De início, importante explicar, sem muito
"juridiquês", o que é planejamento patrimonial e sucessório.
Projetos de planejamento patrimonial e sucessório são em regra conduzidos por
equipes multidisciplinares, envolvendo advogados especializados em Direito
Tributário, Societário e de Família e Sucessões, além de consultores
financeiros, de investimentos e de seguros, entre outros.
No âmbito desses projetos são analisados os desenhos familiares e patrimoniais
dos interessados, objetivando-se encontrar a forma mais eficiente,
especialmente sob a ótica tributária, de reestruturar o patrimônio - imóveis,
ativos financeiros, participações societárias etc. -, de modo a atender os
objetivos predeterminados pela própria família, seja na condução dos negócios
no âmbito das empresas familiares, seja para eventuais adiantamentos de
legítima aos herdeiros, entre outros tantos objetivos possíveis.
De fato, as possibilidades são diretamente proporcionais à capacidade criativa
dos seres humanos na condução das suas relações, sendo imprescindível ressaltar
que não existe uma "receita de bolo" aplicável indiscriminadamente a
qualquer projeto. A avaliação deve ser criteriosa e realizada caso a caso,
ponderando-se todos os interesses de todos os envolvidos.
Nesse contexto, vivemos neste momento uma verdadeira janela de oportunidade
relacionada à possibilidade de ainda maior eficiência tributária na implantação
de algumas das soluções comumente utilizadas nos referidos projetos de
planejamento patrimonial e sucessório. Explica-se.
O Poder Judiciário, por seus tribunais superiores, vem decidindo recentemente
uma série de questões tributárias, de especial interesse dos contribuintes
pessoas físicas, que há muito mereciam uma definição e que trazem importantes
consequências para a respectiva tributação.
Com efeito, num projeto de planejamento patrimonial e sucessório, os tributos
que em regra demandam mais atenção são o Imposto de Renda (IR), em especial
sobre o ganho de capital, o Imposto sobre Transmissões Causa Mortis e
Doação (ITCMD) e o Imposto sobre Transmissões entre Vivos de Bens Imóveis
(ITBI).
Trata-se o IR de um tributo federal, que pode incidir sobre os rendimentos
auferidos ou ser exigido na alienação de bens ou direitos, neste último caso
incidindo sobre a diferença positiva entre o valor da alienação e o anterior
custo de aquisição.
O
IRPF sobre rendimentos é assim calculado:
- até R$ 22.847,76 no ano: a alíquota é de zero, assim como a parcela a
deduzir;
- de R$ 22.847,77 até R$ 33.919,80 no ano: alíquota de 7,5% e parcela a deduzir
de R$ 1.713,58;
- de R$ 33.919,81 até R$ 45.012,60 no ano: alíquota de 15% e parcela a deduzir
de R$ 4.257,57;
- de R$ 45.012,61 até R$ 55.976,16 no ano: alíquota de 22,5% e parcela a
deduzir de R$ 7.633,51;
- acima de R$ 55.976,16 no ano: alíquota de 27,5% e parcela a deduzir de R$
10.432,32.
Já
no caso do ganho de capital, temos:
-
até R$ 5 milhões: alíquota de 15%;
- entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões: alíquota de 17,5%;
- entre R$ 10 milhões e R$ 30 milhões: alíquota de 17,5%;
- acima de R$ 30 milhões: alíquota de 22,5%.
O ITCMD, por outro lado, é estadual, podendo sua alíquota variar de 4% a 8%,
incidindo sobre o valor de mercado de quaisquer bens ou direitos transmitidos a
título gratuito, seja em decorrência de herança, seja por meio de doação.
Por fim, o ITBI é municipal e também incide sobre o valor de mercado do bem
imóvel transmitido, porém neste caso será necessariamente entre vivos e
mediante contraprestação. A alíquota na maior parte dos municípios brasileiros
é de 2% ou 3%.
