Há uma cena emblemática do
filme O Lobo de Wall
Street na qual seu protagonista consegue vender ações de uma
companhia de "fundo de quintal" cotadas a valores baixos como sendo o
próximo fenômeno do mercado, gerando um "medo de ficar de fora" no
potencial cliente. Sua abordagem arrojada causa uma comoção, dado seu carisma e
poder de venda, que persistem até hoje (vale a pena conferir a página de
Jordan Belfort no TikTok).
Muitas pessoas compram ativos financeiros
sem ter a menor ideia do que exatamente adquirem. Não é "sexy"
explicar como as tecnologias de registro distribuído podem diminuir custos e
aumentar a interoperabilidade entre sistemas de infraestrutura de mercado
financeiro. Por outro lado, muitos param para ouvir sobre uma oportunidade
única de alcançar a liberdade financeira, conhecendo a próxima criptomoeda meme
que já subiu 1.000% e que poderá subir mais 1.000% é muito mais eficaz.
"Arraste para cima" e seja arrastado para baixo, ironicamente.
Celebridades e gurus são muito mais capazes
de conquistar a mente de investidores do que qualquer regulador, acadêmico ou
profissional de investimentos. Afinal, aprendemos que qualquer produto pode ser
vendido, desde que o devido "copy" seja utilizado, agregado a uma
"fórmula de lançamento" ou estratégia de marketing digital e gestão
de tráfego. É possível até mesmo ficar milionário vendendo cursos sobre... como
vender cursos!
Nesse contexto, não surpreende a
volatilidade e o apetite especulativo em um "ativo" que
declaradamente não representa nenhum benefício econômico ou direito, mas tão
somente referenciam um meme (Doge, Shiba Inu, Pepe etc.) e é uma
fração em um estoque de trilhões de ativos idênticos que foram emitidos. Sua
cotação com nove ou mais casas decimais dificulta a percepção, pelos
investidores, de que uma pequena variação nominal pode ter o efeito de um
bilhete de loteria ou representar uma catástrofe financeira em seu patrimônio
pessoal.
As exchanges de
criptoativos são um misto de corretoras (porque aproximam compradores e
vendedores) e bolsas (porque aglutinam ofertas e liquidam as operações) e
atualmente são os principais atores do setor, acompanhados de emissores
de stablecoins e
provedores de soluções de custódia de criptoativos.
Contudo, ao analisarmos o ranking das cem
tokens mais relevantes no portal CoinMarketCap, dificilmente encontraremos
algum que represente uma relação genuína de dívida (debt) ou participação (equity). Em outros
termos, a maior parte ou a totalidade desses ativos não guarda relação com o
financiamento da atividade econômica nos moldes dos instrumentos financeiros
tradicionais. Para alguns, essa constatação é suficiente para que o mercado de
criptoativos seja equiparado ao de apostas e não ao mercado financeiro.
Infelizmente, a maior parte da atenção e
investimentos ainda é destinada a esta faceta mais especulativa da
criptoeconomia, que se desnatura em criptomania. Considerando a proliferação
de meme coins,
o comportamento do mercado diante de frivolidades (como tweets de Elon Musk com
imagens de cachorrinhos ou stories de influenciadores) e a afinidade da
tecnologia para ocultar patrimônio, lavar dinheiro e sonegar impostos, é
difícil convencer instituições financeiras tradicionais de que esse setor tem
alguma legitimidade econômica. Para outros, porém, essas instituições
incumbentes são incapazes de reconhecer a inovação e, caso não se adaptem,
serão extintas, pois o futuro finalmente chegou.
Esse fenômeno sinaliza um problema crônico
do mercado financeiro: educação financeira não é suficiente diante de
nossos vieses cognitivos. Tendemos a ignorar informações que contradizem
nossas crenças prévias, damos menos importância a dados agregados em favor de
resultados mais recentes. Aceitamos, com pouco ou nenhum questionamento, dados
que confirmem nossas expectativas, somos injustificadamente otimistas e
adotamos comportamentos não raro incompatíveis com nosso nível de escolaridade.
Vale lembrar que Sir Isaac Newton foi vítima da South Sea Bubble, razão
pela qual escreveu ser capaz de "calcular o movimento dos corpos celestes",
mas incapaz de "prever
a loucura das multidões".
Ciente dessa vulnerabilidade, alguns
agentes de mercado exploram assimetrias de informação e privilegiam interesses
próprios em detrimento do interesse de seus clientes. As cotações podem ser
objeto de manipulações inescrupulosas, como esquemas de pump and dump (cada
vez mais comuns em temo de engajamento de enxames em redes sociais).
Informações privilegiadas podem ser insumo para negócios escusos e o mercado se
revela não somente um cassino, mas também um no qual os dados são viciados
quando, nas ofertas públicas, intermediários agem de modo a privilegiar certos
clientes em prejuízo de outros. Há quem acredite que o investidor de varejo só
pode ter algum ganho no mercado de capitais por pura sorte, não porque tem menor
capacidade de coletar, verificar, analisar e utilizar informações, mas porque é
reiteradamente induzido a erro ou é privado de boas oportunidades.
A regulação, apontada como vilã pela
imposição dos custos de observância de da mão pesada, burocrática e ineficiente
do Estado, decorre da necessidade de lidar com as falhas observadas no mercado,
dentre as quais, além da assimetria de informação, encontramos a concentração
de poder econômico, ineficiências alocativas e externalidades. Mas a regulação
não basta, sem a existência de um regulador capaz de aplicá-la, de fiscalizar
os agentes de mercado, com pessoal, capacidade técnica e dotação orçamentária
adequados ao seu mandato legal.
A regulação pode ter seus efeitos
colaterais indesejados, resultando em formulários infinitos, prospectos
monstruosos e deveres instrumentais cujo cumprimento drena a alegria de viver
de quem trabalha na advocacia no mercado de capitais. A despeito disso, o
frenesi especulativo em torno dos criptoativos nos fornece um vislumbre do que
é um mercado com ampla liberdade, o qual parece tender a uma pura e simples
mania onde a predação dos sonhos alheios persiste enquanto houver novos tolos
dispostos a pagar mais caro pelo ingresso para a "próxima revolução das
finanças".
Pelo exposto, ouso afirmar que, se não
expurgarmos a criptomania, não será possível o florescimento da criptoeconomia.
Autor: Isac Costa é sócio de Warde Advogados,
professor do Ibmec e do Insper, doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em
Direito, engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM, onde também atuou
como assessor do colegiado.
Fonte: Revista Consultor
Jurídico
Gostou da matéria e quer
continuar aumentando os seus conhecimentos com os nossos conteúdos?
Assine, gratuitamente, a
nossa Newsletter Semanal M&M Flash, clicando no link a seguir:
https://www.mmcontabilidade.com.br/FormBoletim.aspx, e
assim você acompanha as nossas atualizações em primeira mão!