Desde o Código Comercial de 1850, passando
pelo Decreto nº 3.708/1919, até o atual Código Civil, o direito de retirada
imotivada de sócio de sociedade empresária limitada sempre foi objeto de
fervorosas discussões doutrinárias e jurisprudenciais. As diferentes aplicações
do instituto e o papel de revés que desempenha frente à figura do direito de
recesso criam um ambiente fértil para o debate acadêmico e prático do direito
empresarial.
O foco do presente trabalho é analisar de
forma crítica os aspectos práticos de cada instituto e a razão pela qual
pode-se observar uma preponderância da utilização do direito de retirada
imotivada em detrimento da utilização do instituto do direito de recesso.
Portanto, não se pretende analisar as controvérsias teóricas sobre a
aplicabilidade do artigo 1.029 do Código Civil às sociedades empresárias
limitadas e sua convivência com o artigo 1.077 do Código Civil, tampouco
reviver os debates sobre a natureza jurídica das sociedades empresárias limitadas
e a regência supletiva da Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/1976).
O presente trabalho partirá da premissa,
que permeia a prática jurídica atual, de que tanto o direito de retirada
imotivada quanto o direito de recesso são medidas cabíveis e válidas para
efetivar a resolução do vínculo societário.
Antes de adentrar na questão, cabe um
lembrete inicial: de acordo com a previsão legal do Código Civil de 2002
(CC/02), no tocante às formas em que o sócio poderá se retirar de uma sociedade
limitada, existem três diferentes hipóteses. As duas primeiras modalidades são
aquelas previstas no artigo 1.029 do CC/02, quais sejam, a saída, mediante
notificação com 60 dias de antecedência aos demais sócios, em caso de sociedade
de prazo indeterminado (retirada imotivada), e a saída com a prova judicial de
justa causa, nas sociedades com prazo determinado (retirada com justa causa).
Já a terceira hipótese é aquela prevista no
artigo 1.077 do CC/02, que prevê a chamada retirada motivada ou direito de
recesso. Aqui, o sócio poderá retirar-se da sociedade nas ocasiões em que tiver
ocorrido modificação no contrato social, incorporação (na qualidade de
incorporada ou incorporadora) ou fusão da sociedade, quando ele tiver sido
dissidente, no prazo de 30 (trinta) dias contados a partir da data da
realização da reunião, gerando, assim, a dissolução parcial da sociedade.
Na prática empresarial, o que se verifica é
a opção do exercício do direito de retirada imotivada em detrimento do
exercício do direito de recesso pelo sócio retirante. Mas quais são os motivos
que justificam essa escolha por empresários e seus causídicos?
O primeiro diz respeito ao escopo de
aplicação dos dispositivos supramencionados, pois as normas específicas para o
direito de recesso são aplicáveis a situações pontuais, que, embora verificadas
em momentos da vida empresarial, não acontecem com tanta frequência, o que já
limita, por si só, a sua aplicabilidade. Mesmo as alterações de contrato
social, que ocorrem com maior frequência em comparação com as operações de
incorporação e fusão, não são tão comuns - quiçá
necessários - no dia a dia dos negócios sociais.
Ainda sobre o escopo de aplicação,
observa-se que o direito de recesso previsto no artigo 1.077 do CC/02 tem por
vocação a proteção de sócios minoritários, uma vez que a dinâmica das
sociedades limitadas permite que uma maioria (simples ou qualificada) possa
impor alterações substanciais no contrato social ou a realização de operações
de fusão, incorporação ou cisão, contra a vontade dos sócios minoritários.
Dessa forma, a expressão "sócio que
dissentir", prevista no artigo 1.077 do CC/02, traduz-se como o sócio
vencido nas deliberações sociais que, por sua vez, aponta para os sócios
minoritários. Por outro lado, o direito de retirada imotivada previsto no
artigo 1.029 do CC/02 não faz qualquer distinção na legitimidade ativa
para o exercício do referido direito, podendo ser exercido por qualquer sócio,
controlador ou minoritário.
Cabe mencionar também a simplicidade da
retirada imotivada, visto que o seu procedimento é extrajudicial, ocorrendo
mediante notificação aos demais sócios e à sociedade, sem necessidade de
comprovação de qualquer justa causa ou motivação específica. Em contrapartida,
tanto a retirada por justa causa quanto o direito de recesso geram um ônus
probatório aos retirantes de comprovar sua adequação a uma das hipóteses
mencionadas nos dispositivos legais discutidos.
