A expressão "bench mark" remete
historicamente a uma marca de nível, comparativa, de referência. A sua
derivação "benchmarking",
no entanto, não constava em dicionários de inglês até o final do século
passado, como narram Mohamed Zairi e Paul Leonard, sequer figurando o termo no
importante "Oxford Reference Dictionary", na edição de 1987, passando
a palavra a ser usada modernamente para expressar a busca por um ponto de
referência, de comparação [1].
No Brasil, apesar de não figurar
no Volp (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa), a palavra "bechmarking" pode
ser encontrada no completíssimo "Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa", no qual conta com o seguinte significado básico, herdado das
obras de administração: "processo
de avaliação da empresa em relação à concorrência, por meio do qual incorpora
os melhores desempenhos de outras formas e/ou aperfeiçoa os seus próprios
métodos" [2].
Na área aduaneira, a busca
pela consolidação das melhores práticas internacionais já era uma preocupação
do Conselho de Cooperação Aduaneira, na década de 70 do século passado, como se
percebe na Convenção de Quioto de 1974 (Convenção Internacional para a
Simplificação e a Harmonização de Regimes Aduaneiros), que, em seus 31 anexos,
apontava as melhores práticas para a maioria dos temas aduaneiros (v.g., formalidades,
regimes, procedimentos, infrações e recursos). Disposições de vanguarda (ao
menos para aquela época) já eram perceptíveis, a exemplo de um Anexo J-1,
relativo a "aplicações
aduaneiras dos computadores" [3].
O implacável tempo, a
impressionante evolução tecnológica e a regulação paralela de vários temas no
âmbito de outras organizações e foros, nas duas décadas seguintes, acabaram por
demandar revisão na Convenção de Quioto, promovida a partir de 1995, para
atualização e modernização, chegando-se, em 1999, ao texto que ficou conhecido
como "Convenção de Quioto Revisada" (CQR/OMA), que entrou em vigor
internacional em 2006, no âmbito da Organização Mundial das Aduanas.
Embora o Brasil tenha aderido
à CQR/OMA apenas em 2019 (com depósito do instrumento de ratificação em 5/9), é
facilmente perceptível em nossa legislação interna a presença
(significativamente) anterior de institutos que figuram na convenção, como
gerenciamento de risco, auditorias a
posteriori, operadores autorizados e uso de tecnologia da
informação, observando padrões internacionais.
Também o Acordo sobre a
Facilitação do Comércio, da OMC (AFC/OMC), outro importante tratado
internacional aduaneiro recente, faz expressa referência às boas práticas
internacionais, em seu artigo 10, que trata de formalidades relacionadas à
importação, exportação e trânsito: "...com
vistas a minimizar a incidência e a complexidade de formalidades de importação,
exportação e trânsito, ..., e tendo em conta os objetivos legítimos de política
e outros fatores, tais como alteração das circunstâncias, novas informações
relevantes, práticas empresariais, disponibilidade de técnicas e
tecnologias, boas práticas internacionais, e contribuições de partes
interessadas...".
As "boas práticas
internacionais", que poderiam também ser traduzidas como "melhores
práticas internacionais" (em observância aos idiomas dos textos autênticos
do AFC/OMC: "international
best practices", "meilleures
pratiques internationales" e "mejores prácticas
internacionales"), não estão presentes apenas em tratados
vigentes e vinculantes. Podem estar em tratados dos quais o país sequer faz
parte, em tratados que ainda não se encontram em vigor, ou em diplomas
internacionais ou nacionais que sequer se revestem das características formais
de um tratado.
Em 2006, muito antes de o
Brasil cogitar aderir à CQR/OMA ou ao AFC/OMC, escrevemos sobre "A
Influência e a Aplicação dos Tratados Internacionais sobre Temas
Aduaneiros" [4].
Nossa coluna de hoje rende
tributos duplamente a esse artigo de 2006. Primeiro, porque o artigo faz parte
de coletânea em homenagem (a melhor delas, em vida!) a um de nossos grandes
internacionalistas, o professor Antônio Augusto Cançado Trindade, que
lamentavelmente nos deixou na última semana, em 29/5/2022. E, derradeiramente,
porque o conteúdo do artigo é insistentemente atual, herdando a coluna parte da
designação de 2006 em seu título: "influência e aplicação".