Pois bem. O que vêm recentemente dizendo o Supremo Tribunal Federal (STF) e o
Superior Tribunal de Justiça (STJ) a respeito desses tributos e que tem
absoluta relevância para projetos de planejamento patrimonial e sucessório?
Veja-se:
(1)
IR/rendimentos:
Decisão do STF proferida em junho e
publicada em 23 de agosto, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) 5.422, ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam),
declarou a inconstitucionalidade da incidência do imposto de renda sobre
valores recebidos a título de alimentos ou pensão alimentícia oriundos do
Direito de Família, entendendo que os valores recebidos pelo credor de
alimentos não representam acréscimo patrimonial apto a atrair a incidência do
imposto, que nesse sentido assume nítido caráter de bitributação, na medida em
que já tributados quando do auferimento da renda pelo alimentante.
Reconheceu-se, ademais, que além de violar a garantia do mínimo existencial do
alimentando, a manutenção da incidência do IR nesses casos acabaria por
afrontar a igualdade de gênero determinada pela Constituição, em especial
considerando a realidade estatística brasileira, em que após a dissolução do
vínculo conjugal em regra a mãe fica com a guarda preponderante, senão isolada,
dos filhos. "Além de criar, assistir e educar os filhos, elas ainda devem
arcar com ônus tributários dos valores recebidos a título de alimentos, os
quais foram fixados justamente para atender às necessidades básicas da criança
ou do adolescente", salientou o ministro Roberto Barroso.
Em 3 de outubro foi então publicado o acórdão que rejeitou os embargos de
declaração opostos pela União objetivando a modulação dos efeitos da decisão
acima, de forma que restou confirmada a possibilidade de restituição dos
valores indevidamente pagos nos últimos cinco anos a esse título, por meio da
retificação das declarações de ajuste anual do imposto de renda dos alimentandos/responsáveis.
(2)
IR/ganho de capital
Outra discussão que vem tomando corpo no
Poder Judiciário relaciona-se com a não incidência de IR nas cessões de
precatórios, títulos representativos de dívidas do poder público com
particulares, em razão de ações judiciais por estes últimos vencidas.
Como o pagamento de precatórios em regra ocorre com atraso de anos, muitas
vezes décadas, é usual que ocorra a cessão desses títulos pelos seus titulares
para terceiros interessados, às vezes até mesmo para fundos de investimentos em
direitos creditórios, cessão essa que envolve a aplicação de percentuais de
deságio, ou seja, descontos sobre o valor de face dos títulos.
Resumidamente, os titulares dos precatórios (cedentes) abdicam de uma parcela
financeira do direito que lhes foi reconhecido em troca de recebimento
antecipado, enquanto o cessionário passa a deter o direito ao recebimento do
valor integral daquele título (valor de face mais atualização), porém sem que
haja uma data certa para tal recebimento.
Nesse contexto, chama atenção uma hipótese bastante interessante de recuperação
do imposto de renda/ganho de capital eventualmente pago nas cessões de
precatórios ocorridas nos últimos cinco anos. Explica-se.
A Receita Federal presume que na cessão de precatórios o custo de aquisição é
igual a zero, de forma que exige o imposto de renda sobre todo o valor recebido
pelo cedente, supondo tratar-se esse montante de ganho de capital, desconsiderando
o fato de a cessão desses títulos se dar em regra com deságio (desconto) em
relação ao seu valor de face.
O STJ, porém, vem entendendo que o valor de face dos precatórios equivale ao
seu custo de aquisição, de forma que na cessão com deságio se tem uma perda de
capital, e não um ganho. Nesse sentido, quaisquer valores pagos a título de IR
sobre esse ganho, em verdade inexistente, é passível de restituição, mediante
ação judicial.
Veja-se este exemplo: "A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é
firme no sentido de que a alienação de precatório com deságio não implica ganho
de capital, razão por que não há o que ser tributado em relação ao valor
recebido pela cessão do crédito" (AgInt no REsp 1.792.613/RJ).
