Quanto fios de cabelo alguém precisa ter
para ser considerado "calvo"? E quantos quilos, para ser considerado
"gordo"? Ou quantos anos, para ser considerado "idoso"?
Todos esses termos têm em comum a sua inevitável vagueza, marcada pela
dificuldade de determinar a sua aplicação aos chamados
"casos-limite".
Como define Humberto Ávila, em recentíssimo
estudo sobre o tema, "o
que caracteriza a vagueza é a falta de demarcação dos limites de aplicação do
significado ou a falta de precisão ou acurácia dessa aplicação" [1]. Essa indeterminação semântica afeta diretamente a
aplicação das regras jurídicas, pois torna igualmente indeterminados os limites
do alcance da hipótese de aplicação das regras, diante de casos-limites.
No texto de hoje, analisaremos um problema
tão recorrente quanto inexplorado na jurisprudência tributária e que se conecta
com a questão da vagueza: diante
de uma hipótese de omissão de receitas, quando deve ser arbitrado o lucro? [2] Antes
de avançarmos, é preciso esclarecermos um pouco mais como essas discussões se
conectam.
Omitir receita nada mais é do
que deixar de registrar em sua escrituração ganhos tributáveis no resultado do
período, gerando uma redução indevida da base de cálculo dos tributos que se
conectam com esses ganhos, como IRPJ, CSLL, PIS e Cofins. A sua verificação
pode se dar de duas formas: 1) comprovada, quando a
fiscalização colige provas que evidenciam a diferença entre o montante de
receitas declaradas e efetivamente ingressadas (p.ex. cotejo da escrituração
com pagamentos recebidos por cartão de crédito ou registros de notas fiscais
emitidas) ou 2) presumida, com base em
previsões legais que estabelecem a presunção de omissão de receita, diante de
certos indícios qualificados (p.ex. depósitos bancários de origem não
comprovada e saldo credor na conta Caixa).
A conduta de omissão de receitas se conecta
com a discussão do Lucro Arbitrado em razão da hipótese de arbitramento
prevista no artigo 603, III, do RIR/2018, que determina que se arbitre o lucro
quando "a escrituração a que o contribuinte
estiver obrigado revelar evidentes indícios de fraudes ou contiver vícios, erros ou deficiências que a
tornem imprestável para:
i) identificar a efetiva movimentação financeira, inclusive bancária; ou ii)
determinar o lucro real".
A omissão de receitas, tanto presumida como
comprovada, é, na melhor das hipóteses, indicativo de vícios, erros ou
deficiências na escrituração, quando não se presta a demonstrar fraudes
realizadas pelos contribuintes. Entretanto, não são quaisquer erros ou vícios
que justificam o arbitramento, mas apenas aqueles que tornem imprestável a
escrituração do contribuinte, para os fins estabelecidos em lei.
Ora, a partir de quantos vícios ou erros
uma escrituração se torna imprestável?
Ou pior, que tipos de vício a tornam imprestável?
Lidar com a vagueza dessa qualificação é essencial para que se realize e
controle o lançamento tributário, diante da obrigatoriedade do arbitramento,
diante das hipóteses legais.
Explica-se: identificada a ocorrência de
uma das hipóteses de arbitramento, não
há qualquer margem de discricionariedade da fiscalização quanto a escolha de
base de cálculo. Pelo contrário, o auditor-fiscal é obrigado
realizar o arbitramento, uma vez verificado que se trata de uma hipótese legal
para tanto, sob pena de nulidade,
por vício material, do lançamento tributário realizado. O Carf tem inúmeros
precedentes reconhecendo que "o
artigo 47 da Lei nº 8.981, de 1995, ao usar a expressão de que o lucro será
arbitrado, nos casos que especifica, não confere faculdade à autoridade fiscal,
mas sim comando impositivo quanto à forma de tributação" [3].
Afirma-se, nessa linha, que o arbitramento "não se trata de uma faculdade, mas de efetiva imposição
legal" [4] que deve ser observada no lançamento.
Inclusive, a vagueza na aplicação dessa
hipótese de arbitramento afeta o crédito tributário em duas oportunidades: a
primeira na realização do lançamento, e a segunda na sua revisão, pelos órgãos
de contencioso administrativo. Essa constatação, apesar de trivial, é crucial
para compreender a relevância dessa questão, pois basta haver uma discrepância
de critério entre a administração tributária e o Carf na determinação do que
seria "imprestável", para que o auto de infração seja anulado.