Os tratados internacionais
afetam nossa legislação interna, basicamente, de duas formas: por aplicação e
por influência. Aplicar um tratado internacional pressupõe a regular incorporação
do texto do tratado ao ordenamento jurídico nacional, assim como sua vigência e
eficácia. Aplicamos, por exemplo, o Acordo de Valoração Aduaneira, fruto da
Rodada Uruguai de Negociações Multilaterais, promulgado pelo Decreto
1.355/1994, e o próprio AFC/OMC, promulgado pelo Decreto 9.326/2018.
Já o fenômeno da influência
abrange, v.g.,
(a) normas internacionais de caráter não obrigatório seguidas por Estados, (b)
tratados internacionais observados por Estados não pactuantes, ou parte de seus
textos que acaba reproduzida nas legislações nacionais, (c) estândares e marcos
internacionais não normativos, (d) lex
mercatória, e (e) outros institutos que poderiam ser enquadrados na
categoria que se costuma designar por soft
law.
Veja-se, a título
ilustrativo, a IN SRF (Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal -
hoje RFB) 1.521/2014, que instituiu o Programa Brasileiro de Operador Econômico
Autorizado, antes da adesão brasileira à CQR/OMA (que trata do tema em seu
Anexo Geral - artigo 3.32) ou da ratificação brasileira ao AFC/OMC (que versa
sobre o assunto em seu artigo 7.7). A IN 1.521/2014 invocou, em seu preâmbulo,
a "...observância
aos princípios da Estrutura Normativa SAFE da Organização Mundial de Aduanas
(OMA)" [5].
O Marco Normativo para
Assegurar e Facilitar o Comércio Global (Safe Framework of Standards to Secure
and Facilitate Global Trade) apresenta um referencial para que as
administrações aduaneiras balanceiem a facilitação do comércio legítimo com a
segurança da cadeia de suprimentos, por meio da modernização de suas operações
aduaneiras [6].
A OMA possui ainda diversos
outros instrumentos (normativos ou não) que são adotados como base na confecção
das legislações nacionais, como o Compêndio de Gestão de Risco Aduaneiro
(Customs Risk Management Compendium), em dois volumes (sendo o primeiro público
e o segundo restrito às aduanas), que apresentam a estrutura e as técnicas
básicas para a implementação de mecanismos de gestão de riscos pelas aduanas; o
Compêndio sobre Operador Econômico Autorizado - OEA) (Authorized Economic
Operator - AEO - Compendium), com uma visão geral sobre os programas existentes
e os acordos de reconhecimento mútuo celebrados, além de informações sobre
critérios de admissão, procedimentos e benefícios; e o Compêndio sobre
"Fortalecimento" de Capacidades (Capacity
Building Development Compendium), fruto de mais de 100 missões
realizadas no âmbito do programa Columbus, que efetuaram diagnóstico (fase 1)
de diversas aduanas e propuseram planos de ação (fase 2), acompanhando sua
implementação (fase 3) [7].
No Brasil, temos ainda
exemplos de influência de normas regionais, como a admissão temporária com
pagamento proporcional, aqui criada no artigo 79 da Lei 9.430/1996, mas já
presente no Código Aduaneiro Comunitário da União Europeia de 1992 -
Regulamento CEE 2.913, artigo 142) [8], ou de
reprodução de lex
mercatória (a Resolução Camex 16/2020 trata da informação de
códigos relativos a Incoterms®, que não resultam de tratado
internacional em sentido estrito, mas de publicação da Câmara de Comércio
Internacional).
Às vezes, a influência é
informada na própria Exposição de Motivos (EM) da norma brasileira. Veja-se o
Decreto-Lei 37/1966, principal norma aduaneira, que expressa em sua EM - item
4: "O Capítulo
II complementa a disposição do art. 20 do Código Tributário Nacional, que
dispõe sobre a aplicação da Definição de Valor de Bruxelas, conforme Convenção
concluída a 15 de dezembro de 1950, e hoje utilizada por mais de vinte dos
principais países do mundo, entre os quais os da Comunidade Econômica
Europeia".