Também é possível buscar preventivamente
uma decisão do Poder Judiciário desobrigando o recolhimento do IR/ganho de
capital, antes mesmo de firmado um acordo para cessão com deságio, sendo certo
que essa discussão se mostra muito interessante nos dias de hoje, em que a
atividade comercial de créditos judiciais está latente, sendo pauta constante
no universo das boutiques de investimentos e até mesmo bancos.
Muito embora ainda não haja um posicionamento definitivo norteador do Poder
Judiciário sobre o tema, capaz de garantir a certeza de sucesso na tese, as
decisões existentes instigam os contribuintes a buscarem o Poder Judiciário
para tentar afastar o IR em operações presentes e/ou recuperar o IR pago quando
da cessão de precatório com deságio, com chances possíveis tendentes a prováveis
de sucesso.
(3)
ITCMD/bens no exterior
Adentrando-se a esfera estadual de
tributação, chama atenção a discussão a respeito da possibilidade ou não de
exigência do ITCMD na herança ou doação de bens e ativos mantidos no exterior.
Com efeito, conforme mencionado acima, a regra geral é de que incidirá o ITCMD
na transmissão de bens móveis e direitos, sendo devido ao estado em que
domiciliado o falecido/doador.
No entanto, quando se estiver falando de falecido/doador com domicílio ou
residência no exterior ou o falecido/doador possuir bens, tiver sido
residente/domiciliado ou tiver seu inventário processado no exterior,
recentemente o STF declarou a inconstitucionalidade da cobrança do referido
tributo pelos estados, na medida em que inexiste lei complementar nacional que
estabeleça a regra geral tributária aplicável.
Com efeito, o STF fixou entendimento favorável aos contribuintes, sob o regime
da repercussão geral (Tema 825, aplicação erga omnes), durante o
julgamento do Recurso Extraordinário nº 851.108, do estado de São Paulo. Além
disso, julgou procedentes diversas ações diretas de inconstitucionalidade
ajuizadas contra legislações locais: Paraná (ADI 6.818), Tocantins (ADI 6.820),
Santa Catarina (ADI 6.823), Mato Grosso do Sul (ADI 6.840), Rio de Janeiro (ADI
6.826), Maranhão (ADI 6.821), Rondônia (ADI 6.824) e Distrito Federal (ADI
6.833).
É importante notar que em sede de modulação de efeitos o STF restringiu
aplicabilidade da sua própria decisão aos fatos geradores ocorridos
posteriormente a 19/4/2021, data de publicação do acórdão do julgamento de
mérito do caso. Diante disso, com exceção às ações judiciais já em curso
naquela data, não há como fugir ao pagamento do ITCMD para fatos geradores
anteriores ao julgamento ou mesmo pedir restituição de valores eventualmente
recolhidos.
Por outro lado, mais recentemente ainda - no último dia 3 de junho - foi
provida a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 67, em que
o STF declarou que há omissão legislativa na regulamentação do artigo 155, parágrafo
1º, inciso III, da Constituição, referente às regras para que os estados e o
Distrito Federal possam instituir a cobrança do imposto quando o doador tiver
domicílio ou residência no exterior ou se a pessoa falecida possuir bens, tiver
sido residente/domiciliada ou tiver seu inventário processado no exterior.
A partir daquela data, o Congresso tem 12 meses para editar referida lei
complementar de caráter nacional e depois disso os Legislativos estaduais ainda
deverão editar as próprias legislações locais. Até que isso ocorra, porém, não
há que se falar em tributação, tratando-se, portanto, de uma interessante
janela de oportunidade (ao menos sob a ótica da legislação brasileira), caso se
entenda por bem realizar algum movimento tendente a adiantar, por meio de
doação em vida, a parcela legítima da herança (equivalente a 50% do patrimônio
do doador, no momento da doação, destinada aos herdeiros necessários) ou mesmo
para destinar a parte disponível (demais 50%, destináveis livremente).