A respeito da apuração do Lucro Arbitrado
nas hipóteses de omissão de receita, não identificamos qualquer
incompatibilidade da aplicação desse regime de apuração a partir tanto das
omissões presumidas quanto das comprovadas. Perante o Direito, a receita
apurada por meio da presunção legal é tão válida quanto aquela levantada por
meio de provas diretas, e ambas são passíveis de contraprova do contribuinte.
Dessa forma, uma vez fixada a receita
bruta, ainda que com o cômputo das receitas omitidas, resta
afastada peremptoriamente a possibilidade de se aplicar os parâmetros de
cálculo do Lucro Arbitrado estabelecidos no artigo 608 do RIR/2018 [5].
Por outro lado, tampouco nos parece que o
simples fato de haver receita omitida, por si só, permitiria inferir que a
fiscalização deveria se socorrer necessariamente do Lucro Arbitrado. Para essa
conclusão, deve-se passar à análise de um outro ponto: a existência ou efetivação do
registro de custos e despesas relacionados à receita omitida e escriturada.
Se na escrituração contábil do contribuinte
já se encontram registrados custos e despesas, em regra, não havendo nada que
justifique a sua desconsideração, deve-se presumir que eles seriam efetivos,
pois a omissão ocorre no registro da receita. Entretanto, o simples fato de
haver gastos escriturados não significa que basta confrontá-los com a receita
omitida e apurar as bases de cálculo. Aqui, a fiscalização deve verificar se os custos e
despesas seriam razoavelmente correlacionáveis à essa receita objeto da omissão.
As situações mais comuns são as
seguintes: 1) ausência total de escrituração de despesas/custos e
receitas (omissão total de receitas e gastos); 2) escrituração de gastos correlacionados
estritamente à receita declarada (omissão parcial de receitas e gastos) [6]; e 3) escrituração de todos os gastos,
e omissão de parte das receitas (omissão parcial das receitas).
Essa verificação da correlação entre
receitas omitidas e gastos escriturados é mais factível de ser realizada nas
hipóteses de omissão comprovada de receitas, pois é
possível se ter uma dimensão real das operações realizadas, mas não declaradas,
por meio de notas fiscais emitidas, operações com cartão, outros registros
paralelos, controles de Estoque etc.
Nesses casos, é possível a fiscalização verificar se os custos registrados
(p.ex., de mercadorias vendidas) correspondem às receitas apuradas.
Caso a fiscalização verifique se tratar de uma omissão
parcial apenas das receitas, não haveria óbice à apuração do Lucro
Real. Entretanto, em se tratando das hipóteses de omissão total ou parcial de receitas
e gastos, a fiscalização deveria, antes de partir para o
arbitramento, intimar
o contribuinte à regularização da sua escrituração, em prazo hábil,
considerando a própria subsidiariedade desse método de apuração do lucro [7].
Intimado o contribuinte, duas situações
podem ocorrer: 1) o contribuinte atende à fiscalização no
prazo, retificando a sua escrituração, razão pela qual poderia ser apurado o Lucro
Real; ou 2) ele
não atende à fiscalização, autorizando-se ao arbitramento dos
lucros, a partir da receita omitida, e desconsiderando a parcela de gastos
escriturados.
Por outro lado, nas hipóteses de omissão
por presunção de receitas, esse confronto com os gastos é mais
problemático, pois o que há é a receita apurada a partir de elementos
indiciários, que não permitem essa correlação direta com os gastos total ou
parcialmente escriturados. Nesses casos, como dificilmente será possível
concluir que a omissão se deu apenas nas receitas, parece-nos que a
fiscalização deveria partir diretamente à intimação para correção da
escrituração e, a
depender do atendimento pelo contribuinte, apurar o Lucro Real ou
Arbitrado.
Caso o contribuinte, após intimação para comprovar
os seus gastos, não atender essa determinação e por isso sofrer o arbitramento
do lucro, não pode posteriormente buscar na esfera administrativa comprovar
exaustivamente esses elementos, buscando uma requalificação da base de cálculo
para o Lucro Real - como estabelecido pela Súmula Carf nº 59 [8]. De outro
giro, em atendendo a intimação, ou sendo a informação escriturada suficiente
para a apuração do Lucro Real, não há qualquer óbice de administrativamente
demonstrar novos custos e despesas não escriturados e verificados pela
fiscalização, em um contexto de revisão da base de cálculo apurado pelo Fisco.
Além desse ângulo da correlação entre os
gastos registrados e as receitas apuradas, usualmente utilizado para verificar
a imprestabilidade da escrituração, há um segundo ângulo de análise baseado
nas diferenças
quantitativas entre as receitas declaradas e as omitidas.
