Em uma sociedade altamente mercadológica,
as organizações constituem o landmark do
sistema constituído e importante móvel social. Assim, considerando o seu
caráter frugível, usualmente seus contratos sociais experienciam alterações
para melhor ajustá-los à realidade do empreendimento e/ou à eventuais inovações
legislativas, conformando, inclusive, fatores ordinários do mundo empresarial,
como fusões, incorporações, cisões e extinções.
Do mesmo modo, esta multiplicidade de
situações envoltas no dia a dia corporativo têm o condão de atrair a atuação do
poder público, seja para prestar-lhes um serviço ou regular a atividade (poder
de polícia). Não por outra razão, como agente normativo e regulador da
atividade econômica, é dito que o Estado exercerá, na forma da lei, as funções
de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor
público e indicativo para o setor privado (artigo 174, CR).
Dessarte, o gestor cuidadoso com o trato da
coisa pública deve estar especialmente alerta à competência tributária
atribuída ao ente que faz a presentação, sob pena de incidir em renúncia fiscal
desautorizada e às consequências de praxe dessa conduta desatenta, gerando
efeitos indesejados inclusive no campo da probidade.
Análise
do tema
No distinto ensaio denominado Federalismo Fiscal à Brasileira,
produzido em parceria entre o então ministro da saúde e economista José Serra e
o também economista José Roberto Rodrigues Afonso, à época chefe da Secretaria
para Assuntos Fiscais, foi assinalado que:
"Num país de
dimensões continentais, com profunda diversidade econômica e social entre regiões
e um sistema político-eleitoral inadequado, o federalismo fiscal no Brasil
chega ao final do século com grandes desafios pela frente. Há que conciliar
estabilização de preços e retomada do desenvolvimento com uma estrutura fiscal
marcada por acentuada descentralização de poderes e recursos tributários, em
favor dos governos estaduais e municipais e das unidades e regiões menos
desenvolvidas."
Em resposta a estas dificuldades e ao
momento de grande instabilidade política que o Brasil vinha atravessando, foi
criada a tão criticada e ao mesmo tempo elogiada Lei Complementar nº 101, de 4
de maio de 2000 (LRF); sancionada pelo então presidente Fernando Henrique
Cardoso, com intuito de trazer à baila aparelhos de accountability que
ganhavam destaque nos debates acadêmicos daquele período.
Dessarte, no artigo 11 da mencionada
Legislação Fiscal, ficou estabelecido que "constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da
competência constitucional do ente da Federação" (grifamos),
sob pena de renúncia fiscal antijurídica.
É sabido que a renúncia de receitas de
natureza tributária somente pode ocorrer por meio de lei específica, de
iniciativa exclusiva do chefe do Poder Executivo, nos termos do que dispõe o
artigo 150, parágrafo sexto, da Constituição Federal.
No particular contexto municipalista, a
habilitação constitucional para instituir impostos vem arranjada no artigo 156,
da Constituição da República, in
verbis:
"Art. 156.
Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
[Omissis...] II - transmissão 'inter vivos', a qualquer título,
por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos
reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua
aquisição; [Omissis...]." (grifamos)
Neste aspecto, a análise da relação
jurígeno tributável é de particular importância para o servidor envolto na
atividade arrecadatória, evitando-se leituras apriorísticas que poderiam gerar
prejuízos ao erário e a responsabilização não só do agente administrativo,
como, também, do prefeito (agente político) ao conferir imunidade ou isenção em
hipótese não prevista em lei. Ou seja, aqui já no âmago do estudo que nos
propomos, é preciso cautela em atestar uma pretensa imunidade de empresa em
realização de capital, devendo o parecerista estar imbuído de extrema certeza
ao conferir interpretação positiva à norma imunizadora.
Em que pese existam pensamentos diferentes
sobre o conceito de imunidade, certo é que o parágrafo segundo do
retromencionado artigo 156, em seu primeiro inciso, assevera que o ITBI:
"não incide
sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa
jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos
decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do
adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens
imóveis ou arrendamento mercantil" (grifamos)
Para entendermos o alcance da norma
precisamos esclarecer que o dispositivo nos traz duas situações distintas e uma
exceção expressa. Assim, no primeiro caso temos a (1) não incidência sobre a
transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica
em realização de capital.
Conforme os ensinamentos de Machado, a
realização de capital "se
refere à transmissão dos bens imóveis ou direitos a eles relativos da pessoa de
quem constitui uma pessoa jurídica, ou eleva seu capital social, como forma de
pagamento do capital subscrito". Ou seja, a primeira hipótese
trata do pagamento do capital social a integralizar, mediante entrega de um bem
à pessoa jurídica que está sendo criada, representando o excedente, caso o
valor do bem seja superior ao capital social subscrito, como o ágio da operação
ou, simplesmente, a reserva de capital.
No segundo caso (2) temos a transmissão de
bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de
pessoa jurídica, subitem que engloba quatro subcategorias, que não são objeto
deste estudo, evitando-se contornos desnecessários à celeuma.
Finalmente, foi revelada uma exceção,
quando a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens
ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil, o que poderá
ser inicialmente verificado pela classificação nacional de atividades
econômicas (CNAE) empregada no contrato social, que embora não seja
determinante, servirá como forte evidência da prevalência.
