A 3ª Turma do
STJ (Superior Tribunal de Justiça), em recente decisão, entendeu que as sociedades
limitadas de grande porte não são obrigadas a publicar demonstrações
financeiras no Diário Oficial e em jornal de
grande circulação, previamente ao arquivamento na Junta Comercial.
A decisão, no
bojo do Recurso Especial nº 1.824.891, se fundamenta na violação ao artigo
3º da Lei 11.638/2007 [1], visto que o dispositivo
não prevê explicitamente hipótese de "publicação" de
demonstrações financeiras para as sociedades de grande porte não classificadas
como sociedade anônima.
Em que pese o
principal fundamento apresentado pela Corte Especial encontrar amparo no
princípio da legalidade ou da reserva legal, compreendido no sentido de que
somente as leis podem criar obrigações às pessoas, um debate mais verticalizado
se impõe ao caso, sobretudo em viés afeto a abrangência da interpretação das
normas e da própria juridicidade em tempos em que se discute acerca dos critérios
relacionados a divulgação de demonstrações financeiras de grandes empresas,
aptas a lesar uma coletividade (como no caso da Americanas).
Argumentos discutidos e a visão do STJ
As sociedades de
grande porte, inclusive limitadas, nos termos do parágrafo único do
artigo 3º da Lei 11.638/2007, são compreendidas como a sociedade ou
conjunto de sociedades sob controle comum que tiver, no exercício social
anterior, ativo total superior a R$ 240 milhões ou receita bruta anual superior
a R$ 300 milhões.
Ante aos
vultosos valores envolvidos, as responsabilidades tidas como
"limitadas" pelo tipo societário, passam a ter relevante
interesse social ou coletivo em diversos aspectos.
Daí advém o
próprio fundamento da Lei 11.638/2007, que teve como intenção do legislador
equiparar as "sociedades de grande porte" às sociedades
anônimas. Nesse sentido, portanto, foi o acórdão impugnado pelo REsp em exame: "A
intenção do legislador, ao promulgar a Lei n° 11.638/2007, que trata da
divulgação de demonstrações financeiras das sociedades de grande porte, é de
tornar obrigatória a publicação das demonstrações financeiras de sociedades
empresárias limitadas de grande porte" (TRF-2, 68 Turma
Especializada, AC 00435956020124025101,
relator desembargador federal GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA
GAMA, DJE 21.2.2017).
Destaca-se que a
própria ementa da Lei 11.638/2007 faz menção as divulgações de demonstração
financeira, ao estabelecer que esta "Altera e revoga dispositivos da Lei n? 6.404,
de 15 de dezembro de 1976, e da Lei n? 6.385, de 7 de dezembro de 1976, e
estende às sociedades de grande porte disposições relativas à elaboração e
divulgação de demonstrações financeiras".
Sucede que a
legislação em si, o que não abrange ementa, ao equiparar as sociedades de
grande porte às sociedades anônimas, textualmente, apenas impõe observância aos
ditames da Lei 6.404/1976 para 1) escrituração e elaboração de demonstrações
financeiras; e 2) obrigatoriedade de auditoria independente por auditor registrado
na Comissão de Valores Mobiliário (CVM).
Por tal motivo,
as empresas recorrentes alegaram que: "(1) referida norma estabelece que devem ser
aplicadas às sociedades limitadas de grande porte a Lei 6404/76 no que se
refere à elaboração e escrituração de suas demonstrações financeiras,
silenciando quanto à publicação; (2) a expressão 'publicação' constava
originalmente do projeto de lei, porém, foi intencionalmente suprimida pelo
legislador; (3) as juntas comercias não têm competência normativa originária
para estabelecer exigências ou medias restritivas de direito não impostas pela
lei; (4) considerando que as sociedades limitadas possuem capital fechado,
somente interessam a ela e seus sócios as demonstrações financeiras, até porque
a concorrência pode utilizar indevidamente as informações
publicadas" [2].
Apar do debate
instaurado, em resumo, a decisão do STJ se deu no sentido de que a redação da
Lei 11.638/2007 não trouxe a obrigação expressa para as sociedades de grande
porte publicarem suas demonstrações financeiras, limitando seu texto a estender
as disposições relativas à escrituração e elaboração. Para além disso,
asseverou-se que 1) a expressão "publicação" constava originalmente
do projeto de lei e foi suprimida quando da aprovação; e 2) nem mesmo o fato da
ementa da Lei 11.638/2007 afirmar que ela "estende às sociedades
de grande porte disposições relativas à elaboração e divulgação de
demonstrações financeiras", é capaz de alterar tal
entendimento, por sua ausência de força normativa.