Nas hipóteses de omissão
parcial de receitas e gastos, e principalmente em razão da ausência de intimação da
fiscalização para complementação dos registros contábeis e fiscais,
costuma-se verificar o grau de discrepância entre a receita omitida e a
declarada, para determinar se se trata de um caso de imprestabilidade da
escrituração.
Nesses casos, parece haver um casuísmo
bastante elevado na determinação de qual grau de diferença seria suficiente a
justificar que o lucro deveria ser arbitrado, sob pena de se impor uma margem
de lucro irreal ao contribuinte. Vejamos alguns exemplos:
i) Ac. nº
1401-001.773 [9]: apurou-se que uma diferença de 65%
entre a receita declarada e a receita omitida, seria uma margem de lucro
impossível de ser alcançada, justificando o arbitramento;
ii) Ac. nº
9101-003.136 [10]:
apurou-se que as receitas declaradas correspondiam a 3,2% das receitas
omitidas; reconhecendo a necessidade do arbitramento;
iii) Ac. nº
1301-001.817 [11]: apurou-se que as receitas omitidas
correspondiam a 65% das receitas declaradas, decidindo pela obrigatoriedade do
Lucro Arbitrado;
iv) Ac. nº
1402-00.456 [12]: manteve-se o arbitramento do lucro
pois a receita declarada correspondia a aproximadamente 10% da receita omitida,
apurada a partir de depósitos bancários;
v) Ac. nº
1202-001.065 [13]: cancelou-se o lançamento com base
no Lucro Real pois a receita omitida era 32% superior à receita declarada,
evidenciado a imprestabilidade da escrituração;
vi) Ac. nº
1201-000.621 [14]: a receita omitida correspondia a
76% da receita declarada, justificando o arbitramento;
Recentemente, a CSRF, por meio do Ac. nº
9101-006.018[15], ao analisar a aplicação da presunção do artigo 42 da Lei nº
9.430/1996, aduziu que "a
jurisprudência, em casos de absurda discrepância
entre o que foi omitido e o que foi declarado/escriturado, vem flexibilizando a manutenção do
regime pelo Lucro Real, considerando aplicável o arbitramento".
Mais do que tentar estabelecer uma média
"numérica", um exame qualitativo dos casos permite inferir que na
maioria deles, ao se apurar essa diferença quantitativa entre receita omitida e
declarada, analisa-se se a adição da primeira à segunda não geraria margens de lucro irreais para as
atividades das pessoas jurídicas fiscalizadas, até mesmo porque não
se pode perder de vista que o tributo não é instrumento de sanção ao
contribuinte que não mantém a regularidade de suas obrigações acessórias.
Considerando essa preocupação, o problema
se torna como se
chegar a uma margem de lucro parâmetro, para fins de cotejo com o caso concreto?
Há casos em que as margens são
evidentemente irreais, onde não há o problema da vagueza em relação à
imprestabilidade, pela "absurda discrepância". Mas há situações em
que essas margens entram em um campo de indeterminação prática que parece apontar
para dois caminhos possíveis: 1) a utilização de provas
apresentadas pela própria fiscalização ou pelo contribuinte, a respeito da
margem de lucro média do setor; ou 2) adotar como parâmetro as margens
presumidas pela própria legislação do imposto de renda, na apuração do Lucro
Arbitrado, com fulcro no artigo 605 do RIR/2018.
Como se viu, a hipótese de arbitramento do
lucro sob análise é, inescapavelmente, vaga. Não há como se determinar
aprioristicamente o que seria uma escrituração imprestável, nos termos do
artigo 605, III do RIR/2018. Isso não quer dizer que não se possa pensar em
parâmetros para análise dos casos, ou mesmo de procedimentos no âmbito das
fiscalizações, voltadas a contornar essa dificuldade de definição sem que se
caia em um casuísmo jurisprudencial.
A observância dos parâmetros propostos
acima nos parece trazer uma maior operacionalidade prática à apuração dos
tributos em hipóteses de omissão de receitas, com um ganho de segurança para os
contribuintes e para a fiscalização.
*Retomando os trabalhos da Direto do Carf, todos os colunistas desejam um
feliz 2023 aos nossos leitores, esperando que sigam acompanhando e consultando
nossas considerações sobre a jurisprudência do Carf nesse ano vindouro.
Autor:
Carlos Augusto Daniel Neto é sócio do
escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, em estágio pós-doutoral em
Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor
em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito
Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf,
pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado
profissional do Cedes e de diversos cursos de pós-graduação.
Fonte: Revista Consultor Jurídico,