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"Benchmarking aduaneiro": influência e aplicação no Brasil


Publicada em 11/06/2022 às 09:00h 

A expressão "bench mark" remete historicamente a uma marca de nível, comparativa, de referência. A sua derivação "benchmarking", no entanto, não constava em dicionários de inglês até o final do século passado, como narram Mohamed Zairi e Paul Leonard, sequer figurando o termo no importante "Oxford Reference Dictionary", na edição de 1987, passando a palavra a ser usada modernamente para expressar a busca por um ponto de referência, de comparação [1].



No Brasil, apesar de não figurar no Volp (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa), a palavra "bechmarking" pode ser encontrada no completíssimo "Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa", no qual conta com o seguinte significado básico, herdado das obras de administração: "processo de avaliação da empresa em relação à concorrência, por meio do qual incorpora os melhores desempenhos de outras formas e/ou aperfeiçoa os seus próprios métodos" 
[2].



Na área aduaneira, a busca pela consolidação das melhores práticas internacionais já era uma preocupação do Conselho de Cooperação Aduaneira, na década de 70 do século passado, como se percebe na Convenção de Quioto de 1974 (Convenção Internacional para a Simplificação e a Harmonização de Regimes Aduaneiros), que, em seus 31 anexos, apontava as melhores práticas para a maioria dos temas aduaneiros (v.g., formalidades, regimes, procedimentos, infrações e recursos). Disposições de vanguarda (ao menos para aquela época) já eram perceptíveis, a exemplo de um Anexo J-1, relativo a "aplicações aduaneiras dos computadores" 
[3].



O implacável tempo, a impressionante evolução tecnológica e a regulação paralela de vários temas no âmbito de outras organizações e foros, nas duas décadas seguintes, acabaram por demandar revisão na Convenção de Quioto, promovida a partir de 1995, para atualização e modernização, chegando-se, em 1999, ao texto que ficou conhecido como "Convenção de Quioto Revisada" (CQR/OMA), que entrou em vigor internacional em 2006, no âmbito da Organização Mundial das Aduanas.



Embora o Brasil tenha aderido à CQR/OMA apenas em 2019 (com depósito do instrumento de ratificação em 5/9), é facilmente perceptível em nossa legislação interna a presença (significativamente) anterior de institutos que figuram na convenção, como gerenciamento de risco, auditorias a posteriori, operadores autorizados e uso de tecnologia da informação, observando padrões internacionais.



Também o Acordo sobre a Facilitação do Comércio, da OMC (AFC/OMC), outro importante tratado internacional aduaneiro recente, faz expressa referência às boas práticas internacionais, em seu artigo 10, que trata de formalidades relacionadas à importação, exportação e trânsito: "...com vistas a minimizar a incidência e a complexidade de formalidades de importação, exportação e trânsito, ..., e tendo em conta os objetivos legítimos de política e outros fatores, tais como alteração das circunstâncias, novas informações relevantes, práticas empresariais, disponibilidade de técnicas e tecnologias, boas práticas internacionais, e contribuições de partes interessadas...".



As "boas práticas internacionais", que poderiam também ser traduzidas como "melhores práticas internacionais" (em observância aos idiomas dos textos autênticos do AFC/OMC: "international best practices""meilleures pratiques internationales" e "mejores prácticas internacionales"), não estão presentes apenas em tratados vigentes e vinculantes. Podem estar em tratados dos quais o país sequer faz parte, em tratados que ainda não se encontram em vigor, ou em diplomas internacionais ou nacionais que sequer se revestem das características formais de um tratado.



Em 2006, muito antes de o Brasil cogitar aderir à CQR/OMA ou ao AFC/OMC, escrevemos sobre "A Influência e a Aplicação dos Tratados Internacionais sobre Temas Aduaneiros" 
[4].



Nossa coluna de hoje rende tributos duplamente a esse artigo de 2006. Primeiro, porque o artigo faz parte de coletânea em homenagem (a melhor delas, em vida!) a um de nossos grandes internacionalistas, o professor Antônio Augusto Cançado Trindade, que lamentavelmente nos deixou na última semana, em 29/5/2022. E, derradeiramente, porque o conteúdo do artigo é insistentemente atual, herdando a coluna parte da designação de 2006 em seu título: "influência e aplicação".



