O debate em torno da problemática da
"pejotização" e da terceirização na Justiça do Trabalho ressurge
agora com forte preocupação para nós estudiosos da área e, sobretudo, para a
advocacia trabalhista, em razão de recentes decisões proferidas pelo Supremo
Tribunal Federal.
A "pejotização", como é cediço, é
conhecida no meio jurídico como uma prática para mascarar uma verdadeira
relação de emprego, e, por conseguinte, obter a redução de custos. Isto ocorre
quando o contrato de trabalho que deveria ser firmado com a pessoa física do
trabalhador se transmuta, ao arrepio da legislação trabalhista, para um
contrato de prestação de serviços através de uma pessoa jurídica por ele
constituída.
Já na terceirização ocorre a efetiva
transferência da atividade (fim ou de meio) da empresa contratante para um
prestador de serviços contratado, empresa jurídica essa de direito privado à
luz do artigo 44 do Código Civil [1], que possua
capacidade econômica coadunável com a sua execução, cujo contrato seja compatível
com seu número de empregados, tal como impõem os artigos 4º-A e 4º-B da Lei
6.019/74 [2], alterada que foi pelas Leis 13.429/2017 (Terceirização)
13.467/2017 (Reforma Trabalhista).
É verdade que na área jurídica algumas
bancas de advocacia já sinalizaram positivamente no incentivo da terceirização
de advogados para empresas, seus clientes, levando em conta as necessidades dos
respectivos departamentos jurídicos [3]. Por isso é preciso um olhar
precavido sobre este fenômeno da "pejotização", para se evitar que
haja uma manobra para fraudar a legislação e burlar direitos trabalhistas.
Nesse sentido, oportunos são os
ensinamentos do professor Homero Batista [4]:
"O uso
corriqueiro da constituição de empresas de fachada, para esconder a relação de
emprego e o trabalhador e o empregador, gerou até mesmo algumas novas na língua
portuguesa, como pejotização, empregado pejotizado ou pejotizar a mão de obra,
tudo girando em torno da da conhecida sigla PJ, de pessoa jurídica.
(...). O panorama é
desalentador. Numerosos segmentos profissionais foram simplesmente varridos do
mundo empregatícios para renascerem no mundo pejotizado, como médicos,
engenheiros de produção, técnicos de informática e atividades intelectuais,
sendo muito difícil sequer imaginar que alguns deles tenham capacidade de
resistência quanto a modalidade de contratação definida pelo empregador, quer
dizer, pelo dador dos serviços. Ouso dizer que se criou até mesmo um estigma em
torno desse assunto, de modo que a vaga para o médico empregado celetista
normalmente é vista com desconfiança e aufere renda menor do que a vaga para o
médico pejotizado, que deve sacar notas fiscais de prestação de serviços para a
clínica ou hospital, formando-se um enorme círculo vicioso sob severas críticas
tanto à CLT quanto à Justiça do Trabalho. A incompreensão campeia".
Dito isso, de acordo com uma nova Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), as possibilidades de trabalho são melhores para
as pessoas jurídicas que, na maior parte das vezes, atuam da mesma forma que os
empregados celetistas [5]. De outro norte, outro importante estudo
concluiu que, com o advento das leis da terceirização e da reforma trabalhista,
o fenômeno da "pejotização" aumentou entre a população mais
jovem [6], sobretudo em tempos de pandemia da Covid-19.
Ora, é de conhecimento notório que há uma
enorme diferença nos custos na contratação do empregado celetista em comparação
ao contrato de prestação de serviços através de pessoa jurídica. Por um lado, o
empregado celetista pode chegar a ter retido na fonte a tributação de até 27,5%
do seu salário, ainda que faça jus ao recebimento de benefícios legais e
normativos, tais como FGTS (8% mensal + multa rescisória de 40%), férias
remuneradas com o terço constitucional, 13º salário, aviso prévio, horas
extras, salário família, vale-alimentação, vale-transporte, seguro-desemprego,
plano de saúde etc; lado outro, no modelo de contratação da "pejotização",
conquanto os benefícios legais e normativos não existam, é certo também que não
há imposto de renda retido na fonte.
