No meu artigo anterior neste
"Território Aduaneiro" [1], escrevi sobre
o regime aduaneiro especial de drawback e
mencionei que tinha concluído um texto acadêmico, com os amigos Solon Sehn e
Ana Clarissa Masuko, a respeito da aplicação do drawback aos
serviços. Pois bem, parece que esse tema desperta interesse, de forma que
recebi várias perguntas e, por isso, convidei os coautores para escrevermos
juntos a coluna desta semana. Espero que respondamos à curiosidade dos leitores
e estudiosos.
No panorama atual do comércio
internacional, da economia digital, onde os serviços têm adquirido grande e
crescente relevância, é premente no Brasil a discussão sobre a necessidade de
desoneração dos tributos sobre serviços destinados à exportação, e não somente
dos bens tangíveis.
O drawback constitui
o mais relevante instrumento fiscal de estímulo à exportação [2] e seu efeito é potencializado na proporção direta
da complexidade e do índice de valor agregado da atividade industrial. Cumpre
lembrar que se permite, neste regime, a aquisição de insumos importados, e
também nacionais, com desoneração de tributos, para industrialização ou
aperfeiçoamento [3] no Brasil e a
exportação do produto final. Essa desoneração atinge: imposto sobre a
importação, IPI, PIS, Cofins, AFRMM (Adicional ao Frete para Renovação da
Marinha Mercante) e ICMS.
Assim, a desoneração na
aquisição ou importação é condicionada à exportação do produto com agregação de
valor e, por isso, a legislação refere-se ao drawback como um incentivo à
exportação [4]. Embora a legislação não determine em termos exatos o
valor a ser agregado na operação, na aprovação do ato concessório do regime, o
potencial beneficiário deverá demonstrar quais condições amparam o seu processo
produtivo e, portanto, qual será a agregação de valor e de ganho cambial para o
Brasil.
Considerando a importância
do drawback,
sua natureza, bem como a preocupação do legislador em adaptar a legislação a
conjunturas econômicas, para que o regime se mantivesse como um instrumento de
incentivo à exportação, a inclusão dos tributos incidentes sobre os serviços na
sistemática do regime de drawback é
uma questão que se impõe no atual ambiente da economia digital.
Entretanto, a implementação
do drawback sobre
serviços esbarra em uma realidade mais ampla, que é a ineficiência do sistema
tributário brasileiro, eivado de problemas estruturais e obsolescências, que
repercutem sobre a potencial implantação de um drawback sobre serviços.
O processo de desoneração das
exportações no Brasil não alcança o grau de eficiência de outros sistemas
tributários mais simples. Na grande maioria dos países do mundo, é praxe
desonerar dos tributos a exportação e onerar a importação com os tributos
incidentes sobre a produção/consumo (em muitos países, mediante a incidência de
tributos do tipo IVA - imposto sobre o valor agregado).
No Brasil, a dinâmica é
similar, porém, o sistema tributário é muito mais complexo, e há um maior
número de tributos incidentes no ciclo produtivo, que são exigidos por
diferentes entes da Federação. Por isso, não é possível desonerar alguns desses
tributos da cadeia produtiva de bens voltados à exportação; e, para outros
tributos, somente é possível desoneração tardia, mediante a utilização de
crédito ou a restituição em dinheiro.
Ou seja, no sistema
tradicional brasileiro, primeiro são recolhidos os tributos incidentes na
cadeia produtiva do produto a ser exportado e depois o exportador toma as
providências para recuperar parte dos valores desembolsados, mediante crédito,
ou, o que costuma ser mais moroso e burocrático [5], mediante restituição em dinheiro [6].
Em relação especificamente
aos serviços, são altos os custos tributários na importação, o que impacta as
condições de competitividade, havendo sete exações que oneram nosso comércio
exterior, estruturadas com racionalidades próprias, perfazendo um quase
ininteligível regime jurídico de tributação, extremamente dispendioso, agravado
pela repartição de competências tributárias, em que concorrem os três entes
federativos.
A Confederação Nacional da
Indústria estimou a carga tributária sobre os serviços em cerca de 58,60%
(também considerando IRRF, Cide-remessas, ISSQN, PIS, Cofins, IOF); e levantou
também que, entre 2014 e 2019, os serviços representaram até R$ 196 bilhões nas
vendas para o exterior, de um total de R$ 4,3 trilhões, e que o valor da
participação dos serviços no valor da produção da indústria de transformação
saltou de 9,2%, em 2005, para 23,7%, em 2015 [7].
Em face da conjuntura e dos
desafios da economia digital, bem como do ônus tributário sobre os serviços
importados, diversos países desenvolvem medidas para desonerar a tributação
sobre os serviços. Da mesma forma, o governo brasileiro acena para a criação de
um "drawback de
serviços", no âmbito do qual se aplicaria aos serviços a racionalidade já
existente para os bens corpóreos empregados em produtos voltados à exportação.
Em estudo do Ministério da
Economia, conduzido pela Subsecretaria de Operações de Comércio Exterior
(Suext), com o intuito de se fazer um benchmark sobre
a prática internacional relativa à aplicação do drawback de
serviços no direito internacional, analisou-se a sua forma de implementação e
extensão em dez países do G-20 e na União Europeia [8].
Alguns achados relevantes do
estudo apontam que todos os países analisados tributam o consumo sob um modelo
IVA, que seria mais compatível com regimes especiais para estímulo à
exportação, desonerativos de serviços. Ademais, verificou-se que esses regimes
especiais, invariavelmente, são empregados em conjunto com medidas de
desoneração dos serviços no âmbito da legislação geral, cujo escopo são os
serviços fornecidos ao longo da cadeia produtiva do bem exportado, além de
estabelecerem mecanismos de compensação e restituição de tributos eficazes e
céleres.
