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Criptoeconomia ou criptomania? Duas faces da mesma criptomoeda


Publicada em 25/06/2023 às 09:00h 

Há uma cena emblemática do filme O Lobo de Wall Street na qual seu protagonista consegue vender ações de uma companhia de "fundo de quintal" cotadas a valores baixos como sendo o próximo fenômeno do mercado, gerando um "medo de ficar de fora" no potencial cliente. Sua abordagem arrojada causa uma comoção, dado seu carisma e poder de venda, que persistem até hoje (vale a pena conferir a página de Jordan Belfort no TikTok).


Muitas pessoas compram ativos financeiros sem ter a menor ideia do que exatamente adquirem. Não é "sexy" explicar como as tecnologias de registro distribuído podem diminuir custos e aumentar a interoperabilidade entre sistemas de infraestrutura de mercado financeiro. Por outro lado, muitos param para ouvir sobre uma oportunidade única de alcançar a liberdade financeira, conhecendo a próxima criptomoeda meme que já subiu 1.000% e que poderá subir mais 1.000% é muito mais eficaz. "Arraste para cima" e seja arrastado para baixo, ironicamente.


Celebridades e gurus são muito mais capazes de conquistar a mente de investidores do que qualquer regulador, acadêmico ou profissional de investimentos. Afinal, aprendemos que qualquer produto pode ser vendido, desde que o devido "copy" seja utilizado, agregado a uma "fórmula de lançamento" ou estratégia de marketing digital e gestão de tráfego. É possível até mesmo ficar milionário vendendo cursos sobre... como vender cursos!


Nesse contexto, não surpreende a volatilidade e o apetite especulativo em um "ativo" que declaradamente não representa nenhum benefício econômico ou direito, mas tão somente referenciam um meme (Doge, Shiba Inu, Pepe etc.) e é uma fração em um estoque de trilhões de ativos idênticos que foram emitidos. Sua cotação com nove ou mais casas decimais dificulta a percepção, pelos investidores, de que uma pequena variação nominal pode ter o efeito de um bilhete de loteria ou representar uma catástrofe financeira em seu patrimônio pessoal.


As exchanges de criptoativos são um misto de corretoras (porque aproximam compradores e vendedores) e bolsas (porque aglutinam ofertas e liquidam as operações) e atualmente são os principais atores do setor, acompanhados de emissores de stablecoins e provedores de soluções de custódia de criptoativos.


Contudo, ao analisarmos o ranking das cem tokens mais relevantes no portal CoinMarketCap, dificilmente encontraremos algum que represente uma relação genuína de dívida (debt) ou participação (equity). Em outros termos, a maior parte ou a totalidade desses ativos não guarda relação com o financiamento da atividade econômica nos moldes dos instrumentos financeiros tradicionais. Para alguns, essa constatação é suficiente para que o mercado de criptoativos seja equiparado ao de apostas e não ao mercado financeiro.


Infelizmente, a maior parte da atenção e investimentos ainda é destinada a esta faceta mais especulativa da criptoeconomia, que se desnatura em criptomania. Considerando a proliferação de meme coins, o comportamento do mercado diante de frivolidades (como tweets de Elon Musk com imagens de cachorrinhos ou stories de influenciadores) e a afinidade da tecnologia para ocultar patrimônio, lavar dinheiro e sonegar impostos, é difícil convencer instituições financeiras tradicionais de que esse setor tem alguma legitimidade econômica. Para outros, porém, essas instituições incumbentes são incapazes de reconhecer a inovação e, caso não se adaptem, serão extintas, pois o futuro finalmente chegou.


Esse fenômeno sinaliza um problema crônico do mercado financeiro: educação financeira não é suficiente diante de nossos vieses cognitivos. Tendemos a ignorar informações que contradizem nossas crenças prévias, damos menos importância a dados agregados em favor de resultados mais recentes. Aceitamos, com pouco ou nenhum questionamento, dados que confirmem nossas expectativas, somos injustificadamente otimistas e adotamos comportamentos não raro incompatíveis com nosso nível de escolaridade. Vale lembrar que Sir Isaac Newton foi vítima da South Sea Bubble, razão pela qual escreveu ser capaz de "calcular o movimento dos corpos celestes", mas incapaz de "prever a loucura das multidões".


Ciente dessa vulnerabilidade, alguns agentes de mercado exploram assimetrias de informação e privilegiam interesses próprios em detrimento do interesse de seus clientes. As cotações podem ser objeto de manipulações inescrupulosas, como esquemas de pump and dump (cada vez mais comuns em temo de engajamento de enxames em redes sociais). Informações privilegiadas podem ser insumo para negócios escusos e o mercado se revela não somente um cassino, mas também um no qual os dados são viciados quando, nas ofertas públicas, intermediários agem de modo a privilegiar certos clientes em prejuízo de outros. Há quem acredite que o investidor de varejo só pode ter algum ganho no mercado de capitais por pura sorte, não porque tem menor capacidade de coletar, verificar, analisar e utilizar informações, mas porque é reiteradamente induzido a erro ou é privado de boas oportunidades.


A regulação, apontada como vilã pela imposição dos custos de observância de da mão pesada, burocrática e ineficiente do Estado, decorre da necessidade de lidar com as falhas observadas no mercado, dentre as quais, além da assimetria de informação, encontramos a concentração de poder econômico, ineficiências alocativas e externalidades. Mas a regulação não basta, sem a existência de um regulador capaz de aplicá-la, de fiscalizar os agentes de mercado, com pessoal, capacidade técnica e dotação orçamentária adequados ao seu mandato legal.


A regulação pode ter seus efeitos colaterais indesejados, resultando em formulários infinitos, prospectos monstruosos e deveres instrumentais cujo cumprimento drena a alegria de viver de quem trabalha na advocacia no mercado de capitais. A despeito disso, o frenesi especulativo em torno dos criptoativos nos fornece um vislumbre do que é um mercado com ampla liberdade, o qual parece tender a uma pura e simples mania onde a predação dos sonhos alheios persiste enquanto houver novos tolos dispostos a pagar mais caro pelo ingresso para a "próxima revolução das finanças".


Pelo exposto, ouso afirmar que, se não expurgarmos a criptomania, não será possível o florescimento da criptoeconomia.


Autor: 
Isac Costa é sócio de Warde Advogados, professor do Ibmec e do Insper, doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito, engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM, onde também atuou como assessor do colegiado.










Fonte: Revista Consultor Jurídico





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