O Programa Emergencial de Retomada do Setor
de Eventos (Perse) foi instituído pela Lei nº 14.148/2021 na forma de um
conjunto de incentivos fiscais dirigidos ao setor de eventos a fim de
compensá-lo por ter sido sacrificado pelo poder público no combate à pandemia
de Covid-19 [1]. Dentre as medidas, concedeu-se
alíquota zero de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins, pelo prazo de 60 meses, para as empresas
que preenchessem os requisitos previstos no artigo 2º da lei.
Inicialmente, o benefício foi previsto para
as empresas que desempenhassem as atividades indicadas nos (88) CNAEs listados
pela Portaria ME nº 7.163/2021. No entanto, a pretexto de que essa amplitude
poderia "comprometer
o orçamento público e o cumprimento das metas fiscais", o
Poder Executivo editou a Medida Provisória nº 1.147/2022 com vistas a reduzir o
alcance da alíquota zero.
A MP alterou a redação do artigo 4º da Lei
n. 14.148/21 para estipular que a alíquota zero se restringe aos resultados
oriundos das atividades "relacionadas
em ato do Ministério da Economia". A intenção, segundo a exposição
de motivos, era diminuir a quantidade de empresas beneficiadas com a alíquota
zero, por meio de uma segregação de atividades consideradas relacionadas ao
setor de eventos para fins da desoneração, distinguindo-as daquelas que, embora
também pertencentes ao setor de eventos e enquadradas no Perse, só poderiam se
beneficiar de outras medidas, como a renegociação de dívidas.
Nesse contexto, foi editada a Portaria ME
nº 11.266/2022, publicada em 2/1/2023, redefinindo para 38 os CNAEs
beneficiados com alíquota zero, o que implicou a exclusão de 50 atividades que
estavam abrangidas pelo benefício. Como resultado, houve a revogação parcial do
incentivo, no que toca às empresas cujas atividades deixaram de ser
contempladas.
A questão aqui tratada é saber se as
empresas que faziam jus à alíquota zero de acordo com os critérios da Lei nº
14.148/2021 e da Portaria 7.163/2021 poderiam ser excluídas do benefício antes
do fim do prazo previsto para sua fruição ou se, diversamente, possuem direito
adquirido ao benefício.
Tal se coloca diante da equiparação, pelo
STF e pelo STJ, do instituto da alíquota zero ao da isenção tributária [2][3],
sendo-lhe, portanto, aplicável o disposto no artigo 178 do CTN, segundo o
qual "a isenção,
salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode
ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no
inciso III do art. 104".
Como se vê, a regra é de que a isenção
incondicionada ou por tempo indeterminado pode ser revogada a qualquer tempo,
por razões de política fiscal. Por outro lado, se a isenção tem prazo
determinado e é condicionada, o atendimento aos seus pressupostos gerará
direito adquirido ao beneficiário, o que impede sua revogação antes do prazo
estipulado para sua fruição. Foi o que previu, aliás, o artigo 41, § 2º, do
ADCT [4] em relação aos incentivos condicionados e com prazo certo
anteriores à Constituição de 1988 ("A
revogação não prejudicará os direitos que já tiverem sido adquiridos, àquela
data, em relação a incentivos concedidos sob condição e com prazo certo").
Sobre o tema, há muito o STF editou a
Súmula nº 544 no sentido de que "isenções
tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente
suprimidas". Os precedentes que aplicam essa orientação
confirmam que "a
isenção tributária, quando concedida por prazo certo e mediante o atendimento
de determinadas condições, gera direito adquirido ao contribuinte beneficiado" [5].
No caso do Perse, a alíquota zero foi
concedida pelo prazo 60 meses (artigo 4º da Lei nº 14.148/21), atendendo, assim,
ao requisito de prazo determinado. Ademais, a desoneração foi condicionada ao
cumprimento dos requisitos previstos no artigo 2º da Lei nº 14.148 e
(originalmente) na Portaria ME 7.163. Segundo essas normas, a alíquota zero
somente se aplicaria às empresas que desenvolvessem atividades relacionadas ao
setor de eventos, possuíssem algum dos CNAEs listados nos Anexos I e II da
Portaria ME 7.163 e, no caso das atividades relacionadas a serviços turísticos,
as empresas deveriam estar com situação regular no Cadastur do Ministério do
Turismo [6]. Além disso, a Receita Federal publicou a Instrução Normativa
2.114/2022 em cujo artigo 4º dispôs que o benefício só se aplica às empresas
que "apurem o
IRPJ pela sistemática do Lucro Real, do Lucro Presumido ou do Lucro Arbitrado",
o que impede a opção pelo Simples Nacional, ainda que a pessoa jurídica se
enquadre nos requisitos desse regime. Todas essas exigências são condições à
fruição da alíquota zero.
