A Pseudafunção Social do art. 354 do CC/2002
Publicada em 11/11/2020 às 09:00h
Não é
razoável tratar o art. 354 do CC/2002, cumulado ou isolado, com as regras dos
juros legais e correção monetária, como norma exata e justa, posto que assim,
um juiz estaria se distanciando de sua própria essência e finalidade social.
Ao interpretar a lei e dizer o direito e a obrigação, deve o julgador
fundamentar a sua pronúncia, no princípio da menor onerosidade ao devedor.
Respeitando ainda o art. 5º de Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro - Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942, ou seja, na aplicação
da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do
bem comum. E não a geração de lucro que remente a um enriquecimento sem causa
do credor em prejuízo do devedor hipossuficiente.
Portanto, deve o juiz afastar a incidência da lei, art. 354 do CC/2002, em
relação a um caso concreto, quando dessa incidência resultar obstrução ou
violação da ordem social ou o seu fim social. Lembrando que a ordem social, é
matéria constitucional como segue: "art. 193. A ordem social tem como base o
primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais". Como
visto na Constituição da República Federativa do Brasil, a ordem social tem
como primado, ou seja, possui primazia, no trabalho.
Portanto,
entre o lucro discricionário das instituições financeiras, e o trabalho, a
prioridade é o trabalho.
Uma decisão
judicial deverá ser de modo proporcional e equânime, respeitando o princípio da
dignidade[1] do
devedor, e sem prejuízo aos interesses gerais coletivos, não
podendo impor aos sujeitos diretamente atingidos, ônus ou perdas que, em função
das peculiaridades do caso, juros de 12% ao ano mais IGP-M 6,82%, que
são, sem sombra de dúvida, anormais ou excessivas, quando comparada a
situação fática do mercado financeiro nacional, março de 2020, SELIC de 3,65%
ao ano.
Pois os juros legais de 12% ao ano, mais correção
monetária do IGP-M, em torno de 6,82 acumulado em 12 meses, base março de 2020,
cria uma onerosidade de 18,62% para o devedor, enquanto a taxa básica de juros,
Selic, fixada na 229ª reunião do Comitê de Política Monetária (COPOM) em
18/03/20, foi 3,65% ao ano; a lógica do bom senso e da noção básica de justiça,
não permite que se admita esta situação como razoável.
O art. 354 do CC/2002 contém, pelo viés
científico-social uma estrutura perversa que busca estabelecer uma primazia de
lucro discricionário, usura[2], pelo desejo de sustentação da fantasia do
perverso ganancioso, onde, por uma inversão de valores, os juros devem ser
pagos antes do capital. Pagar juros antes do capital, não significa,
necessariamente, a capitalização dos juros, mas sim, uma onerosidade
prejudicial às finanças do devedor, materializado por um desequilíbrio
econômico-financeiro entre os direitos do devedor e do credor.
Quando um juiz determina a quitação dos juros antes
do capital, fulmina o princípio da "menor onerosidade do devedor", imponho ao
devedor a maior onerosidade. Com base na matemática, demonstramos os efeitos da
lesividade, pagamento do juro antes do capital, pela comparação entre as duas
hipóteses, sendo a primeira a justa, por estar em sintonia à função social do
capital; e a segunda, a lesiva, em decorrência da negação da função social do
capital.
. 1ª hipótese: pagamento
amortizando primeiro o capital. O devedor desembolsou R$ 15.500,00 e quitou a
dívida em 16 meses.
|
Capital
R$10.000,00
|
|
|
Juros
10% ao mês, sem capitalização, a serem pagos mensalmente, após a quitação do
capital, e incidentes sobre o total do empréstimo não amortizado.
|
Amortização
mensal de 10% do empréstimo.