De igual modo, no que diz respeito ao custo
da empresa, o recolhimento patronal do INSS gira na média do percentual de 28%
no contrato celetista, ao passo que na "pejotização" este pode
atingir 14%, em observância a faixa salarial. Frise-se, por oportuno, que ao
emitir a nota fiscal o prestador de serviço também pode optar quanto ao
pagamento do INSS para adquirir direito à aposentadoria.
Feita essa contextualização, não são raros
os casos em que profissionais liberais optam ou
são competidos e incentivados a
aderirem à sistemática da "pejotização" que, tal como foi dito acima,
aparenta ser mais atrativa, haja vista que o salário líquido é maior comparado
ao que receberia no contrato celetista, diante da ausência de retenção de
imposto de renda.
Acontece, porém, que a pactuação quanto à
forma do contrato (celetista ou PJ) entre as partes contratantes é vedada por
lei, tanto que foi explicitada na própria Lei da Reforma Trabalhista que, ao
acrescentar o artigo 611-B ao texto celetista, logo no seu inciso I vedou a
possibilidade, ainda que por via negociação coletiva, de se transacionar "normas de identificação
profissional, inclusive as anotações na Carteira de Trabalho e Previdência
Social". Fosse essa prática válida certamente muitos seriam os
trabalhadores e empresas que, ao invés de assumirem os custos inerentes ao
sistema celetista de contratação, fariam naturalmente opção pela modalidade da
"pejotização" com a consequente redução da carga tributária.
Entrementes, fato é que, recentemente, o E.
STF, ao apreciar a Reclamação Constitucional nº 53.899 [7], em decisão
monocrática, considerou válido na hipótese "sub judice" o contrato de
associação firmado entre uma advogada e um escritório de advocacia. Na prática,
foram suspensos os efeitos, ainda que a título provisório, das decisões de
primeira e segunda instâncias da JT que reconheciam o vínculo de emprego entre
as partes.
Em sua decisão, o relator ministro Dias
Toffoli, para justificar a concessão da medida liminar, afirmou que "a discussão permeia a
verificação da regularidade da contratação de pessoa jurídica formada por
profissional liberal para prestar serviços terceirizados na atividade-fim da
contratante, o que demonstra a plausibilidade na tese de desrespeito à
autoridade do Supremo Tribunal Federal pela autoridade reclamada" [8].
Tal decisão segue a mesma "ratio decidendi" de
outra Reclamação Constitucional de nº 47.843, a qual, já transitada em julgado
após o julgamento do recurso de agravo regimental, concluiu pela licitude da
terceirização, através do fenômeno da "pejotização", por meio da
contratação de pessoa jurídica formada no caso por médicos prestadores de
serviços terceirizados a um determinado hospital contratante [9]. Na
ocasião, ficaram vencidas as ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber, prevalecendo
o voto do ministro redator Alexandre de Morais, o qual foi acompanhado pelos
ministros Luis Roberto Barroso e Dias Toffoli.
Aliás, esse é o entendimento que vem sendo
aplicado no âmbito da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a saber:
"CONSTITUCIONAL,
TRABALHISTA E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NA RECLAMAÇÃO. OFENSA AO QUE
DECIDIDO POR ESTE TRIBUNAL NO JULGAMENTO DA ADPF 324 E DO TEMA 725 DA
REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO PROVIDO. 1. A controvérsia, nestes autos, é comum
tanto ao decidido no julgamento da ADPF 324 (rel. min. ROBERTO BARROSO), quanto
ao objeto de análise do Tema 725 (RE 958.252, rel. min. LUIZ FUX), em que esta
CORTE fixou tese no sentido de que: 'É lícita a terceirização ou qualquer outra
forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas,
independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a
responsabilidade subsidiária da empresa contratante' . 2. A Primeira Turma já
decidiu, em caso análogo, ser lícita a terceirização por 'pejotização', não
havendo falar em irregularidade na contratação de pessoa jurídica formada por
profissionais liberais para prestar serviços terceirizados na atividade-fim da
contratante (Rcl 39.351 AgR; rel. min. ROSA WEBER, Red. p/ Acórdão: ALEXANDRE
DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 11/5/2020). 3. Recurso de Agravo ao qual
se dá provimento" (DJe de 22/2/2022).