Por outro lado, eventual discussão que
poderia surgir com relação a esse tema diz respeito à existência ou não de
onerosidade no Perse. Isso se coloca tendo em vista a redação adotada pela
Súmula 544/STF e a circunstância de que, na maioria dos julgados que aplicam a
ressalva do art. 178 do CTN, a análise recaía sobre alguma desoneração
concedida mediante contraprestação do beneficiário, como a realização de
investimentos, construção de empreendimento em determinado local etc., ou seja,
casos em que a condição onerosa do benefício era evidente.
Não há dúvida de que as isenções
tributárias condicionadas a investimento prévio do contribuinte se enquadram na
hipótese de irrevogabilidade. Mas assim o é porque a exceção à revogabilidade
se justifica sempre que a isenção, pelas condições da sua outorga, tenha
conduzido o contribuinte a determinada conduta ou atividade que ele não
empreenderia se estivesse sujeito ao tributo afastado/reduzido pelo incentivo.
Daí que qualquer condição que tenha o efeito de influenciar um comportamento do
contribuinte para ter direito ao benefício deve ser considerada suficiente para
caracterizar a desoneração como onerosa.
Não à toa, Hugo de Brito Machado comenta
que "a isenção
concedida por prazo determinado se presume onerosa, ainda que a lei não
estabeleça expressamente condições que sejam claramente ônus para o interessado",
pois "presume-se que
ao concretizar a situação colhida pelo legislador como hipótese de incidência
da norma de isenção o contribuinte está deixando de optar por situações que lhe
seriam mais vantajosas. Está realizando o objetivo extrafiscal desejado pelo
legislador. E isto, por si só, há de ser entendimento como um ônus, que implica
a irrevogabilidade da norma de isenção por prazo determinado" [7].
No caso, a criação do Perse se justificou
na onerosidade dos atos do Poder Público que impactaram o setor de eventos no
combate à pandemia de Covid-19. Tanto que a justificativa do PL nº 5.638/2020,
que deu origem à Lei nº 14.148/2021, reconheceu "que o Setor de Eventos foi o
mais afetado na pandemia", por ter sido "escolhido, ainda que
inconscientemente, para ser sacrificado em nome de todos", já
que os estados e municípios proibiram "os
eventos como pretexto para preservar a saúde de todos". Disso
decorre que a alíquota zero representa uma compensação pelos prejuízos que as
empresas do setor de eventos foram obrigadas a suportar. Nessa medida, a
condição onerosa do benefício seria manter atividade pertencente ao setor mais
impactado pelas ações de combate à pandemia.
Nessa ordem de ideias, a jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça já reconheceu o caráter oneroso de desonerações
(isenção, alíquota zero, redução de base de cálculo) concedidas em função de
determinadas condições que não envolviam a necessidade de serem feitos
investimentos por parte dos contribuintes.
Nesse sentido, por exemplo, no REsp nº
1.241.131/RJ [8], o STJ examinou a isenção de IR sobre o ganho de capital
auferido por pessoa física na venda de participação societária conferida pelo
Decreto-lei 1.510/1976, tendo concluído que se tratava de isenção onerosa em
razão do requisito de se aguardar cinco anos da data de aquisição para vender
as ações, conforme
posição também adotada no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais
(Carf).