Os tratados internacionais afetam nossa legislação interna, basicamente, de duas formas: por aplicação e por influência. Aplicar um tratado internacional pressupõe a regular incorporação do texto do tratado ao ordenamento jurídico nacional, assim como sua vigência e eficácia. Aplicamos, por exemplo, o Acordo de Valoração Aduaneira, fruto da Rodada Uruguai de Negociações Multilaterais, promulgado pelo Decreto 1.355/1994, e o próprio AFC/OMC, promulgado pelo Decreto 9.326/2018.



Já o fenômeno da influência abrange, v.g., (a) normas internacionais de caráter não obrigatório seguidas por Estados, (b) tratados internacionais observados por Estados não pactuantes, ou parte de seus textos que acaba reproduzida nas legislações nacionais, (c) estândares e marcos internacionais não normativos, (d) lex mercatória, e (e) outros institutos que poderiam ser enquadrados na categoria que se costuma designar por soft law.



Veja-se, a título ilustrativo, a IN SRF (Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal - hoje RFB) 1.521/2014, que instituiu o Programa Brasileiro de Operador Econômico Autorizado, antes da adesão brasileira à CQR/OMA (que trata do tema em seu Anexo Geral - artigo 3.32) ou da ratificação brasileira ao AFC/OMC (que versa sobre o assunto em seu artigo 7.7). A IN 1.521/2014 invocou, em seu preâmbulo, a "...observância aos princípios da Estrutura Normativa SAFE da Organização Mundial de Aduanas (OMA)" 
[5].



O Marco Normativo para Assegurar e Facilitar o Comércio Global (Safe Framework of Standards to Secure and Facilitate Global Trade) apresenta um referencial para que as administrações aduaneiras balanceiem a facilitação do comércio legítimo com a segurança da cadeia de suprimentos, por meio da modernização de suas operações aduaneiras 
[6].



A OMA possui ainda diversos outros instrumentos (normativos ou não) que são adotados como base na confecção das legislações nacionais, como o Compêndio de Gestão de Risco Aduaneiro (Customs Risk Management Compendium), em dois volumes (sendo o primeiro público e o segundo restrito às aduanas), que apresentam a estrutura e as técnicas básicas para a implementação de mecanismos de gestão de riscos pelas aduanas; o Compêndio sobre Operador Econômico Autorizado - OEA) (Authorized Economic Operator - AEO - Compendium), com uma visão geral sobre os programas existentes e os acordos de reconhecimento mútuo celebrados, além de informações sobre critérios de admissão, procedimentos e benefícios; e o Compêndio sobre "Fortalecimento" de Capacidades (Capacity Building Development Compendium), fruto de mais de 100 missões realizadas no âmbito do programa Columbus, que efetuaram diagnóstico (fase 1) de diversas aduanas e propuseram planos de ação (fase 2), acompanhando sua implementação (fase 3) 
[7].



No Brasil, temos ainda exemplos de influência de normas regionais, como a admissão temporária com pagamento proporcional, aqui criada no artigo 79 da Lei 9.430/1996, mas já presente no Código Aduaneiro Comunitário da União Europeia de 1992 - Regulamento CEE 2.913, artigo 142) 
[8], ou de reprodução de lex mercatória (a Resolução Camex 16/2020 trata da informação de códigos relativos a Incoterms®, que não resultam de tratado internacional em sentido estrito, mas de publicação da Câmara de Comércio Internacional).



Às vezes, a influência é informada na própria Exposição de Motivos (EM) da norma brasileira. Veja-se o Decreto-Lei 37/1966, principal norma aduaneira, que expressa em sua EM - item 4: "O Capítulo II complementa a disposição do art. 20 do Código Tributário Nacional, que dispõe sobre a aplicação da Definição de Valor de Bruxelas, conforme Convenção concluída a 15 de dezembro de 1950, e hoje utilizada por mais de vinte dos principais países do mundo, entre os quais os da Comunidade Econômica Europeia".



