Para
as redes, conceito do 'best before', adotado na Europa e nos EUA, pode reduzir
o desperdício e a fome. Procon SP avisa que, hoje, vender produto fora da
validade é crime
Não é de hoje que o combate à fome é um dos
maiores desafios do planeta. Portanto, jogar alimento no lixo torna-se infame,
quando milhões de pessoas não têm o que comer no mundo.
Com base nesta premissa, surge uma
discussão na cadeia produtiva do setor de alimentos com o objetivo de esticar o
prazo de validade dos produtos, sobretudo no caso de não-perecíveis.
A Abras (Associação Brasileira de
Supermercados) levantou o assunto no ano passado e deu continuidade no 2º Fórum
da Cadeia Nacional de Abastecimento, que aconteceu neste mês.
A Abia (Associação Brasileira da Indústria
de Alimentos) também se manifestou a favor.
Nos cálculos da Abras, a taxa de
desperdício média do setor é da ordem de 1,8%, atingindo R$ 611 milhões por
ano, considerando o faturamento anual do setor, de R$ 7 bilhões.
Pouco mais da metade deste valor (57%)
refere-se a produtos descartados em razão de prazo de validade vencido.
"Com mais tempo para a venda, aumenta o
prazo para a venda comercial e solidária e as doações humanitárias", diz
Rodrigo Segurado, vice-presidente de Ativos Setoriais da Abras.
'DE PREFERÊNCIA ANTES DE'
O conceito do 'best before' (de
preferência antes de), como é chamado o movimento de estender prazos de
validade, já é praticado nos EUA, União Europeia, Reino Unido e Canadá.
Nesses países, alguns produtos possuem duas
datas de validade. A primeira indica que até aquele dia o alimento tem todas as
características asseguradas para o consumo.
A segunda data aponta que o alimento está
seguro para o consumo, mesmo que algumas das características, garantidas até a
primeira data de validade, não sejam mais as mesmas.
No caso de um pacote de bolacha, por
exemplo, crocância, aroma, textura e sabor devem estar assegurados até a data
de validade.
No conceito 'best before', pode ser
que algumas dessas características, como crocância e aroma, foram perdidas, o
que não significa que o produto esteja impróprio para o consumo.
"O cliente sabe e decide se o produto está
impróprio ou não para o consumo", diz Segurado.
De acordo com ele, as indústrias,
geralmente, colocam uma margem de segurança ao definir a data de validade de
seus produtos, podendo chegar a 30 dias.
NO EXTERIOR
Supermercados da União Europeia, de acordo
com o vice-presidente da Abras, conseguiram reduzir o desperdício em pelo menos
10% com o uso do 'best before'.
E o interessante para o consumidor, afirma
ele, é que a adoção do conceito permite maior acesso a produtos, até porque os
preços chegam a cair pela metade.
Em 2016, a WeFood, uma loja com sede em
Copenhague, na Dinamarca, foi criada para vender produtos descartados ou
próximos do vencimento a preços até 50% menores.
A maioria dos produtos vendidos na loja,
administrada por uma organização sem fins lucrativos, possui erros nos rótulos,
embalagens danificadas ou está prestes a vencer.
Exemplos como este têm tudo para se
replicar no Brasil, dizem supermercadistas, sobretudo num período de pressão
inflacionária e quando 33,1 milhões de pessoas passam fome no país.
"Sou o maior incentivador do conceito 'best
before', que está de acordo com os programas para acabar com a fome no mundo",
diz Eder Ismael Motin, controler da rede Condor.
Dados da FAO (Organização das Nações Unidas
para Alimentação e Agricultura) mostram que cerca de 30% do que se produz de
alimentos no mundo são desperdiçados.
Supermercados brasileiros chegam a
registrar taxas acima de 2% de perdas de produtos. Na Europa e nos Estados
Unidos, afirma Motin, são geralmente abaixo de 2%.
Faz alguma diferença, de acordo com
supermercadistas, tomar leite de uma embalagem que venceu às 23h59 de um dia do
que tomar às 0h01 do dia seguinte? A resposta é não.