Além disso, existem casos em que
determinado sócio, já antecipando a ocorrência futura de uma operação societária
dentro das hipóteses para o direito de recesso e discordando dela, não aguarda
a realização da assembleia que avaliará e possivelmente aprovará a operação,
apresentando notificação extrajudicial para a saída imotivada. Assim, mesmo em
casos concretos que se enquadrariam na previsão legal, o que se vê na prática é
a opção pela retirada imotivada.
Em contrapartida, existe um outro aspecto
em que as hipóteses de saída da sociedade podem trazer diferenças extras, no
que diz respeito à apuração de haveres do sócio retirante.
Independentemente da forma de dissolução
escolhida, a apuração de haveres se dará na forma do contrato social ou,
silente esse, de acordo com a previsão do artigo 1.031 do CC/02, ou seja,
com a liquidação do valor da quota do sócio retirante, considerando o
patrimônio da sociedade aferido em balanço patrimonial especial, com o
pagamento em noventa dias após a liquidação. Quanto ao capital social, este
sofrerá redução referente à quota liquidada, exceto se os demais sócios
suprirem o valor da quota, nos termos do §1º do artigo, 1.031 do CC/02.
Apesar disso, neste particular, verifica-se
a diferença supramencionada, no que toca o marco temporal que deveria ser
considerado como "data da resolução" e contabilizado como base
para a apuração de haveres: a data em que a notificação aos outros sócios foi
por eles recebida ou a data posterior ao término do prazo legal para a referida
notificação.
Antes da entrada em vigor do Código de
Processo Civil de 2015 (CPC/15), que definiu a questão, o tema era
controvertido. Os defensores do primeiro entendimento aduziam que ele impediria
que os sócios remanescentes se utilizassem do prazo da notificação para
dilapidar o patrimônio da sociedade, alterando o balanço que seria realizado e
afetando os valores a serem recebidos pelo sócio que desejava se retirar. Em
contrapartida, os que defendiam a segunda hipótese citavam o fato de que o
prazo legal seria o verdadeiro marco na retirada, de forma que seu fim deveria
ser a data-base para apuração de haveres.
O legislador tentou dirimir essas
controvérsias quando da edição do CPC/15, com a previsão do seu
artigo 605. O dispositivo em tela prevê três datas diversas como data de
resolução do vínculo associativo, a depender do tipo de retirada. Em caso de
retirada imotivada, o marco seria o sexagésimo dia após o recebimento, pela
sociedade, da notificação do sócio retirante (artigo 605, inciso II, do
CPC/15).
Já na retirada por justa causa, a resolução
ocorreria no trânsito em julgado da decisão que dissolve a sociedade (artigo
605, inciso IV, do CPC/15). Por fim, no caso de direito de recesso, nos termos
do artigo 1.077 do CC/02, a data de resolução seria o dia do recebimento, pela
sociedade, da notificação do sócio dissidente (artigo 605, inciso III,
CPC/15).
A inclusão do rol taxativo do
artigo 605 não foi suficiente para pôr um fim às controvérsias quanto à
data base para a apuração de haveres de sócio retirante. Tal discussão chegou
ao Superior Tribunal de Justiça [1], que analisou a
questão em sede de Recurso Especial, em demanda envolvendo sócios de uma
sociedade limitada de prazo indeterminado, que se retiraram imotivadamente
mediante notificação extrajudicial nos termos do artigo 1.029 do C?/02.
Nesta ocasião, a Terceira Turma do STJ
decidiu que a data-base para o cálculo dos haveres do sócio retirante seria o
sexagésimo dia seguinte ao do recebimento, pela sociedade, da notificação do
sócio retirante, por entender que o vínculo da sociedade somente se encerra
após o transcurso do lapso temporal, nos termos do artigo 605, II do
CPC/15.