A Índia, um dos países
examinados no estudo, é um caso de interessante exemplificação, na medida em
que além de estar incluída no grupo dos Brics, passou pela ampla reforma de seu
sistema tributário, focada na tributação indireta, em 2017.
O Goods and Services Tax (GST) indiano veio
para substituir um sistema tributário extremamente cumulativo, com cerca de
quatro tributos divididos entre entes federativos federal e estadual, com
sobreposição de legislações, ineficiente e altos custos de conformidade,
índices elevados de evasão, diversos incentivos tributários distribuídos de
forma assistemática; isso resultava diretamente na falta de competitividade dos
produtos exportados pelo país [9].
No bojo dessa ampla reforma
indiana, foram estabelecidos regramentos para os regimes aduaneiros especiais,
incluindo-se a tributação dos serviços no drawback. A peculiaridade mais notória foi
um conceito bastante amplo de serviços para fins de elegibilidade. Empregou-se
na legislação de drawback uma
definição de "insumos-serviços" que compreenderia aqueles utilizados
por um fornecedor em um serviço resultante, aqueles utilizados por um produtor
em manufaturas, intermediárias ou finais, serviços em relação à instalação,
modernização, renovação ou reparação de fábrica, publicidade ou promoção de
vendas, pesquisas de mercado, armazenagem, atividades relacionadas aos
negócios, tais como contabilidade, auditoria, financiamento, recrutamento e
controle de qualidade, capacitação e treinamento, redes de computadores,
transportes, corretagens, dentre outros.
O modelo IVA de tributação
indireta permite amplo sistema de deduções, facilita a fiscalizações e trata
equitativamente as exportações, sob a perspectiva do comércio exterior,
considerando a adoção do princípio do destino, permitindo-se quantificar o
encargo tributário a que um bem se submete, para efeitos de reembolso ou
compensação.
A despeito de a experiência
mundial demonstrar que o modelo IVA ainda comporta altos índices de
cumulatividade, onerando as cadeias de comercialização e distribuição, o que se
deve, principalmente, à existência de operações ou agentes que não se submetem
ao tributo, como no caso de isenções, ou pela dificuldade de dedução de
créditos, gerando-se cumulatividade residual, tais efeitos distorcivos são bem
menores se comparados às outras estruturas de tributação.
Um modelo de IVA broad based (incluindo
serviços e mercadorias), com ampla possibilidade de creditamento seria
compatível com o regime de drawback para
serviços, na medida em que se permitiria a redução da cumulatividade residual
da cadeia de um produto. Nessa configuração da tributação indireta, a
possibilidade de técnicas céleres para a recuperação dos referidos créditos
gerados ao longo da cadeia, além de créditos acumulados para grandes
exportadores, coaduna-se com uma política tributária de estímulo às
exportações, com a inclusão dos serviços.
No Brasil, as discussões
sobre a tributação dos serviços e a eficiência no comércio exterior devem
refletir as tendências econômicas no plano interno e internacional e desafiar
as nossas adversidades crônicas, como o fato de ser um sistema de altos custos
de administração, com alta carga tributária, a ausência de mecanismos para a
eliminação da cumulatividade residual.
A
introdução dos serviços no regime aduaneiro especial de drawback é um item
de política tributária, especificamente de estímulo às exportações, e é muito
relevante, como se verifica na implementação dessa política em diversos países
do mundo. Contudo, os países que adotaram esse modelo possuem um ambiente
tributário favorável para tanto, especialmente por adotarem um modelo IVA
compatível com a tributação de serviços e eliminação da cumulatividade residual
das cadeias.
Nesses
termos, a adoção do drawback sobre
serviços no Brasil poderá enfrentar entraves, tanto no plano normativo, como de
sua operacionalização. Entretanto, ainda que essa implantação seja restrita em
seu alcance, pode ser um passo em direção ao reconhecimento da relevância dos
serviços para a competividade das exportações brasileiras.
Assim
retomamos as conclusões do artigo anterior [10] sobre drawback, no sentido de
que precisamos de uma reforma tributária que simplifique a tributação da cadeia
produtiva e permita que a desoneração das exportações seja mais eficiente, e
importante: incluindo os serviços. Não é apenas uma questão de melhoria
interna, pois devemos entrar para a OCDE em breve e haverá necessariamente mais
abertura comercial no Brasil. Abertura sem competitividade, como já alertamos,
pode implicar desindustrialização e redução do nível de emprego e de renda no
Brasil.
[3] A Portaria Secex nº 44/2020 elenca as operações que
geralmente podem ser realizadas sob o amparo do regime: transformação,
beneficiamento, montagem, renovação ou recondicionamento, acondicionamento ou
reacondicionamento, embalagem para transporte.
[7] OTTA, Lu Aiko e Mariana Ribeiro. Tributação de
serviços na produção mobiliza a indústria. Jornal Valor Econômico, São Paulo,
22/2/2021.
Por Liziane
Angelotti Meira é conselheira e presidente de Turma no Carf, auditora
fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do
Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da
Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela
PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela
Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por
Harvard.
Solon
Sehn é advogado, graduado pela UFPR, doutor e mestre em Direito Tributário
pela PUC-SP, professor conferencista no Curso de Especialização em Direito
Tributário do Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários),
ex-conselheiro do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) e autor,
entre outras obras, do livro "Curso de Direito Aduaneiro" (2ª ed., Rio de
Janeiro: Forense).