundo pulava e cantava muito numa festa que atendia pelo
nome de Carnaval. Ganhei uma espécie de bisnaga de plástico que a gente enchia
de água e depois saía molhando a todos que se atrevessem passar pela frente.
Ganhei também umas armas feitas de papel - parece que se chamavam confete e
serpentina. Estas eram guerras bem animadas!
Ah,
lembro-me também dos bombardeios aéreos com batatas fritas atiradas do 18º
andar de um prédio onde estive hospedado durante uma viagem de férias.
Anos depois,
viriam as guerras que guardo com mais carinho na memória. A guerra de almofadas
que começava na sala e terminava como guerra de travesseiros no quarto. Foi uma
época de desenvolvimento de táticas de guerrilha. Eu me entrincheirava atrás do
sofá e espalhava sapatos e chinelos-mina pela sala e corredores.
Trocar a TV,
o videogame e as brincadeiras com os colegas pelas tarefas escolares eram uma
guerra e tanto. O mesmo para arrumar o quarto, tomar banho e ir dormir cedo.
Então veio
uma série de outras guerras. Guerra para ser aceito pelo time de basquete do
clube, mesmo sendo baixinho. Guerra para tirar boas notas e se destacar na
escola. Guerra para entender as transformações que os hormônios provocavam no
corpo. Guerra para criar coragem e convidar aquela garotinha para sair. Guerra
para tomar a iniciativa do primeiro beijo.
Mais alguns
pares de anos e as guerras seguintes foram tomando conotação mais séria. Guerra
para passar no vestibular. Guerra para obter o diploma. Guerra para conseguir
um emprego e, estando nele, aprender a aceitar a hierarquia - às vezes, quase
militar -, as ordens impingidas de cima para baixo, os conchavos nos
corredores, as conspirações no hall do café, as armadilhas no elevador. Guerras
corporativas engendradas por coronéis sem patente, travadas por soldados muitas
vezes lançados a campo sem treinamento e provisões. Guerra contra a
concorrência, sem interesse na diplomacia. Guerra contra a ineficiência, sem
previsão de armistício. Guerra pelo consumidor, por sua preferência e
fidelidade.
E, nesta
toada, guerra para encontrar uma alma gêmea. Guerra para seduzi-la a casar-se
e, depois, a separar-se. Guerra pela custódia dos filhos. Guerra para montar
uma empresa, pagar salários, pagar impostos - e, de repente, ter que fechar a
empresa. Guerra contra o aumento da gasolina. Guerra contra os juros do cheque
especial.
Lendo os
jornais observo o desenrolar de outros tipos de guerra. Guerra pela demarcação
geográfica, guerra pelo petróleo, guerra pela autoridade. E, talvez a pior de
todas: a guerra em nome de Deus, a que chamaram de guerra santa, apenas para
envolver de corpo e alma milhões de inocentes, jovens ou maduros, mas que na
verdade atende aos mesmos preceitos de terra, dinheiro e poder de todas as
guerras convencionais.
Hoje, já
adulto, dei-me por conta de como nossas guerras vão perdendo significado real à
medida em que nossas pernas crescem. As guerras migram do prazer para a
ignorância, da pureza para a intolerância. Bilhões de dólares, euros e libras são gastos para matar mais gente,
quando poderiam amenizar a dor e o sofrimento, a fome e a miséria, de outros
milhões espalhados pelo mundo. Bilhões de reais são investidos em produtos que
não são desejados, em tecnologias que não serão usadas, em treinamentos que não
proporcionam aprendizado, em confraternizações que não geram integração. Tudo
porque as nações tratam as outras como países, isolando-se em torno de seus
interesses. Tudo porque as empresas tratam seus colaboradores como móbiles,
fertilizando o terreno para uma guerra civil ao não definirem seus valores,
missão e ideais de forma compartilhada.
Olhamos para
o lado e vemos a guerra para saber quem avançará primeiro o semáforo fechado, a
guerra para determinar quem vencerá a licitação, a guerra contra o
narcotráfico, a guerra pela sobrevivência. Nesta hora vemos que Darwin
enganou-se, que a seleção não é natural porque a natureza quer, mas porque o
homem assim o deseja.
Então,
coloco-me diante de minha maior guerra pessoal: a de entender o porquê de as
coisas serem assim. Compreender como fui me deixar convocar por este exército
de insanos. E imaginar em qual ponto no espaço e em que momento no tempo
desgarrei-me da criança que vivia e amava a guerra, como ela deveria ser.
Por Tom Coelho