O procedimento do incidente de
desconsideração da pessoa jurídica disciplinado pelo Código de Processo Civil
constitui um importante avanço na preservação dos direitos fundamentais. Traz
maior segurança jurídica para sócios e empresários ao impor a estrita
observância ao contraditório. E evita surpresa à parte, tumulto processual.
Tumulto que, não raro, é observado em alguns processos.
Se aplicada com razoabilidade, garantindo o
devido processo legal e a ampla defesa, a técnica pode evitar prejuízos decorrentes
de simulações, fraudes e ocultação de patrimônio, ao trazer mecanismos para
tornar ineficazes práticas ilícitas do devedor. A teoria, porém, só pode ser
invocada se não estiver prescrito o crédito fraudado ou simulado.
Como evidenciado por Nelson Rosenvald e
Cristiano Chaves de Farias, "a teoria da desconsideração da personalidade
jurídica não pretende destruir o histórico princípio da separação patrimonial
da sociedade e seus sócios, mas, contrariamente, servir como mola propulsora da
funcionalização da pessoa jurídica, garantindo as suas atividades e coibindo a
prática de fraudes e abusos através dela".1
Há um acórdão do STJ, de relatoria do Min.
Marco Aurélio Bellizze, que elucida o instituto de que aqui se trata com
clareza solar: "A desconsideração da personalidade jurídica tem como
finalidade a superação episódica da personalidade da pessoa jurídica, em caso
de fraude, abuso ou simples desvio de função, objetivando a satisfação do
terceiro lesado junto ao patrimônio dos próprios sócios, que passam a ter
responsabilidade pessoal pelos débitos contraídos pela empresa" (AgInt na
Pet n. 12.712/SP, Terceira Turma, julgado em 23/9/2019).
A lei processual contém outra importante
regra relativa à matéria, lastreada na possibilidade de que a desconsideração
da pessoa jurídica se processe na forma "inversa", adentrando ao
patrimônio da sociedade para pagamento de dívida pessoal do sócio. A
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, aliás, já se manifestou nesse
sentido: "À semelhança do que ocorre na hipótese de sucessão de empresas,
em que a sucessora é incluída no processo para atuar como se fosse a própria
parte sucedida, a pessoa jurídica atingida pela desconsideração inversa da
personalidade jurídica passa a integrar a relação processual na condição de
parte" (REsp n. 1.978.261/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva,
Terceira Turma, julgado em 5/4/2022).
Para Rolf Madaleno, a desconsideração
inversa da personalidade jurídica só se afigura legítima quando se verifica que
a sociedade "se tornou mera extensão da pessoa física do sócio".
Trata-se, no entender do autor, de hipótese em que se verifica haver
"abuso da personalidade física através do mau uso da pessoa
jurídica".2
A observância do contraditório e da ampla
defesa evitam decisões injustas e descabidas, como por exemplo, quando a pessoa
jurídica não paga porque simplesmente não tem patrimônio. Ou então quando
promoveu uma dissolução irregular perante a Junta Comercial, sem incorrer em
fraude ou simulação. O STJ tem entendido que: "A mera demonstração de
insolvência da pessoa jurídica ou de dissolução irregular da empresa sem a
devida baixa na junta comercial, por si sós, não ensejam a desconsideração da
personalidade jurídica" (AgInt no AREsp n. 1.797.130/SP, Rel. Min. Raul
Araújo, Quarta Turma, julgado em 21/6/2021).
Segundo Fábio Ulhoa Coelho, casos como o
acima enunciado demonstram a aplicação incorreta da teoria da desconsideração
da personalidade jurídica. Para o autor, "essa aplicação incorreta
reflete, na verdade, a crise do princípio da autonomia patrimonial, quando
referente a sociedades empresárias. Nela, adota-se o pressuposto de que o
simples desatendimento de crédito titularizado perante uma sociedade, em razão
da insolvabilidade ou falência desta, seria suficiente para a imputação de
responsabilidade aos sócios ou acionistas".3
Neste sentido, o STJ já afirmou que
jurisprudência é pacífica no sentido de que "a existência de indícios de
encerramento irregular da sociedade aliada à falta de bens capazes de
satisfazer o crédito exequendo não constituem motivos suficientes para a
desconsideração da personalidade jurídica, eis que se trata de medida
excepcional e está subordinada à efetiva comprovação do abuso da personalidade
jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão
patrimonial" (AgInt no AREsp 2.021.508/RS, Rel. Min. Luis Felipe
Salomão, Quarta Turma, julgado em 11/4/2022).
