A
desconsideração da personalidade é tema bastante instigante e sensível.
Resultado da influência do common law (disregard
doctrine, lifting the corporate veil), o
instituto tem como forças motrizes a proteção e reforço da própria autonomia
patrimonial da pessoa jurídica. Embora possa parecer inicialmente um
contrassenso, a bem da verdade é que tal medida - extrema e concisa - emerge da
necessidade de proteção de fraude ou abuso de direito, por parte da pessoa
coletiva. Explica-se:
A partir da
possibilidade de materialização da desconsideração da personalidade jurídica,
os sócios e administradores são reforçados - ainda que indiretamente - a empenharem-se
voltados para o bem comum da sociedade empresária, de forma a preservar a
função social (propósito) desta. Ao fim e ao cabo, reprime-se a possibilidade
de manipulação da pessoa jurídica capaz de fraudar credores.
No ponto, Fábio
Ulhôa Coelho é cirúrgico:
"[a] teoria da desconsideração da personalidade jurídica não é
contrária à personalização das sociedades empresárias e à sua autonomia em
relação aos sócios. Ao contrário, seu objetivo é preservar o instituto,
coibindo práticas fraudulentas e abusivas que dele se utilizam" [1].
Na perspectiva
do ordenamento jurídico brasileiro, a desconsideração da personalidade jurídica
constitui a via adequada para que - exauridas as tentativas de localização e
constrição de bens da empresa - ultrapasse-se os limites do patrimônio da
pessoa jurídica, recaindo a medida processual de execução sobre os sócios e/ou
administradores da empresa.
O procedimento
da medida é regulado no Código de Processo Civil de 2015, a partir de capítulo
próprio (capítulo IV), nos moldes legais dos artigos 133 a 137. O Código Civil,
a seu turno, estabelece no artigo 50 que, "[e]m caso de abuso da
personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela
confusão patrimonial" torna-se possível a desconsideração
da autonomia patrimonial da pessoa jurídica (artigo 49-A do mesmo diploma),
para que "os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos
aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica
beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso". Observa-se
que o CC estabelece determinados requisitos necessários à configuração do
instituto, devendo existir - no caso - o 1) abuso da personalidade jurídica,
que pode ser caracterizado pelo i.1) desvio de finalidade ou i.2) pela confusão
patrimonial da sociedade. Inobstante, deve-se ter presente que a comprovação de
um desses fatores é imprescindível para que o magistrado tenha a possibilidade
de dar espaço ao incidente. Essas disposições enquadram a chamada "Teoria
Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica".
Por outro lado,
o Código de Defesa do Consumidor disciplinou o instituto, nos termos do artigo
28, caput e parágrafo 5º:
"Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da
sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso
de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou
contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver
falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica
provocados por má administração.
§
5°. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua
personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos
causados aos consumidores."
A diferença do
tratamento concedido ao instituto pelos Código Civil e Código de Defesa do
Consumidor é considerável e inequívoca: veja-se que o CC (Teoria Maior) aborda
a matéria com higidez, exigindo a existência e comprovação de requisitos
indispensáveis para o acolhimento da medida; diversamente, o CDC (nomeadamente
na disposição do parágrafo 5º) estabeleceu a matéria de modo mais brando,
genérico e objetivo, cuja justificativa da adoção da medida gravita em torno da
insolvência do devedor. Com efeito, poder-se-á desconsiderar a personalidade da
pessoa jurídica, sempre que tal personalidade revele-se obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Tal tratamento deu origem
à denominada "Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade
Jurídica".
No ponto, recai
uma questão importante: qual a relação existente entre a Teoria Menor prevista
no CDC e a pessoa do administrador não sócio da pessoa jurídica? Dito de outro
modo: a Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica incide/é
válida no âmbito da autonomia patrimonial do administrador não integrante do
quadro societário da empresa?
O Superior
Tribunal de Justiça debateu acerca do tema em diversas oportunidades,
estabelecendo diretrizes firmes e aptas à construção de uma resposta sólida:
De acordo com a
4ª Turma do STJ (REsp. 1.860.333), é inviável a aplicação extensiva do artigo
28, parágrafo 5º do CDC, na relação com administradores não sócios da pessoa
jurídica em execução. No voto, o relator ministro Marco Buzzi destacou que a
flexibilidade característica da Teoria Menor não é aplicável para o
administrador não constituído no quadro societário da pessoa jurídica, pois
trata de sujeito não albergado expressamente no enunciado normativo do
parágrafo 5º do artigo 28.
Com efeito,
apenas a Teoria Maior mostra-se passível de aplicação no tocante a estes
agentes, a partir da qual deve-se, inexoravelmente, comprovar a existência de
algum ilícito (v.g. abuso de direito, excesso de poder etc.). Na mesma
linha, vale destacar os posicionamentos da 3ª Turma do Tribunal da Cidadania no
REsp 1.862.557 e no REsp 1.658.648, que adotaram a impossibilidade de
responsabilização pessoal do administrador não-sócio.
[1] COELHO, Fabio Ulhôa. Curso de direito comercial: direito de
empresa, p. 61.
Autor: Alexandre Callou é bacharel em Direito pela
Universidade Católica de Pernambuco, mestrando em Direito Constitucional pela
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal), integrante do grupo
de pesquisa de Direito Constitucional do Núcleo de Estudo Luso-Brasileiro
(NELB) da mesma IES e advogado.
Fonte:
Revista Consultor
Jurídico
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