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Imunidade tributária da sociedade em realização de capital


Publicada em 23/12/2022 às 09:00h 

Em uma sociedade altamente mercadológica, as organizações constituem o landmark do sistema constituído e importante móvel social. Assim, considerando o seu caráter frugível, usualmente seus contratos sociais experienciam alterações para melhor ajustá-los à realidade do empreendimento e/ou à eventuais inovações legislativas, conformando, inclusive, fatores ordinários do mundo empresarial, como fusões, incorporações, cisões e extinções.


Do mesmo modo, esta multiplicidade de situações envoltas no dia a dia corporativo têm o condão de atrair a atuação do poder público, seja para prestar-lhes um serviço ou regular a atividade (poder de polícia). Não por outra razão, como agente normativo e regulador da atividade econômica, é dito que o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado (artigo 174, CR).


Dessarte, o gestor cuidadoso com o trato da coisa pública deve estar especialmente alerta à competência tributária atribuída ao ente que faz a presentação, sob pena de incidir em renúncia fiscal desautorizada e às consequências de praxe dessa conduta desatenta, gerando efeitos indesejados inclusive no campo da probidade.



Análise do tema


No distinto ensaio denominado Federalismo Fiscal à Brasileira, produzido em parceria entre o então ministro da saúde e economista José Serra e o também economista José Roberto Rodrigues Afonso, à época chefe da Secretaria para Assuntos Fiscais, foi assinalado que:


"Num país de dimensões continentais, com profunda diversidade econômica e social entre regiões e um sistema político-eleitoral inadequado, o federalismo fiscal no Brasil chega ao final do século com grandes desafios pela frente. Há que conciliar estabilização de preços e retomada do desenvolvimento com uma estrutura fiscal marcada por acentuada descentralização de poderes e recursos tributários, em favor dos governos estaduais e municipais e das unidades e regiões menos desenvolvidas."


Em resposta a estas dificuldades e ao momento de grande instabilidade política que o Brasil vinha atravessando, foi criada a tão criticada e ao mesmo tempo elogiada Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (LRF); sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, com intuito de trazer à baila aparelhos de accountability que ganhavam destaque nos debates acadêmicos daquele período.


Dessarte, no artigo 11 da mencionada Legislação Fiscal, ficou estabelecido que "constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação" (grifamos), sob pena de renúncia fiscal antijurídica.


É sabido que a renúncia de receitas de natureza tributária somente pode ocorrer por meio de lei específica, de iniciativa exclusiva do chefe do Poder Executivo, nos termos do que dispõe o artigo 150, parágrafo sexto, da Constituição Federal.


No particular contexto municipalista, a habilitação constitucional para instituir impostos vem arranjada no artigo 156, da Constituição da República, in verbis:


"Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:


[Omissis...] 
II - transmissão 'inter vivos', a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição; [Omissis...]." (grifamos)


Neste aspecto, a análise da relação jurígeno tributável é de particular importância para o servidor envolto na atividade arrecadatória, evitando-se leituras apriorísticas que poderiam gerar prejuízos ao erário e a responsabilização não só do agente administrativo, como, também, do prefeito (agente político) ao conferir imunidade ou isenção em hipótese não prevista em lei. Ou seja, aqui já no âmago do estudo que nos propomos, é preciso cautela em atestar uma pretensa imunidade de empresa em realização de capital, devendo o parecerista estar imbuído de extrema certeza ao conferir interpretação positiva à norma imunizadora.


Em que pese existam pensamentos diferentes sobre o conceito de imunidade, certo é que o parágrafo segundo do retromencionado artigo 156, em seu primeiro inciso, assevera que o ITBI:


"não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, 
salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil" (grifamos)


Para entendermos o alcance da norma precisamos esclarecer que o dispositivo nos traz duas situações distintas e uma exceção expressa. Assim, no primeiro caso temos a (1) não incidência sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital.


Conforme os ensinamentos de Machado, a realização de capital "se refere à transmissão dos bens imóveis ou direitos a eles relativos da pessoa de quem constitui uma pessoa jurídica, ou eleva seu capital social, como forma de pagamento do capital subscrito". Ou seja, a primeira hipótese trata do pagamento do capital social a integralizar, mediante entrega de um bem à pessoa jurídica que está sendo criada, representando o excedente, caso o valor do bem seja superior ao capital social subscrito, como o ágio da operação ou, simplesmente, a reserva de capital.


No segundo caso (2) temos a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, subitem que engloba quatro subcategorias, que não são objeto deste estudo, evitando-se contornos desnecessários à celeuma.


Finalmente, foi revelada uma exceção, quando a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil, o que poderá ser inicialmente verificado pela classificação nacional de atividades econômicas (CNAE) empregada no contrato social, que embora não seja determinante, servirá como forte evidência da prevalência.


Aliás, o CTN definiu em termos gerais o que poderia ser considerado "preponderante". Sobre o tema, Baleeiro (2013, p. 273) estudando o parágrafo primeiro do artigo 37, do CTN, elucida que:


"Se o início das atividades da firma adquirente data de menos de 2 anos, ela gozará do benefício fiscal, sujeita, porém, a perdê-lo e ser compelida ao pagamento do imposto, caso nos três anos posteriores à aquisição verificar-se a preponderância dos negócios imobiliários. A exoneração do tributo é condicional durante o triênio seguinte, convalidando-se, definitivamente, depois dele. O imposto fica diferido até que se complete o termo. Resolve-se se não houver a preponderância de negócios imobiliários. O Fisco adotou a técnica da 'condição' do Direito Civil. Se aquela preponderância vier a confirmar-se prevalecem a alíquota e o valor venal do tempo da aquisição. Obviamente, a empresa adquirente deve estabelecer esse valor pelos meios administrativos ou, na impossibilidade ou inaceitabilidade deles, por vistoria e arbitramentos judiciais, ad perpetuam rei memoriam, com a indispensável citação do Estado."