|
|
Capital
|
Juros
|
Amortização do Capital
|
Amortização dos Juros
|
Juros Acumulados
|
1
|
10.000,00
|
1.000,00
|
(1.000,00)
|
-
|
1.000,00
|
2
|
9.000,00
|
900,00
|
(1.000,00)
|
-
|
1.900,00
|
3
|
8.000,00
|
800,00
|
(1.000,00)
|
-
|
2.700,00
|
4
|
7.000,00
|
700,00
|
(1.000,00)
|
-
|
3.400,00
|
5
|
6.000,00
|
600,00
|
(1.000,00)
|
-
|
4.000,00
|
6
|
5.000,00
|
500,00
|
(1.000,00)
|
-
|
4.500,00
|
7
|
4.000,00
|
400,00
|
(1.000,00)
|
-
|
4.900,00
|
8
|
3.000,00
|
300,00
|
(1.000,00)
|
-
|
5.200,00
|
9
|
2.000,00
|
200,00
|
(1.000,00)
|
-
|
5.400,00
|
10
|
1.000,00
|
100,00
|
(1.000,00)
|
-
|
5.500,00
|
11
|
-
|
-
|
|
(1.000,00)
|
4.500,00
|
12
|
|
|
|
(1.000,00)
|
3.500,00
|
13
|
-
|
-
|
-
|
(1.000,00)
|
2.500,00
|
14
|
-
|
-
|
-
|
(1.000,00)
|
1.500,00
|
15
|
-
|
-
|
-
|
(1.000,00)
|
500,00
|
16
|
-
|
-
|
-
|
(500,00)
|
-
|
17
|
-
|
-
|
-
|
-
|
-
|
18
|
-
|
-
|
-
|
-
|
-
|
19
|
-
|
-
|
-
|
-
|
-
|
20
|
-
|
-
|
-
|
-
|
-
|
21
|
-
|
-
|
-
|
-
|
-
|
22
|
-
|
-
|
-
|
-
|
-
|
23
|
-
|
-
|
-
|
-
|
-
|
24
|
-
|
-
|
-
|
-
|
-
|
|
Soma
|
|
(10.000,00)
|
(5.500,00)
|
|
· 2ª hipótese: pagamento amortizando primeiro os juros. O
devedor em 24 meses desembolsou R$ 24.000,00,00, mais de duas vezes o capital,
e continua devendo integralmente o capital de R$10.000,00.
Capital
R$10.000,00
|
Juros
10% ao mês, sem capitalização, a serem pagos mensalmente e incidentes sobre o
total do empréstimo.
|
Amortização
mensal de 10% do empréstimo
|
|
|
|
Capital
|
Juros
|
Saldo Devedor
|
Amortização
|
Saldo Devedor após a Amortização
|
1
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
2
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
3
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
4
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
5
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
6
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
7
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
8
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
9
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
10
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
11
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
12
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
13
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
14
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
15
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
16
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
17
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
18
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
19
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
20
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
21
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
22
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
23
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
24
|
10.000,00
|
1.000,00
|
11.000,00
|
(1.000,00)
|
10.000,00
|
|
Soma
|
|
|
(24.000,00)
|
|
A perversidade do art. 354 do CC/2002, ou seja, o
efeito de lesividade criado pela prioridade da amortização dos juros em
detrimento da amortização do capital, milita contra a ordem econômica, art. 170[3] da CF, na medida em que
inibe a atividade geradora de empregos, de bens, de serviços e de
tributos. Favorecendo o lucro discricionário das instituições
financeiras. O art. 354 da CC/2002 atua contra a boa intenção de promover
a recuperação judicial de um devedor em crise. A boa fé dos hipossuficientes
que buscam crédito, ou a oportunidade de uma recuperação da atividade
econômica, está diretamente associada aos valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa; por serem estes dois valores, elementos componentes da base
dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, constantes do
inciso IV do art. 1º da CF.
Concluímos
que a primazia do pagamento dos juros sobre o capital, é uma patologia
econômica, que causa desvio na ordem econômica social, em relação à normalidade
do uso capital, e que, constituí uma doença caracterizada pela crise
econômico-financeira dos devedores, cuja terapia, é o restabelecimento da
situação adequada, de que primeiro paga-se o capital e depois os juros. O
método de amortização a juros simples (MAJS) está em sintonia à função do
capital, pois devolve o capital com a parcela correspondente ao juro, existindo
um balanceamento entre a parcela devolvida e os juros. Não deixando de pagar os
juros, apenas estabelecendo um justo balanceamento entre o capital devolvido e
a remuneração deste capital ao longo do tempo do financiamento.
As reflexões
contabilísticas servem de guia referencial para a criação de conceitos, teorias
e valores científicos. É o ato ou efeito do espírito de um cientista filósofo
de refletir sobre o conhecimento, coisas, atos e fatos, fenômenos,
representações, ideias, paradigmas, paradoxos, paralogismos, sofismas,
falácias, petições de princípios e hipóteses análogas.
[1]O
princípio da dignidade é um dos fundamentos, valores, da República Federativa
do Brasil, constante no primeiro artigo e inciso III da Constituição.
[2] Usura é todo procedimento que
resulta em lucro excessivo por parte do credor e prejuízo por parte do devedor.
[3] CF, art.
170. "A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios (.)".
Por Prof. Me. Wilson Alberto Zappa Hoog
Sobre o(a) colunista:
Mestre em ciência jurídica, bacharel em ciências contábeis, arbitralista, mestre em direito, perito- contador, auditor, consultor empresarial, palestrante, especialista em avaliação de sociedades empresárias, escritor e pesquisador de matéria contábil, professor doutrinador de perícia contábil, direito contábil e de empresas em cursos de pós-graduação de várias instituições de ensino. Informações sobre o autor e suas obras podem ser obtidas em: http://www.jurua.com.br/shop_search.asp?Onde=GERAL&Texto=zappa+hoog.
Currículo Lattes em: http://lattes.cnpq.br/8419053335214376 .
E-mail: wilson@zappahoog.com.br.
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