Aliás, o CTN definiu em termos gerais o que
poderia ser considerado "preponderante". Sobre o
tema, Baleeiro (2013, p. 273) estudando o parágrafo primeiro do
artigo 37, do CTN, elucida que:
"Se o início
das atividades da firma adquirente data de menos de 2 anos, ela gozará do
benefício fiscal, sujeita, porém, a perdê-lo e ser compelida ao pagamento do
imposto, caso nos três anos posteriores à aquisição verificar-se a
preponderância dos negócios imobiliários. A exoneração do tributo é condicional
durante o triênio seguinte, convalidando-se, definitivamente, depois dele. O
imposto fica diferido até que se complete o termo. Resolve-se se não houver a
preponderância de negócios imobiliários. O Fisco adotou a técnica da 'condição'
do Direito Civil. Se aquela preponderância vier a confirmar-se prevalecem a
alíquota e o valor venal do tempo da aquisição. Obviamente, a empresa
adquirente deve estabelecer esse valor pelos meios administrativos ou, na
impossibilidade ou inaceitabilidade deles, por vistoria e arbitramentos
judiciais, ad perpetuam rei memoriam, com a indispensável citação do
Estado."
Para José Alberto Oliveira Macedo, a pessoa
jurídica que pretenda valer-se da norma de imunidade condicionada do ITBI
deverá submeter a sua contabilidade ao Fisco para que se verifique a
preponderância da receita operacional ante a atividade imobiliária. A par
disso, vale lembrar o voto-vista do ministro Humberto Gomes de Barros, nos
autos do Recurso Especial nº 448.527/SP, que diversamente afirma caber ao Fisco
este papel.
De toda sorte, no magistério do professor
Sacha Calmon Navarro Coêlho:
"A regra colima
facilitar a mobilização dos bens de raiz e a sua posterior desmobilização, de
modo a facilitar a formação, a transformação, a fusão, a cisão e a extinção de
sociedades civis e comerciais, não embaraçando com o ITBI a movimentação dos
imóveis, quando comprometidos com tais situações."
Verifica-se, dessarte, a intenção do
constituinte em proteger a atividade econômica, sem que o comando sirva de
estímulo para malversação empresarial e condutas voltadas à evasão fiscal, que
afrontariam os próprios ideais republicanos e a função social da empresa.
É preciso atenção no presente ponto, eis
que fato gerador (FG) em concreto do imposto somente ocorrerá quando houver
transmissão intervivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis,
por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de
garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição. Nas palavras de Aires
Fernandino Barreto apud Castro
(p. 41):
"à hipótese de
incidência do chamado 'imposto de transmissão de imóveis', consiste em
enfatizar que esta, por força de seu protótipo constitucional, deverá
conceituar realidade integrada por elementos vários, que não se constituirá
somente no ato de transmitir, nem no da transmissão ser de inter vivos, nem
apenas na natureza desse ato (oneroso), nem só no imóvel, mas na conjugação de
todos esses termos, que, conceitualmente, reporta-se ao 'ato da transmissão, inter
vivos, por ato oneroso, que tem por objeto um imóvel, por natureza ou acessão
física'. Essa, em síntese, deverá ser a consistência material da hipótese de
incidência desse imposto, em face do que estatui a norma constitucional, que o
prefigurou de modo preciso"
Lançando os olhos sobre a operação em
testilha, especificamente em relação à norma imunizante do
artigo 156, §2°, I, da CR, no que se refere à vedação ao exercício do poder de
tributar quando da realização do capital social das pessoas jurídicas; temos
que o preceito não abrangeu a conjuntura onde haja formação de reserva de
capital, posto serem distintos os contextos. Portanto, não é correto que se
empregue interpretação à norma capaz de desinformar institutos consagrados e
com desenhos bem distintos como a integralização do capital social e a reserva
de capital.
Nestes termos, sobre o valor sobejante
(superior ao capital integralizado ou por integralizar) deverá incidir aludido
imposto, ou seja, remanesce a incidência do ITBI sobre a diferença entre a
quantia integralizada e o valor venal do imóvel incorporado para aumento de
capital social, o que deve ser verificado pelo funcionário responsável em
lançar a tributação.
Sobre o tema, aliás, em agosto de 2020, foi
julgado pelo STF o Recurso Extraordinário nº 796.376 (Tema 796), em sede de
repercussão geral, oportunidade que restou decidido que "a imunidade em relação ao
ITBI, prevista no inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser
integralizado".
À margem de todo sustentado até aqui, a
conclusão a que se chega é a de que se o valor dos imóveis incorporados ao
patrimônio da pessoa jurídica exceder o limite do capital social subscrito a
ser integralizado, haverá incidência do mencionado imposto sobre o ágio, que
por não transitar por contas de resultado, ou seja, não ser proveniente da
atividade operacional, não faz parte do capital social em realização e será
tomado como aquisição pura, havendo consubstanciação do fato a norma (Hipótese
de Incidência ou Fato Gerador em Abstrato mais Fato Gerador em Concreto),
sobrevindo o fenômeno da incidência tributária.
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Autor: Ricardo Adriano Haacke é
procurador municipal, mestrando em administração pública pelo Instituto
Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e especialista em
Direito Administrativo, Direito Constitucional, Direito Processual Civil e
Direito Tributário.
Fonte:
Revista Consultor Jurídico