Aliás, é na legislação
aduaneira brasileira que encontramos exemplo de aparente "aplicação"
de tratado em hipótese que seria apenas de "influência". Referimo-nos
ao curioso artigo 12 do Decreto-Lei 2.472/1988: "Nos casos e na forma previstos
em regulamento, o ministro da Fazenda poderá autorizar o desembaraço aduaneiro,
com suspensão de tributos, de mercadoria objeto de isenção ou de redução do
imposto de importação concedida por órgão governamental ou decorrentes de
acordo internacional, quando o benefício estiver pendente de aprovação ou de
publicação do respectivo ato".
As melhores práticas
aduaneiras internacionais, que, repita-se, não se resumem ao texto dos tratados
internacionais, são constantemente revisadas, inspirando-se uns países nos
exemplos exitosos dos outros. É justamente com o escopo de aproximação das
legislações, evitando a discriminação de comércio por meio de procedimentos,
que as organizações internacionais que versam sobre o tema "nunca descansam" [9].
E também nós, no Brasil, não
devemos descansar, ou descuidar da forma como outros países e blocos econômicos
tratam a temática aduaneira. Ao elaborarmos novas normas e regulações de
comércio, inclusive em temas processuais aduaneiros (como comentamos em coluna
anterior) [10], não podemos simplesmente ignorar as experiências bem
sucedidas internacionalmente.
Estamos na iminência de
adaptações legislativas necessárias à implementação da CQR/OMA, ao mesmo tempo
em que estamos prestes a reestruturar o contencioso administrativo e uma de
suas espécies: o contencioso tributário (que coincide apenas em parte com o
contencioso aduaneiro). Nesse cenário, não há lugar para tentativa-e-erro, pois
existem fórmulas já testadas em dezenas de países, à disposição para quem
desejar analisá-las.
Como afirma nosso homenageado
de hoje, o eterno Antônio Augusto Cançado Trindade, "...os avanços e retrocessos
lamentavelmente são próprios da triste condição humana, o que deve nos incitar
a continuar lutando até o final" [11].
De fato, somos humanos e
erramos, mas o benchmarking permite
que aprendamos com o erro dos outros, o que é certamente menos doloroso.
[1] Zairi, Mohamed; Leonard, Paul. (1996). Origins of benchmarking and its
meaning. In: Practical
Benchmarking: The Complete Guide.
Springer, Dordrecht. https://doi.org/10.1007/978-94-011-1284-0_3.
[2] HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001, p. 432.
[3] O texto integral da Convenção de Quioto, que entrou
em vigor em 25/9/1974, está disponível em: http://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/about-us/legal-instruments/conventions-and-agreements/conventions/kyoto-conv-1973_en.pdf?la=en.
[4] TREVISAN, Rosaldo. A influência e a aplicação dos
tratados internacionais sobre temas aduaneiros. In: MENEZES, Wagner (coord.). Estudos de Direito Internacional. V. 8. Curitiba:
Juruá, 2006, p. 318-329.
[5] Atualmente, a norma procedimental que rege o tema é
a IN RFB 1.985/2020.
[6] A versão atualizada (2021) do Marco SAFE pode ser
encontrada em: http://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/topics/facilitation/instruments-and-tools/tools/safe-package/safe-framework-of-standards.pdf?la=en.
[7] A lista é meramente exemplificativa, e pode ser
complementada com diversos outros instrumentos e ferramentas disponíveis no
site da OMA: http://www.wcoomd.org/en/topics/facilitation/instrument-and-tools.aspx.
[8] Equivalente ao artigo 250 do Código Aduaneiro da
União - Regulamento UE 952/2013, atualmente vigente.
[9] A OMA, por exemplo, aprovou, em junho de 2018, a
criação de um grupo de trabalho encarregado de uma nova revisão da Convenção de
Quioto - "Working
Group on the Comprehensive Review of the Revised Kyoto Convention (WGRKC)",
estando ainda em curso os trabalhos de revisão.
[10] Contribuições aduaneiras para a melhoria do
contencioso. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-03/territorio-aduaneiro-contribuicoes-aduaneiras-melhoria-contencioso-administrativo.
[11] CANÇADO TRINDADE. Antônio Augusto. In: CACHAPUZ DE
MEDEIROS, Antônio Paulo (Org.). Desafios do Direito Internacional
Contemporâneo. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007, p.
208.
Por Rosaldo
Trevisan
Doutor
em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das
Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI),
Auditor-Fiscal da RFB, membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva
da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).