Nos REsp nº 1.987.675/SP[9], REsp nº
1.987.675/SP [10] e REsp 1.845.082/SP [11], que tratavam sobre a
revogação da alíquota zero de PIS/Cofins incidente sobre a venda de aparelhos
de informática concedida pela Lei n. 11.196/2005 (Lei do Bem) no âmbito do
Programa de Inclusão Digital (PID), o STJ constatou que "a exigência de que a empresa deva se
submeter a um processo específico de produção, bem como a limitação do preço de
venda dos produtos, caracteriza a onerosidade para usufruir da redução da
alíquota zero", além de "restrição de fornecedores, traduzindo inegável
restrição à liberdade empresarial, especialmente, no ambiente da economia de
livre mercado". Por isso se concluiu, nesses julgados,
que a revogação do benefício antes do prazo estipulado violou "o art. 178 do Código
Tributário Nacional, ainda que, na matéria em questão, trate-se de revogação de
alíquota zero, pois a exoneração foi concedida por prazo certo e de forma
onerosa e condicionada".
No REsp nº 627.998/CE [12], que
envolvia isenção e redução de base de cálculo de tributos no âmbito do Programa
Especial de Exportação (Befiex) instituído pelo Decreto-lei nº 1.219/1972, a
Corte Superior concluiu que a condição onerosa era o incremento das exportações de
produtos manufaturados. Idêntica conclusão foi adotada no REsp 226.310/RS em
relação à isenção do Imposto de Importação e do IPI instituída pelo Decreto-Lei
nº 2.324/1987 [13].
Tais precedentes permitem sustentar que as
desonerações condicionais (onerosas) abrangidas pelo disposto no artigo 178 do
CTN não são apenas aquelas que exigem investimentos do contribuinte, mas também
as que preveem algum outro fator sine
qua non à fruição do benefício, o que é encontrado no Perse.
Corrobora esse raciocínio, ainda, o Parecer
SEI nº 7.699/2020 emitido pela Procuradoria da Fazenda Nacional em resposta a
consulta formulada pela Receita Federal, no qual foi exposto o seu entendimento
de que a isenção de contribuições sobre a folha de salários prevista no artigo
9º da Medida Provisória nº 905/2019, que instituiu o "Contrato de Trabalho
Verde e Amarelo", faz jus à irrevogabilidade do artigo 178 do CTN, por
estar associada ao fomento de novos empregos. De maneira similar, a alíquota
zero do Perse também se destina a preservar as empresas do setor de
eventos e os empregos por elas gerados, pois somente os estabelecimentos que
mantiverem as suas atividades terão direito ao benefício, sendo certo que a
perda do incentivo compromete não só a continuidade da atividade, mas também a
manutenção dos empregados.
Portanto, há elementos na legislação e na
jurisprudência para se sustentar haver caráter oneroso no Perse, ainda que o
benefício não exija contraprestações específicas e diretas por parte do
contribuinte. Isso, em razão de ter sido condicionado ao exercício e manutenção
de atividades relacionadas ao setor mais onerado durante o combate à pandemia,
além da regularidade de cadastros e impossibilidade de adesão a regime
tributário simplificado.
Espera-se que o Poder Judiciário seja
sensível e resguarde o direito das empresas que confiaram no incentivo fiscal
para dar continuidade aos seus negócios, não apenas em razão desses
fundamentos, mas também em atenção aos princípios da segurança jurídica, boa-fé
e lealdade que devem nortear as relações entre Fisco e contribuintes.
[3] "Inaceitável restringir, por ato
infralegal, o benefício fiscal conferido ao setor produtivo, mormente quando as
três situações - isento, sujeito à alíquota zero
e não tributado -, são equivalentes quanto ao resultado prático delineado pela
Lei do benefício." (STJ, EREsp
1.213.143/RS, red. para acórdão min. Regina Helena Costa, 1ª Seção, j.
1/2/2022).
[4] "Art. 41. Os Poderes Executivos da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios reavaliarão todos os
incentivos fiscais de natureza setorial ora em vigor, propondo aos Poderes
Legislativos respectivos as medidas cabíveis.
§ 1º. Considerar-se-ão revogados após dois
anos, a partir da data da promulgação da Constituição, os incentivos que não
forem confirmados por lei.
§ 2º. A revogação não prejudicará os
direitos que já tiverem sido adquiridos, àquela data, em relação a incentivos
concedidos sob condição e com prazo certo."
Autor:
Alexsandro Miranda Borges é advogado
no escritório Dias de Souza Advogados Associados.
Fonte: Revista Consultor Jurídico