"O preço da gasolina aumentará mais R$
0,10 no DF a partir desta terça-feira."
Esta frase, dita
publicamente pelo presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Combustíveis
e Lubrificantes do Distrito Federal (Sindicombustíveis/DF)
em 16/2/2021, é objeto do mais novo processo administrativo instaurado pelo
Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) [1] para
apurar a ocorrência de infração à ordem econômica, mais uma vez no mercado de
combustíveis [2].
Após quase um ano de investigação
preliminar, o Cade entendeu que havia indícios de que diferentes
declarações públicas do presidente do Sindicombustíveis/DF relacionadas a
reajustes futuros nos preços, somadas a circulares publicadas periodicamente
pelo sindicato a respeito do mesmo tema, poderiam revelar uma tentativa de
influenciar o mercado revendedor de combustíveis a se comportar uniformemente,
o que é vedado pela Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529/11) [3].
A preocupação externada pela
Superintendência Geral do Cade, ao iniciar a investigação é a de que, ao
receberem a notícia de aumento de preços, os revendedores de combustíveis
teriam grandes incentivos para repassar imediatamente aos consumidores o
acréscimo, exatamente no mesmo patamar anunciado, mesmo antes de terem
realmente sido afetados por ele, em suas negociações privadas com os
distribuidores.
Pelo que consta dos autos públicos, o
Sindicombustíveis/DF defende que tais declarações decorrem do dever público de
comunicação do sindicato, sendo que havia razões concretas e excepcionais para
os anúncios feitos, tais como o impacto do conflito entre Rússia e Ucrânia,
majoração dos preços da gasolina e do álcool anidro nas refinarias, alteração
do valor do ICMS, elevação de tributos decorrente do fim da desoneração de
tributos federais, entre outras questões.
Embora o Cade reconheça o papel
fundamental das associações de classe e sindicatos na sociedade, que podem
inclusive contribuir para maior eficiência do mercado em que suas associadas
atuem ao promoverem ações que sejam pró-competitivas, está claro que, em
determinadas situações, as condutas das associações de classe podem ultrapassar
os limites - as vezes tênues - impostos pela Lei de Defesa
da Concorrência no que tange à proibição de medidas que gerem uniformização de
condutas de agentes econômicos que devem competir diretamente [4]. Não há "autorização especial" para
que as associações de classe e sindicatos deixem de observar os termos da Lei
de Defesa da Concorrência, mesmo sob o argumento de atender a sua função
institucional ou constitucional. Aliás, muito pelo contrário: a Lei de Defesa
da Concorrência deixa claro que se aplica a quaisquer associações de entidade
ou pessoas [5].
Essa não é a primeira vez em que o Cade
entende que anúncios públicos podem ser considerados ilegais. Em 2010, no
mercado de avicultura, por exemplo, foi firmado um acordo, ou seja, um Termo de
Compromisso de Cessação de Prática (TCC) entre o Cade, a União Brasileira de Avicultura
(UBA) e o seu presidente, após recomendação para que empresas produtoras de
frango afiliadas diminuíssem a produção em 20% e limitassem o plantel a 400
milhões de frangos até determinado período.
Já em 2013, no mercado de chocolates, foi
celebrado um acordo entre o Cade, a Associação Brasileira da Indústria de
Chocolates, Cacau, Amendoim, Balas e derivados (Abicac) e seu presidente, após
este dizer publicamente que a Páscoa estaria 8% mais cara naquele ano de 2009.
Naquele caso, nos termos do acordo firmado, foi admitido que a declaração
pública teria sido ilegal, ou seja, uma violação aos termos da Lei de Defesa da
Concorrência.
Ainda em 2013, o Sindicato do Comércio
Varejista de Material de Escritório, Escolar e Papelaria do Estado de São Paulo
e Região (Simpa/SP) também celebrou um acordo com o Cade, em razão de fala
pública do seu presidente de que os pais deveriam antecipar a compra de
material escolar para evitar alta de 7% decorrente do índice de inflação.
Tais casos deixam claro que os anúncios
públicos podem ser considerados ilícitos pelo Cade, sendo necessário uma
análise crítica específica dos líderes das associações de classe e diretores
que avaliam os momentos e os conteúdos das manifestações de tais entidades,
para evitar conflitos com a Lei de Defesa da Concorrência.