Em uma tentativa de pacificar o tema e
instruir o registro de atos perante as Juntas Comercias, o Departamento de
Registro Empresarial e Integração (Drei) publicou, em 23 de dezembro de 2022,
a Instrução Normativa nº 88/2022 (IN DREI 88) que, dentre outras
disposições, alterou o Manual de Registro de Sociedade Limitada - que
compõe o Anexo IV à Instrução Normativa Drei nº 81/2020 - para
regular os regimes de retirada de sócios de sociedades limitadas nos casos de
prazo determinado ou indeterminado [2].
A In Drei 88 adotou entendimento
contrário ao da 3ª Turma do STJ, ao estabelecer que a data da resolução da
sociedade limitada em relação a um sócio será: 1) no caso de retirada imotivada
extrajudicial, o sexagésimo dia posterior à data em que o último dos sócios
tiver recebido a notificação de retirada motivada do sócio retirante; e 2) no
caso de retirada motivada extrajudicial (recesso), a data em que o último dos
sócios tiver recebido a notificação de retirada motivada do sócio retirante.
Portanto, é notável o alinhamento da
In Drei 88 com o disposto no artigo 1.029 e 1.077 do CC/02, no
sentido de vincular a data de retirada ao recebimento da notificação por todos
os sócios da sociedade.
A opção do legislador, ao criar diferenças
a depender do tipo de saída da sociedade, não é a melhor solução possível. Isto
pois ele cria divergência em situações que são, em análise ampla, idênticas,
qual seja a retirada de um sócio de uma sociedade limitada.
Não obstante, a data-base prevista para
apuração de haveres na retirada imotivada cria situação perigosa para o sócio retirante,
visto que concede sessenta dias, após o recebimento da notificação, para que os
demais sócios reduzam o patrimônio da sociedade, conforme já mencionado. Isso
torna-se ainda mais danoso considerando a possibilidade do sócio retirante ser
minoritário, o que é algo plenamente possível e consideravelmente comum na
hipótese ora tratada.
Desta feita, se faz necessária uma
alteração legislativa, para que a data-base para a apuração de haveres na
retirada imotivada siga o mesmo critério do verificado na hipótese de direito
de recesso do sócio, ocorrendo na data do recebimento da notificação
extrajudicial pela sociedade. Tal alteração já está sendo avençada no trâmite
legislativo do PLS nº 487/2013 que institui o Novo Código Comercial,
dentre outras matérias que aqui não cabe analisar. O artigo 252 do PLS nº
487/2013 determina que o balanço de determinação terá por referência temporal, no
caso de retirada imotivada, a data do recebimento, pela sociedade, da
notificação do sócio retirante.
Assim, conforme demonstrado, existe uma
clara predileção dos empresários pela retirada imotivada, que tende a ser ainda
mais exacerbada com uma eventual aprovação do PLS nº 487/2013 com a sua redação
atual. Neste particular, uma revisita ao instituto já moribundo do
direito de recesso se faz obrigatória, seja para sepultá-lo de uma vez, com o
entendimento que partilhamos de que a vivência prática, ao optar pela retirada
imotivada, já demonstrou sua falta de uso, seja para salvá-lo, mediante
adaptações que lhe trouxessem vantagens concretas em face da hipótese de
retirada imotivada.
[1] BRASIL.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.735.360/MG
(2018/0086019-6), Terceira Turma, relatora ministra Nancy Andrighi.
Data de Julgamento: 12 de março de 2019. DJe: 15 de março de 2019. Disponível
em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=93251782&num_registro=201800860196&data=20190315&tipo=5&formato=PDF
[2] BRASIL.
MINISTÉRIO DA ECONOMIA Secretaria Especial de Produtividade e Competitividade.
Secretaria de Inovação e Micro e Pequenas Empresas. Departamento Nacional de
Registro Empresarial e Integração. Instrução Normativa Drei/ME nº 88, de 23 de
dezembro de 2022. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/drei/legislacao/arquivos/legislacoes-federais/indrei882022-1.pdf.
Autores: Fernando Naegele é advogado do
Bastilho Coelho Advogados. Mestrando em Direito da Regulação (FGV).
Especialista em Advocacia Empresarial (Ceped). Graduado em Direito (Ibmec).
Matheus Chagas Lamarca é advogado do Bastilho Coelho Advogados e
especialista em Advocacia Empresarial pelo Centro de Estudos e Pesquisas no
Ensino do Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Ceped/Uerj).
Fonte: Revista Consultor Jurídico