Contudo, a efetiva tese fixada pela Suprema
Corte no julgamento da ADPF 324 [10], a que se pautaram as reclamações
constitucionais ora acima citadas, caminhou no sentido de que "a terceirização não enseja,
por si só, precarização do trabalho, violação da dignidade do
trabalhador", todavia, o seu exercício abusivo poderia
ensejar tal violação.
De igual sorte a tese firmada no Tema
nº 725, da sistemática da repercussão geral do STF, conquanto tenha reputada
ser "lícita a terceirização
ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas
distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas",
partiu naturalmente da adoção de terceirizações lícitas, em que observadas as
diretrizes da Lei nº 13.429/2017 que disciplina o assunto, e não a prática
ilegal da "pejotização" que não se confunde com a típica e regular
terceirização de prestação de serviços, cuja fraude, uma vez evidenciada, atrai
o reconhecimento do liame empregatício, se presentes no caso os requisitos
contidos no artigo 2º [11] e 3º [12] da Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT).
A terceirização de serviços, referendada
pelo E. STF na ADPF 324 e no RE nº 958.252 (Tema 725 RG), não é
sinônimo de intermediação de mão-de-obra, esta última apenas permitida por lei
na modalidade de contrato temporário. Tanto é assim que, para fins de uma
regular e lítica terceirização, são obrigações impostas pela legislação: (1)
ser empresa jurídica privada que possua capacidade financeira com o objeto do
contrato de prestação de serviços pactuado; (2) a existência de empregados pela
própria empresa terceirizada contratada; (3) ter inscrição no Cadastro Nacional
da Pessoa Jurídica (CNPJ) e registro na Junta Comercial; (4) o contrato de
prestação de serviços, que deve ser escrito, conterá a especificação do
serviço a ser prestado, o prazo para realização do serviço, quando for o caso,
e o seu respectivo valor.
Neste desiderato, se a
"pejotização" implica, na prática, que o trabalhador seja, a um só
tempo, a empresa contratante e o prestador de serviços, naturalmente o conceito
basilar da própria terceirização cai por terra, afinal, essa pressupõe na
essência uma especialidade na
execução daquele serviço contratado, em autêntica triangulação de atividades
entre contratante, empresa contratada e o empregado prestador de serviço. Logo,
é impossível equiparar a "pejotização" com a regular terceirização.
Bem por isso, seja porque a validade formal
do contrato de prestação de serviços na "pejotiação" não pode ser
chancelada do ponto de vista da lei, seja porque a presença no caso concreto
dos requisitos legais da relação de emprego afasta a adoção da terceirização,
certo é que deve prevalecer o princípio da primazia da realidade, de modo que,
com base no artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho, "serão nulos de pleno direito
os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar os
preceitos contidos na presente Consolidação".
Se é verdade que as normas do Direito do
Trabalho podem sofrer mutações por força das novas diretrizes jurisprudenciais
advindas do Supremo Tribunal Federal, de igual modo esta flexibilidade não pode
ser confundida com desregulamentação e/ou desconstrução de direitos.
Em arremate, é forçoso lembrar que todo e
qualquer contrato de prestação de serviços, via "pejotização" ou via
terceirização, por meio do qual se pretende afastar o vínculo de emprego, exige
um olhar ponderado e prudente, a fim de verificar se a "forma" não é
apenas uma máscara da realidade de um típico liame empregatício.
00conjufullScre
Ricardo Calcini é mestre em Direito do
Trabalho pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador
trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da revista Síntese
Trabalhista e Previdenciária, coordenador acadêmico do projeto "Prática
Trabalhista" (ConJur), membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito
Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo
(Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.
Leandro Bocchi de Moraes é
pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do
Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em
Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro
de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro
da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de
Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo "O
Trabalho Além do Direito do Trabalho", da USP.
Fonte:
Revista Consultor Jurídico