Como regra geral, divulgações ao público em
geral de dados dos setores, pelo fato de diminuírem a assimetria entre os
diferentes agentes econômicos, aumentam a transparência e contribuem para uma
maior eficiência do mercado, podendo ser consideradas pró-competitivas. Não por
outra razão, são comumente vistos com bons olhos pelas autoridades de
concorrência e são preferidos às comunicações privadas.
No entanto, há situações em que os anúncios
públicos deixam de ser bem vindos, na medida em que podem a) influenciar a
adoção de prática comercial uniforme; ou b) aumentar a probabilidade de
colusão.
Em relação à possibilidade específica de
anúncio público de preços, em especial aqueles voltados para políticas de
preços, o risco é de que tais anúncios levem à uniformização de conduta no
mercado afetado, fazendo com que as associações de classe e sindicatos sirvam
de price maker,
estabelecendo diretrizes a serem seguidas pelos agentes de mercado. Os efeitos
da adoção de conduta uniforme entre concorrentes podem ser semelhantes aos
efeitos de um cartel, na medida em que há um arrefecimento da concorrência com
a implementação de políticas comerciais semelhantes e não definidas
unilateralmente [6].
Para além dessa preocupação mais
tradicional, uma teoria do dano mais recente é a de que o anúncio público de
informações pode também servir de sinalização entre concorrentes, substituindo
os acordos anticompetitivos explícitos que na história do direito da
concorrência têm aparecido com mais frequência. Trata-se, portanto, de forma
alternativa de implementação de cartel, mas com os mesmos efeitos deletérios,
na medida em que a colusão, seja ela implícita ou explícita, diminui a
concorrência no mercado e aumenta artificialmente os preços praticados.
Artigo publicado em 2022, de autoria de
Joseph E. Harrington Jr., indicado como um dos melhores artigos pelo prêmio
Concurrences de 2023 [7], sugere que acordos entre
concorrentes podem ser realizados por meio de anúncios públicos. Esse anúncio
traria uma dificuldade adicional de persecução antitruste, pela ausência de um
acordo expresso e pela justificativa mais genérica de que o anúncio é voltado
para participantes de mercado, e não para os concorrentes. Nesse sentido, John
Kepler inclusive sugere que esses anúncios públicos poderiam até mesmo
substituir as comunicações privadas na coordenação entre concorrentes [8].
Nesse contexto, empresas, associações de
classe e sindicatos devem, portanto, ser cautelosos e fazer um exame prévio dos
termos e do contexto no qual o anúncio público pretendido está inserido. O
enfrentamento de sete perguntas básicas pode auxiliar no processo de
identificação e mitigação de riscos relacionados à violação à Lei de Defesa da
Concorrência, quais sejam: 1) O anúncio público pretendido decorre de exigência
legal? 2) O anúncio público pretendido tem como objetivo atender interesses ou
exigências de investidores, clientes ou consumidores finais? 3) Há
justificativa legítima para o anúncio público pretendido? Quem serão os
beneficiados? 4) Há necessidade de se fazer um anúncio público anterior à
ocorrência do evento a ser noticiado? 5) Para atingir o objetivo desejado com o
anúncio público, todas as informações nele contida são estritamente
necessárias? 6) O anúncio público pretendido contém informações comercialmente
sensíveis [9] 7) Qual é a estrutura da
indústria a ser potencialmente afetada pelo anúncio público pretendido?
Essas são perguntas importantes e
necessárias para evitar investigações e condenações pelo Cade, mas também por
parte de outras autoridades de defesa da concorrência, que igualmente se
preocupam com esses anúncios públicos e os seus efeitos nos comportamentos dos
concorrentes, mesmo quando esses anúncios não são feitos por associações de
classe, mas pelas empresas, unilateralmente.
Em 2018, por exemplo, o Tribunal de
Concorrência do Reino Unido manteve a imposição de multa no valor de 50 milhões
de libras à empresa Royal
Mail por abuso de posição dominante, pelo fato de tal empresa
ter publicamente anunciado a sua nova estrutura de preços [10]. Decidiu-se que o anúncio dessa nova estrutura
de preços seria uma forma de afastar competidores que pretendiam entrar no
mercado de serviços postais, diminuindo por tanto, a concorrência potencial que
a Royal Mail poderia enfrentar.