(4)
ITCMD/seguros de vida e previdência privada
Outro interessante ponto a ressaltar é que
valores de seguro de vida pagos aos beneficiários previamente indicados pela
pessoa falecida não assumem caráter de herança, não compondo o espólio e, por
consequência, não integrando a base de cálculo do ITCMD. É o que dispõe
expressamente o artigo 794 do Código Civil: "No seguro de vida ou de
acidentes pessoais para o caso de morte, o capital estipulado não está sujeito
às dívidas do segurado, nem se considera herança para todos os efeitos de
direito".
No tocante aos valores pagos em decorrência de Plano Vida Gerador de Benefício
Livre (VGBL) ou Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL), porém, ainda não há
uma definição exata pelo Poder Judiciário.
Vale recordar que no momento da escolha do plano, avalia-se em regra a
incidência do IR: no VGBL incide sobre os rendimentos, enquanto no PGBL sobre o
valor total. No momento do pagamento, porém, a discussão migra para o ITCMD.
E há certa tendência pelos Tribunais locais de excluir o VGBL da incidência do
ITCMD por sua maior semelhança aos seguros de pessoa, mantendo-se a incidência
para o PGBL, por sua maior proximidade com uma poupança previdenciária.
Quanto aos estados, em sua maioria afirmam pela incidência em ambos os planos,
mas no estado de São Paulo, por exemplo, o próprio sistema eletrônico de
preenchimento da declaração de ITCMD exclui ambos do respectivo cálculo.
Para dirimir essa dúvida, em maio último o STF reconheceu, nos autos do RE
1.363.013, repercussão geral à referida discussão, travada entre o estado do
Rio de Janeiro e a Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados, de
Capitalização e de Previdência Complementar Aberta (Fenaseg).
Uma vez finalizado esse julgamento, a decisão que vier a ser tomada vinculará
todos os órgãos do Poder Judiciário, que deverão replicar o entendimento
firmado pelo STF.
(5)
ITBI/base de cálculo
A última oportunidade que traremos
refere-se à base de cálculo do ITBI, tributo de absoluta relevância quando da
reestruturação do patrimônio imobiliário de determinada família, em geral
mediante aumento do capital social de uma pessoa jurídica e sua integralização
pela conferência dos imóveis detidos pelos respectivos sócios pessoas físicas.
É de se notar que não incidirá o ITBI caso a pessoa jurídica recebedora dos
imóveis não tenha preponderância imobiliária, ou seja, cujas receitas mensais
não decorram em sua maior parte de atividades imobiliárias (quais sejam, venda,
locação ou arrendamento de imóveis), ao menos ao longo dos 3 anos seguintes em
casos de empresas recém-constituídas.
Caso haja preponderância imobiliária, porém, haverá a incidência do ITBI, sendo
certo que a maior parte dos municípios brasileiros determinam que a base de
cálculo do referido tributo equivalerá ao seu valor de mercado, valor esse em
regra superior à própria base de cálculo do IPTU e muitas vezes fixado
unilateralmente pela própria municipalidade.
Não obstante, em março último o STJ fixou, sob o rito dos recursos repetitivos
(Tema 1.113, REsp 1.937.821), as três teses abaixo, vinculando os demais
órgãos do Poder Judiciário:
1. A base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições
normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem
sequer pode ser utilizada como piso de tributação;
2. O valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é
condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco
mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (artigo 148
do Código Tributário Nacional - CTN);
3. O município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com
respaldo em valor de referência por ele estabelecido de forma unilateral.
Considerando-se as três teses fixadas é
possível alcançar excelente economia no recolhimento do ITBI eventualmente
incidente, mediante adequação da base de cálculo do ITBI ao valor efetivo da
operação, sem a necessidade de observância de possíveis valores de referência
fixados pelo próprio município.
Autora: Paula Beatriz Loureiro
Pires é advogada, especialista em Direito Tributário e política e relações
internacionais, atuando preventiva e repressivamente em planejamentos
patrimoniais e sucessórios, planejamentos tributários e Direito Tributário em
geral.
Fonte: Revista Consultor
Jurídico