Em síntese
conclusiva, deu-se provimento ao recurso especial para excluir a suposta
obrigatoriedade das empresas limitadas de grande porte de fazerem publicar suas
demonstrações financeiras.
Um debate com maior abrangência: interpretação,
sistema uno e consequências
Todo
pronunciamento judicial é passível de críticas, sejam elas relacionadas a justiça
do julgado ou de sua técnica empreendida. Sem entrarmos em aspectos de justiça,
a decisão em tela nos parece adotar técnica extremamente confortável, haja
vista que, de fato, a norma em exame não traz obrigatoriedade quanto a
divulgação das demonstrações financeiras das sociedades de grande
porte - o que criaria obrigações fora das hipóteses legais.
A legalidade
estrita, por si só considerada, contudo, traz uma sensação de que a discussão
judicial poderia ter avançado em outros aspectos igualmente importantes. Em
outros termos, os argumentos discutidos e a visão final decidida poderiam ter
maior abrangência.
Com efeito, sem
pretensões de esgotar todas as possíveis discussões, nos parece que a decisão
em discussão não poderia se ater apenas a interpretação literal do artigo 3º da
Lei 11.638/2007 e simplesmente ignorar as interpretações teleológica e
sistemática, imprescindíveis para regularidade do Ordenamento Jurídico.
Ainda que o
resultado final fosse pela lógica da literalidade - como mencionado,
de extremo conforto ao julgador - a omissão relativamente a intenção
do legislador ao promulgar a Lei n° 11.638/2007, conforme todo o sistema e
aparato legislativo (inclusive a citada ementa), que nitidamente foi o de
equiparar as sociedades de grande porte às sociedades anônimas, nos parece
prejudicial ao debate.
Saindo do campo
interpretativo e agora bebendo-se da fonte do pós-positivismo, que detém como
uma de suas características a normatividade primária dos princípios, entende-se
atualmente que não basta que a atuação estatal, sobretudo relativamente ao
Poder Judiciário, respeite a lei em sentido estrito, mas sim todo o Ordenamento
Jurídico (ideia de Juridicidade, em um sistema uno) - que
nos parece convergir à ideia de que a Lei n° 11.638/2007 visou equiparar as
sociedades de grande porte às sociedades anônimas.
Demais disso, a
própria ideia de Juridicidade impõe que as decisões judiciais devem atentar-se
as consequências práticas engendradas, sendo o dispositivo gerado no REsp
discutido um importante norte, guia ou bússola para as sociedades limitadas de
grande porte no que tange a transparência e controlabilidade (accountability)
com a não divulgação das demonstrações financeiras.
Quanto ao ponto,
não se ignora que as sociedades limitadas possuem capital fechado, em relações
nitidamente privadas. Todavia não se pode considerar que somente interessam a
ela e seus sócios as demonstrações financeiras, visto que estas exercem
atividades em grande vulto, sendo de relevante interesse coletivo e social. Por
fim, ainda que a concorrência possa utilizar indevidamente as informações
publicadas, outra saída não se vê para além da responsabilização daqueles que
cometerem o abuso de direito.
Tudo isso faz
ainda maior sentido no cenário atual, trazendo-se como exemplo o caso da
empresa Americanas (apesar de tratar-se, em essência, de uma Sociedade
Anônima). Isso porque atuais investigações passaram a clarear as supostas
manipulações realizadas em informações publicadas/circuladas para esconder as
dívidas da empresa com bancos [3].
Conclusão
O tema é palpitante e merece estudos ainda mais aprofundados. A intenção com a
presente explanação busca tão somente jogar luz acerca da necessidade de
avançarmos em aspectos de transparência e controlabilidade (accountability)
com a divulgação das demonstrações financeiras nas sociedades de grande porte,
ainda que fora do espectro das sociedades anônimas, sob pena de possíveis
lesões à coletividade nos mais diversos aspectos.
Tal necessidade,
invariavelmente, entra em descompasso com a recente decisão
noticiada - merecedora, data venia, de maior ampliação
argumentativa.
Autor: Matheus
Ricci Portella é advogado em Portella Advogados, pós-graduado em Direito
Público pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e mestrando em
Direito.
Fonte: Revista Consultor Jurídico