Para José Alberto Oliveira Macedo, a pessoa jurídica que pretenda valer-se da norma de imunidade condicionada do ITBI deverá submeter a sua contabilidade ao Fisco para que se verifique a preponderância da receita operacional ante a atividade imobiliária. A par disso, vale lembrar o voto-vista do ministro Humberto Gomes de Barros, nos autos do Recurso Especial nº 448.527/SP, que diversamente afirma caber ao Fisco este papel.


De toda sorte, no magistério do professor Sacha Calmon Navarro Coêlho:


"A regra colima facilitar a mobilização dos bens de raiz e a sua posterior desmobilização, de modo a facilitar a formação, a transformação, a fusão, a cisão e a extinção de sociedades civis e comerciais, não embaraçando com o ITBI a movimentação dos imóveis, quando comprometidos com tais situações."


Verifica-se, dessarte, a intenção do constituinte em proteger a atividade econômica, sem que o comando sirva de estímulo para malversação empresarial e condutas voltadas à evasão fiscal, que afrontariam os próprios ideais republicanos e a função social da empresa.


É preciso atenção no presente ponto, eis que fato gerador (FG) em concreto do imposto somente ocorrerá quando houver transmissão intervivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição. Nas palavras de Aires Fernandino Barreto apud Castro (p. 41):


"à hipótese de incidência do chamado 'imposto de transmissão de imóveis', consiste em enfatizar que esta, por força de seu protótipo constitucional, deverá conceituar realidade integrada por elementos vários, que não se constituirá somente no ato de transmitir, nem no da transmissão ser de inter vivos, nem apenas na natureza desse ato (oneroso), nem só no imóvel, mas na conjugação de todos esses termos, que, conceitualmente, reporta-se ao 'ato da transmissão, inter vivos, por ato oneroso, que tem por objeto um imóvel, por natureza ou acessão física'. Essa, em síntese, deverá ser a consistência material da hipótese de incidência desse imposto, em face do que estatui a norma constitucional, que o prefigurou de modo preciso"


Lançando os olhos sobre a operação em testilha, especificamente em relação à norma imunizante do artigo 156, §2°, I, da CR, no que se refere à vedação ao exercício do poder de tributar quando da realização do capital social das pessoas jurídicas; temos que o preceito não abrangeu a conjuntura onde haja formação de reserva de capital, posto serem distintos os contextos. Portanto, não é correto que se empregue interpretação à norma capaz de desinformar institutos consagrados e com desenhos bem distintos como a integralização do capital social e a reserva de capital.


Nestes termos, sobre o valor sobejante (superior ao capital integralizado ou por integralizar) deverá incidir aludido imposto, ou seja, remanesce a incidência do ITBI sobre a diferença entre a quantia integralizada e o valor venal do imóvel incorporado para aumento de capital social, o que deve ser verificado pelo funcionário responsável em lançar a tributação.


Sobre o tema, aliás, em agosto de 2020, foi julgado pelo STF o Recurso Extraordinário nº 796.376 (Tema 796), em sede de repercussão geral, oportunidade que restou decidido que "a imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado".


À margem de todo sustentado até aqui, a conclusão a que se chega é a de que se o valor dos imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica exceder o limite do capital social subscrito a ser integralizado, haverá incidência do mencionado imposto sobre o ágio, que por não transitar por contas de resultado, ou seja, não ser proveniente da atividade operacional, não faz parte do capital social em realização e será tomado como aquisição pura, havendo consubstanciação do fato a norma (Hipótese de Incidência ou Fato Gerador em Abstrato mais Fato Gerador em Concreto), sobrevindo o fenômeno da incidência tributária.


Referências


AFONSO. José Roberto R.. SERRA. José. Federalismo Fiscal à Brasileira: Algumas Reflexões. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, V. 6, n. 12, P. 3-30, Dez. 1999.


ARAÚJO. Clarice von Oertzen de. FAVACHO. Fernando Gomes. Imunidade do ITBI e a descaracterização do conceito de atividade preponderante. Disponível em: https://www.ibet.com.br/wp-content/uploads/2020/09/Imunidade-do-ITBI-e-atividade preponderante.pdf. Acesso em: 1 de agosto de 2022 apud MACEDO. ITBI - Aspectos Constitucionais e Infraconstitucionais. São Paulo: Quartier Latin, 2010.


ASQUINI, Albert. Profili deH'Impresa. Rivista dei diritto commercial. Milano. 41, 1943, p. 1/20.


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BARRETO, Aires. ITBI - Transmissão de Bens Imóveis da Empresa 'A' para as Empresas 'B' e 'C' - Conceito de 'Atividade Preponderante'. Revista Dialética de Direito Tributário, nº 166, Jul. 2009.


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CASTRO. Gabriel Carneiro de. Da incidência do imposto sobre transmissão de bens imóveis nas transferências de bens que excedem o valor das cotas ou ações em realização de capital. Tese (bacharel em Direito) - Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2019.


COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 338.


GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19ª ed. Rio Janeiro: Forense, 2007, p. 160-161.


GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: parte geral. 14 ed. São Paulo: Saraiva. 2016. Volume 1.


Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.
. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm. Acesso em: 29 de jul. de 2022.


Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000
. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm. Acesso em: 29 de jul. de 2022.


Autor: Ricardo Adriano Haacke é procurador municipal, mestrando em administração pública pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e especialista em Direito Administrativo, Direito Constitucional, Direito Processual Civil e Direito Tributário.








Fonte: Revista Consultor Jurídico





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