"O consumo de um produto vai muito pelo
lado sensorial. O iogurte só estraga quando estufa.
A indústria já deixa um período maior
de shelf life do produto após o vencimento", diz Motin.
DESAFIOS
Reduzir as perdas de produtos em razão de
prazo de validade vencido é um dos grandes desafios dos supermercadistas, de
acordo com Hélio Freddi Filho, diretor da rede Hirota.
Na média, diz ele, a taxa da rede gira ao
redor de 2%, mas, em algumas categorias, chega a 10%, como é o caso das seções
de padaria, açougue, peixaria e de frutas, legumes e verduras.
"Tem alguns produtos que no dia seguinte
após a produção já são descartados. Alguns produtos como o pão francês, a rede
faz doação", diz.
A rede Hirota, assim como outros
supermercados, costumam fazer promoção de produtos que, por algum motivo, estão
próximos do vencimento e não foram comercializados.
Alguns supermercados em São Paulo até se
especializaram neste negócio. Lojas on-line também anunciam produtos próximos
ao vencimento com descontos de 50%.
"O ideal é que os supermercados não
precisem fazer este tipo de ação, pois, quando isso ocorre, revela erro no
processo de estoque", diz Celso Kayo, gerente geral comercial do Hirota.
Neste momento de pressão inflacionária e
vendas mais restritas, dizem os supermercadistas, fica ainda mais difícil
controlar estoque de milhares de itens espalhados pelas lojas.
CRIME
A pergunta que se faz entre os empresários
do setor é: colocar em prática o conceito de 'best before' no Brasil é
simples, rápido, basta a cadeia produtiva querer? A resposta é não.
Primeiramente, existe uma lei de 1990
(número 8.137) que, em seu artigo 7º, classifica como crime vender, ter em
depósito ou expor produtos impróprios para o consumo.
A pena prevista para este crime é de dois a
cinco anos de prisão ou multa, relacionada diretamente ao faturamento da
empresa, podendo chegar a R$ 12,8 milhões.
O Código de Defesa do Consumidor (Lei
8.078/90) também cita em seu artigo 18, parágrafo 6º, que são impróprios para
uso e consumo produtos com prazos de validade vencidos.
"Hoje, portanto, vender produto com prazo
de validade vencido é crime e pode dar cadeia no Brasil", afirma Guilherme
Farid, diretor-executivo do Procon- SP.
Agora, isso não significa, diz ele, que o
assunto não possa ser discutido. "E essa discussão deve começar e terminar no
Congresso Nacional. É preciso mudar leis", diz.
Vale lembrar que já há entendimento no STJ
(Superior Tribunal de Justiça) que a perícia técnica é indispensável para
verificar se um produto fora da validade é impróprio para o consumo.
Para Farid, a primeira discussão sobre o
conceito 'best before' está relacionada com política pública para o país.
"O que se pretende com a mudança da lei,
reduzir o desperdício de alimentos? E essa mudança vai beneficiar o consumidor?
A questão do 'best before' engloba tudo isso."
Hoje, a política pública implementada no
Brasil não prevê a extensão da validade dos produtos, embora a discussão, para
Farid, seja bem-intencionada.
Estudos técnicos precisam ser feitos para
dar base às eventuais mudanças na legislação brasileira. "O debate precisa ser
provocado."
Em um cenário geral, diz ele, ninguém é
favorável ao desperdício de alimentos e ninguém é contra a doações para quem
precisa.
"Se uma nova política pública for capaz de
garantir um alimento seguro e evitar o desperdício, ela é bem-vinda. Mas tudo
tem de ser discutido. Não dá para decidir em uma canetada."
De acordo com Farid, atualmente, cerca de
80% das autuações feitas no comércio em geral estão relacionadas com a venda de
produtos fora do prazo de validade.
"Esta é uma infração recorrente", afirma.
Para os empresários do setor, a multa
deveria estar relacionada à venda do produto ou de uma categoria, e não incidir sobre o
faturamento mensal da loja.
Supermercadistas chegam a falar em
'indústria da multa' ao se referir especialmente às autuações por causa de
produtos vendidos fora da data de validade.
Fonte:
Diário do Comércio (SP)