A Autoridade Nacional de Proteção de Dados
(ANPD) aplicou a primeira punição administrativa decorrente do Processo
Administrativo Sancionador de nº 00261.000489/2022-62. Para uma melhor
compreensão da relevante decisão é preciso destacar breves considerações acerca
dos fatos que originaram a instauração do Processo Administrativo
Fiscalizatório e, posteriormente, o desdobramento do Processo Administrativo
Sancionador a partir dos subsídios constantes na própria decisão.
A empresa autuada é uma microempresa que atua
no setor privado como provedora de serviços de telefonia, tais como
telemarketing e autoatendimento via serviço de mensageria WhatsApp. A ANPD foi
provocada mediante ofício do Ministério Público do Estado de São Paulo, através
da Promotoria de Justiça de Ubatuba, noticiando suposta oferta de
comercialização de listagem de contatos de eleitores de Ubatuba/SP para fins de
disparo de material de campanha eleitoral, instaurando-se, assim, o Processo
Administrativo Fiscalizatório.
Ato seguinte, a empresa autuada foi oficiada
pela ANPD para que prestasse informações relacionadas à identificação do
encarregado de proteção de dados, a origem dos dados de contatos
comercializados e como se deu a construção da base do banco de dados que
abastece a atividade ofertada, a categoria dos dados pessoais disponibilizados
aos clientes e o volume de registros existentes no banco de dados.
A resposta se limitou à negativa de ter
havido qualquer contratação com o denunciante, optando deliberadamente por não
responder aos demais
questionamentos. A ANPD renovou a intimação, observando o
registro por carta registrada, tendo o prazo decorrido sem resposta. E foi com
fundamento na conduta inerte da autuada em prestar os esclarecimentos
solicitados que foi instaurado o Processo Administrativo Sancionador,
lavrando-se, assim, o auto de infração.
Foram apontadas as seguintes infrações à Lei
Geral de Proteção de Dados (LGPD): i) ausência de hipótese legal de tratamento;
ii) ausência de indicação de encarregado; iii) ausência de envio de relatório
de impacto à proteção de dados; e, iv) falta de comprovação de registro de
operações de tratamento de dados pessoais.
Em sua defesa, a empresa noticiou que os
serviços de marketing por ela comercializados haviam sido encerrados
temporariamente visando a adequação às regras impostas pela Lei Geral de
Proteção de Dados. Quanto a hipótese de tratamento autorizadora para a
atividade desenvolvida, a empresa justificou a ausência em razão da natureza
pública dos dados pessoais. Quanto ao encarregado, apresentou extemporaneamente
a identidade do profissional.
Apesar do relatório da decisão suprimir as
respostas referentes a algumas das indagações da ANPD, especificamente quanto à
origem e à estruturação da base de dados, o documento conclui que diante das
evidências coletadas, através do site da própria empresa, restou incontroverso
que os dados utilizados para os serviços comercializados se originavam de dados
disponíveis na internet.
Conforme palavras extraídas do relatório,
constatou-se que a autuada "montava banco de dados, na medida em que filtrava
números telefônicos para fins de disseminação de mensagens publicitárias por
intermédio do WhatsApp". Desta feita, a ANPD tipificou o ato infracional
consistente no oferecimento, via venda em site de listas de contatos de
titulares de dados para envio de mensagens, nas violações à Lei Geral de
Proteção de Dados, por ausência de base legal dos artigos 7º e 11º, falta de
comprovação de encarregado - artigo 41º - e infração ao artigo 5º do
Regulamento de Fiscalização configurado no não atendimento às requisições no
curso do processo fiscalizatório.
Não foram aplicadas sanções em virtude da não
apresentação do registro das operações de tratamento e do relatório de impacto
à proteção de dados, tendo em vista não terem sido previamente requisitados
pela ANPD à empresa autuada. Feitas as considerações para fins de melhor
compreensão e aprofundamento dos critérios que ensejaram a aplicação das
penalidades, cabem alguns registros para melhor interpretação da primeira
decisão proferida pela ANPD no âmbito das competências que lhe são atribuídas
por força do artigo 5º, XIX, 55-J, inciso I, da LGPD e artigos 17º e 48º do
Regimento Interno da ANPD.
Sobre a infração referente a ausência de
hipótese legal autorizadora para que o tratamento se desse de forma lícita, a
própria empresa autuada ao prestar os esclarecimentos recusou-se a informar,
apenas noticiando tratar-se de dados públicos. Interessante observar que mesmo
diante da inconteste não alocação da base legal no caso concreto, a ANPD traz
em seu relatório de instrução possíveis alternativas que poderiam ser
eventualmente avocadas pelo agente de tratamento, as afasta com as devidas
explicações e que são subsídios valiosos para melhor compreensão da lógica
aplicada pelo órgão regulador.