Aliás, é na legislação aduaneira brasileira que encontramos exemplo de aparente "aplicação" de tratado em hipótese que seria apenas de "influência". Referimo-nos ao curioso artigo 12 do Decreto-Lei 2.472/1988: "Nos casos e na forma previstos em regulamento, o ministro da Fazenda poderá autorizar o desembaraço aduaneiro, com suspensão de tributos, de mercadoria objeto de isenção ou de redução do imposto de importação concedida por órgão governamental ou decorrentes de acordo internacional, quando o benefício estiver pendente de aprovação ou de publicação do respectivo ato".



As melhores práticas aduaneiras internacionais, que, repita-se, não se resumem ao texto dos tratados internacionais, são constantemente revisadas, inspirando-se uns países nos exemplos exitosos dos outros. É justamente com o escopo de aproximação das legislações, evitando a discriminação de comércio por meio de procedimentos, que as organizações internacionais que versam sobre o tema "nunca descansam" 
[9].



E também nós, no Brasil, não devemos descansar, ou descuidar da forma como outros países e blocos econômicos tratam a temática aduaneira. Ao elaborarmos novas normas e regulações de comércio, inclusive em temas processuais aduaneiros (como comentamos em coluna anterior) 
[10], não podemos simplesmente ignorar as experiências bem sucedidas internacionalmente.



Estamos na iminência de adaptações legislativas necessárias à implementação da CQR/OMA, ao mesmo tempo em que estamos prestes a reestruturar o contencioso administrativo e uma de suas espécies: o contencioso tributário (que coincide apenas em parte com o contencioso aduaneiro). Nesse cenário, não há lugar para tentativa-e-erro, pois existem fórmulas já testadas em dezenas de países, à disposição para quem desejar analisá-las.



Como afirma nosso homenageado de hoje, o eterno Antônio Augusto Cançado Trindade, "...os avanços e retrocessos lamentavelmente são próprios da triste condição humana, o que deve nos incitar a continuar lutando até o final" 
[11].



De fato, somos humanos e erramos, mas o benchmarking permite que aprendamos com o erro dos outros, o que é certamente menos doloroso.

 



[1] Zairi, Mohamed; Leonard, Paul. (1996). Origins of benchmarking and its meaningInPractical BenchmarkingThe Complete Guide. Springer, Dordrecht. https://doi.org/10.1007/978-94-011-1284-0_3.


[2] HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 432.


[3] O texto integral da Convenção de Quioto, que entrou em vigor em 25/9/1974, está disponível em: http://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/about-us/legal-instruments/conventions-and-agreements/conventions/kyoto-conv-1973_en.pdf?la=en.


[4] TREVISAN, Rosaldo. A influência e a aplicação dos tratados internacionais sobre temas aduaneiros. In: MENEZES, Wagner (coord.). Estudos de Direito Internacional. V. 8. Curitiba: Juruá, 2006, p. 318-329.


[5] Atualmente, a norma procedimental que rege o tema é a IN RFB 1.985/2020.


[6] A versão atualizada (2021) do Marco SAFE pode ser encontrada em: http://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/topics/facilitation/instruments-and-tools/tools/safe-package/safe-framework-of-standards.pdf?la=en.


[7] A lista é meramente exemplificativa, e pode ser complementada com diversos outros instrumentos e ferramentas disponíveis no site da OMA: http://www.wcoomd.org/en/topics/facilitation/instrument-and-tools.aspx.


[8] Equivalente ao artigo 250 do Código Aduaneiro da União - Regulamento UE 952/2013, atualmente vigente.


[9] A OMA, por exemplo, aprovou, em junho de 2018, a criação de um grupo de trabalho encarregado de uma nova revisão da Convenção de Quioto - "Working Group on the Comprehensive Review of the Revised Kyoto Convention (WGRKC)", estando ainda em curso os trabalhos de revisão.


[10] Contribuições aduaneiras para a melhoria do contencioso. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-03/territorio-aduaneiro-contribuicoes-aduaneiras-melhoria-contencioso-administrativo.


[11] CANÇADO TRINDADE. Antônio Augusto. In: CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo (Org.). Desafios do Direito Internacional Contemporâneo. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007, p. 208.



Por Rosaldo Trevisan

Doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), Auditor-Fiscal da RFB, membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).








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