O STJ também entende que, se o sócio tiver
apenas um único bem imóvel que sirva de morada, não tendo outros bens
penhoráveis, a penhora não pode recair sobre esse bem de família: "a mera
desconsideração da personalidade jurídica não tem o condão de afastar a
impenhorabilidade do bem de família regularmente constituído, ressalvado o
enquadramento nas hipóteses excepcionadas em lei" (AgInt no AREsp n.
935.235/RJ, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 1/6/2020).
Decisão recente do tribunal diz também ser
impossível que a desconsideração atinja o patrimônio do acionista minoritário:
"A desconsideração da personalidade jurídica, em regra, deve atingir
somente os sócios administradores ou que comprovadamente contribuíram para a
prática dos atos caracterizadores do abuso da personalidade jurídica"
(REsp n. 1.861.306/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma,
julgado em 2/2/2021).
Da mesma forma entende o Tribunal de
Justiça de São Paulo: "Sócio minoritário com 1% (um por cento) do capital
social e sem poderes de administração que não deve responder pessoalmente pela
dívida da pessoa executada e, por isso, deve ser excluído do polo passivo da
relação jurídica processual" (TJSP, Agravo de Instrumento
2024937-74.2022.8.26.0000, Relatora Des. Ana Lucia Romanhole Martucci, 33ª
Câmara de Direito Privado, julgado em 03/06/2022).
A premissa é de que o sócio-administrador
age com dolo ou culpa no ato abusivo, sendo que o sócio minoritário responde
apenas excepcionalmente, ou seja, quando sua conduta omissiva ou comissiva
contribuiu para a ocorrência do evento que autoriza a desconsideração da
personalidade jurídica. Nesse sentido vai o Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul: "Descabe a inclusão de sócio minoritário no polo passivo da
execução, em razão da desconsideração da personalidade jurídica, quando não
possui cargo de gestão, nem tampouco comprovado que tenha concorrido para a dissolução
irregular da empresa executada" (Apelação Cível nº 70082719196, Décima
Câmara Cível, Rel. Des. Jorge Alberto Schreiner Pestana, julgado em
05/03/2020).
É importante destacar, porém, que a decisão
judicial que decreta a desconsideração da personalidade jurídica somente
resolve uma questão processual, determinando que o sócio se torne
parte executada, mas não implica sua condenação.
Como destaquei em outro espaço, na
companhia de Luiz Rodrigues Wambier e Regiane França Liblik,4 a desconsideração
da personalidade jurídica, quando aplicada à luz das garantias fundamentais
processuais, assume o valoroso papel de evitar prejuízos decorrentes de
simulações, fraudes e ocultação de patrimônio, tornando ineficazes as
tentativas do devedor de fazer uso da empresa como escudo patrimonial.
É preciso, contudo, como lá afirmamos, que
haja prudência na aplicação da medida, que deve ser empregada em situações
excepcionais e no contexto da ordem constitucional.
1 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD,
Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 15. ed. Salvador: Ed.
JusPodivm, 2017. p. 486.
2 MADALENO, Rolf. A desconsideração
judicial da pessoa jurídica e da interposta pessoa física no direito de família
e no direito das sucessões. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 81-82.
3 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito
comercial: direito de empresa. 4. ed. em e-book baseada na 23. ed. impressa. V.
2, p. RB-2.7.
4 WAMBIER, Luiz Rodrigues; LOBO, Arthur
Mendes; LIBLIK, Regiane França. Tipologia das sociedades e a desconsideração da
personalidade jurídica. Revista eletrônica de Direito Processual - REDP, Rio de
Janeiro, a. 12, v. 19, n. 3, p. 523-542, set./dez. 2018.
Autor:
Arthur Mendes Lobo
Advogado.
Fonte:
https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/370824/o-ilicito-e-a-protecao-ao-patrimonio-dos-socios