Especificamente no que tange ao legítimo
interesse do controlador e do terceiro, a autoridade salienta que para ser
considerada uma viabilidade precisaria fazer uma leitura conjunta do artigo
7º., parágrafos 3, 4 e 7 e artigo 6º, I da LGPD. Em resumo, é dito que os
dados públicos podem ser utilizados desde que respeitem o princípio da
finalidade, ou seja, o tratamento deve ser realizado para propósitos legítimos,
específicos, explícitos e informados ao titular, sem a possibilidade de
tratamento posterior de forma incompatível com a finalidade originária. Ainda,
os dados cujos acessos são públicos devem considerar a finalidade, boa fé e o
interesse público que justificaram a disponibilização.
O tratamento posterior de dados públicos para
nova finalidade está condicionado também à preservação dos direitos do titular.
E, nessa linha de raciocínio, é descartada a licitude do tratamento de dados
públicos para novas finalidades, sendo assinalado que o legítimo interesse não
é aplicável quando não se resguardam os direitos e garantias fundamentais do
titular de dados.
A impossibilidade de serem exercidos os
direitos assegurados pela legislação pertinente, em seu artigo 18º, em virtude
do desconhecimento por parte do titular acerca da existência de tratamento de
dados a seu respeito, inviabiliza o exercício dos direitos relativos e
configura afronta às garantias individuais.
Quanto à sanção decorrente da violação do
artigo 41º, falta de indicação do encarregado, a decisão administrativa aplicou
a penalidade de advertência. Entretanto, olvidou em justificar o seu
entendimento pelo desenquadramento da empresa autuada como agente de pequeno
porte, uma vez que, tratando-se de microempresa e com limite de faturamento
anual, a regra geral atrairia a flexibilização da observância de atribuição da
figura do encarregado.
Incontroverso que existem condições que
excluem o enquadramento na regra geral, tais como o envolvimento com elevado volume
de dados pessoais e categoria de dados sensíveis, situação esta que se imagina
ser o caso em tela, mas por razões técnicas os parâmetros para o enquadramento
como agente de grande porte deveriam estar fundamentados, sob risco de possível
arguição de nulidade relativa ao ponto específico.
E, por fim, a penalidade referente ao não
atendimento às requisições da ANPD resultou na violação do artigo 5º do
Regulamento de Fiscalização, consubstanciando-se na infringência ao dever de
colaboração do agente de tratamento pelo não atendimento aos deveres aos quais
se submetem no âmbito do processo fiscalizatório.
Ao tratar sobre a dosimetria e aplicação das
sanções administrativas, a teor do artigo 11º do Regulamento, a referida
infração foi classificada como grave, atraindo a aplicação das alíquotas
correspondentes sobre o faturamento da empresa previstos no Apêndice I do
Regulamento de Dosimetria e Aplicação de Sanções Administrativas.
Denota-se, pois, que a conduta colaborativa
do agente de tratamento é ativo de grande valor e, de fato, podem representar
situações atenuantes e que estão previstas no artigo 13º do Regulamento, desde
que, demonstradas até a decisão de primeira instância. Portanto, a obstrução à
atividade fiscalizatória, além de tipificar infração de natureza grave,
impossibilita a aplicação de circunstâncias atenuantes no cálculo das multas.
Assim, a partir dos subsídios trazidos nesta
primeira decisão no âmbito do processo fiscalizatório e sancionador da ANPD é
possível concluirmos que, independentemente do tamanho, a empresa é passível de
investigação e aplicação de penalidades por parte da Autoridade, sendo de
extrema relevância a demonstração do interesse do agente de tratamento em
auxiliar o órgão regulador. Afinal, as boas práticas não se limitam às
atividades de tratamento propriamente ditas, mas também se estendem ao alcance
das informações necessárias durante a instauração do processo fiscalizatório.
Autores: Martha Leal, Advogada especialista em
Proteção de Dados, mestre em Direito e Negócios Internacionais pela Universidad
Internacional Iberoamericana Europea del Atlántico e pela Universidad Unini
México e presidente da Comissão de Comunicação Institucional do Instituto
Nacional de Proteção de Dados (INPD)
Rafael Almeida Oliveira Reis, CIPP/E, Mestre em
Direito pela PUC/PR, Presidente do Instituto Nacional de Proteção de Dados
(INPD), Coordenador da Pós-graduação em Dados, Inteligência Artificial e Alta
Performance Jurídica da Pós PUCPR Digital, Head da área de Tecnologia e
Inovação Digital da Becker Direito Empresarial