Ainda no Reino Unido, a autoridade de
concorrência (CMA) local, após conduzir uma investigação detalhada no mercado
de cimentos, decidiu em 2012 proibir o envio, por parte das empresas do setor,
cartas genéricas aos consumidores contendo anúncio de preços a serem
praticados. Por meio de acordo, ficou consignado que cartas contendo anúncio de
preços deveriam ser específicas com detalhamento dos preços antigos e novos,
além da descrição de eventuais outras cobranças aplicadas ao consumidor
destinatário da carta.
Os anúncios públicos também foram
considerados ilícitos pela Comissão Europeia em investigação relacionada ao
mercado de transporte marítimo de carga (container
liner shipping), iniciada em 2013 e concluída em 2016. A autoridade
europeia entendeu que os anúncios públicos dos valores de frete a serem
cobrados futuramente, feitos periodicamente pelas transportadoras em seus sites ou via
imprensa, tinham o efeito de sinalizar aos concorrentes as respectivas estratégias
comerciais. A Comissão Europeia não identificou ganhos relevantes para os
consumidores finais, na medida em que as informações publicadas não eram úteis
a eles da forma apresentada. As transportadoras celebraram acordo para encerrar
o processo, interrompendo a conduta [11].
Nos Estados Unidos [12],
há um número limitado de casos relacionados a anúncios públicos unilaterais,
sendo que na grande maioria deles houve acordo. Por exemplo, em 2010, o Federal
Trade Commission (FTC) entendeu que a estratégia comercial adotada pela
empresa U-Haul
International no mercado de aluguel de caminhões, de aumentar
os seus preços, incentivar o aumento de preços de concorrentes, e ameaçar
abaixar novamente os seus preços caso concorrentes não fizessem o mesmo,
poderia resultar em um menor grau de concorrência no setor.
Em outro caso envolvendo publicidade de
anúncios em jornais no mesmo ano, o CEO da empresa Valassis Communications,
listada em bolsa, sabendo que seu concorrente estaria acompanhando conferência
telefônica, anunciou nova estratégia de aumento de preços sem qualquer
justificativa comercial legítima. Na ocasião, o FTC concluiu que a empresa
pretendeu viabilizar um conluio por meio do anúncio.
Estes casos ilustram, portanto, que a
preocupação externada pelo Cade no caso recentemente anunciado é também
uma preocupação de outras autoridades, o que gera ainda mais riscos a
associações de classe e empresas que percebem valor na comunicação pública de
informações que são sensíveis do ponto de vista da concorrência.
O processo administrativo de
Sindicombustíveis/DF revela que o Cade está acompanhando de perto, com
interesse, os anúncios públicos de preços. O fato de os anúncios públicos terem
diferentes formatos, conteúdos e extensão faz com que o Cade, nos precedentes
existentes até aqui, não tenha respondido todas as perguntas que surgem,
deixando importante espaço para debate.
As investigações do Cade referentes a
anúncios públicos têm se concentrado, ainda, nas manifestações realizadas por
líderes de associações e sindicatos. Pela atuação das autoridades europeias e
norte-americana, nota-se, contudo, que o escrutínio dos anúncios públicos já
chegou no nível da empresa. Novos desdobramentos tendem a surgir ao longo dos
anos, de modo que empresas, associações e sindicatos devem ser cautelosos antes
da realização de anúncios públicos.
[3] A infração
concorrencial é intitulada "influência à conduta comercial uniforme",
inserida dentro do gênero mais amplo das condutas
coordenadas. Artigo 36. Constituem infração da ordem econômica,
independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham
por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam
alcançados: I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre
concorrência ou a livre iniciativa; [...] IV - exercer de forma abusiva posição
dominante. §3º As seguintes condutas, além de outras, na medida em que
configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam
infração da ordem econômica: II - promover, obter ou influenciar a adoção de
conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes;
Autores:
Amanda Athayde é professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial,
concorrência, comércio internacional ecompliance, consultora no Pinheiro Neto,
doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em
administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA,
ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros,
organizadora de livros e autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos
de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio
internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa
comercial e interesse público.
Leonardo Rocha e Silva é sócio do escritório Pinheiro Neto
Advogados, Master of Laws (LL.M.) pela University of Warwick, bacharel
em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) em Relações
Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB).
Luís Henrique Perroni Fernandes é advogado sênior de Pinheiro Neto
Advogados, criador do projeto "Por Dentro do LLM", LL.M. em Direito
pela University of Pennsylvania Carey Law School (2021) e ex-visiting associate no
escritório Gibson, Dunn & Crutcher, em Nova York.
Fonte:
Revista Consultor Jurídico