Com o avanço da tecnologia e
profissionalização de atividades que se revestiam de caráter secundário, até
final do século passado surgiram no Brasil empresas que, a despeito da
ausência de lei que lhes conceda o direito ao exercício da leiloaria,
especializaram-se na prática de atos preparatórios e ulteriores àqueles
privativos da função de leiloeiro, assim categorizado pelo Decreto Lei nº
21.981, de 19 de outubro de 1932, recepcionado pela Constituição Federal, de 5
de outubro de 1988, vigente no ordenamento jurídico brasileiro, com plena
eficácia reconhecida inclusive pelo Supremo Tribunal Federal.
Nesse sentido, parece primordial bem
estremar quem pode ser leiloeiro no Brasil e quais os atos são privativos do
leiloeiro, conforme lei, e expressa proibição de repassá-los a terceiros, a não
ser para seu preposto, assim também admitido na forma legal, e credenciado na
Junta Comercial do Estado da federação em que mantiver a inscrição.
Alçados no ordenamento jurídico brasileiro,
como particulares em colaboração com o Poder Público, os leiloeiros são, na
concepção da doutrina pátria majoritária, agentes públicos incumbidos do exercício
de função estatal delegada em razão dos deveres fiduciários, lealdade,
diligência e cuidado.
Por disposição do Decreto-Lei nº 21.981, de
19 de outubro de 1932, recepcionado como lei ordinária pela Constituição
Federal de 5 de outubro de 1988, a profissão de leiloeiro é "exercida mediante matrícula
concedida pelas Juntas Comerciais, Órgãos de Registro Público Mercantil e
Atividades Afins, do Distrito Federal, dos Estados e Território do Acre, de
acordo com as disposições deste regulamento", como consta do
artigo 1º.
Ainda de acordo com a lei, artigo 2º, para
ser leiloeiro, é necessário provar: "a)
ser cidadão brasileiro e estar no gozo dos direitos civis e políticos;
b) ser
maior de vinte e cinco anos; c) ser domiciliado no lugar em que pretenda
exercer a profissão, há mais de cinco anos; d) ter idoneidade, comprovada com
apresentação de caderneta de identidade e de certidões negativas dos
distribuidores, no Distrito Federal, da Justiça Federal e das Varas Criminais
da Justiça local, ou de folhas corridas, passadas pelos cartórios dessas mesmas
Justiças, e, nos Estados e no Território do Acre, pelos Cartórios da Justiça
Federal e Local do distrito em que o candidato tiver o seu domicílio".
Para postular matrícula de leiloeiro e
exercer suas funções, o interessado deve apresentar certidão negativa de ações
ou execuções movidas contra ele no foro civil federal e local, correspondente
ao seu domicílio, no período dos últimos cinco anos. A entrega das certidões
exigidas comprova a idoneidade objetiva, independente da análise subjetiva da
situação retratada no documento, até porque o Órgão de Registro Público
Mercantil e Atividades Afins, conhecido como Junta Comercial, executa funções
de registro atendo-se às formalidades dos respectivos títulos, abstendo-se de perscrutar o mérito dos atos ou negócios jurídicos, resguardada a análise
da qualificação registrária da legitimação do título apresentado, para
cumprimento da segurança jurídica e publicização, como supedâneo dos princípios
da legalidade, especialidade, continuidade e anterioridade dos
registros.
Antes de entrar em exercício, ou seja,
antes de praticar os atos que lhes são conferidos pela lei, o leiloeiro tem o
dever de apresentar caução, na forma da lei, com quantum fixado pela
Junta Comercial, em dinheiro ou seguro-garantia, sem o que está impedido de
atuar.
Uma vez matriculado, com a atribuição do
número de registro que o fará conhecido, e nomeado, "o leiloeiro exercerá
pessoalmente suas funções, não podendo delegá-las, senão por moléstia ou impedimento
ocasional a seu preposto", como estabelece o artigo 11, da Lei
mencionada.
Com quase um século de existência, as
disposições do Decreto Lei nº 21.981, de 19 de outubro de 1932, que adquiriram
força de lei ordinária, são claras e suscitam nenhuma dúvida a respeito de quem
e quais os requisitos a serem observados para ser nomeado leiloeiro perante os
Órgãos de Registro Público Mercantil e Atividades Afins.
Esses órgãos são responsáveis pela
autenticação dos livros escriturados e arquivamento de documentos de interesse
dos leiloeiros, comprovando o bom desempenho de suas funções, e servindo ainda
como fundamento de segurança jurídica a que se refere a Lei nº 8.934, de 18 de
novembro de 1994, e que se conjuga com o Decreto Lei recepcionado pela atual
Constituição e todas as demais que se lhe seguiram.
Ainda, por disposição expressa do
Decreto-lei nº 21.981, de 19 de novembro de 1932, repita-se, o exercício das
funções de leiloeiro é pessoal, não delegável a terceiros, exceto, como já
consignado inicialmente, ao seu preposto, em caso de moléstia ou impedimento
ocasional.
Significa dizer que o leiloeiro deve ser
contratado diretamente pelo comitente, a pessoa que deseja vender seus bens, ou
pelo seu representante constituído na forma da lei civil.
Para o exercício do múnus público, em que
se constitui a profissão de leiloeiro, e seu consequente controle finalístico,
a norma de regência estabelece a forma de escrituração mediante livros
obrigatórios (Diário de entrada, Diário de saída, Contas corrente, Protocolo,
Diário de leilões, Livro talão - artigo 31), assim como o dever de arquivar
as "contas de
venda", e "conferir
com os livros e assentamentos do leiloeiro, sob pena de incorrerem nas sanções
deste regulamento", como consta do artigo 27, § 2º.
Com a evolução e mudanças de comportamento
dos mercados e do mundo digital, a atividade de leiloeiro passou por adaptações
e vem conformando-se à atividade empresarial mais dinâmica e lucrativa dos
tempos modernos, podendo inclusive o leiloeiro se constituir Empresário
Individual, pessoa jurídica com objeto de leiloaria, por permissivo de
Instrução Normativa do Departamento de Registro Empresarial e Integração.
Neste caso, pode o próprio leiloeiro, sem
se valer dos préstimos de empresa organizadora de leilões, praticar os atos
pré, pós e aqueles propriamente personalíssimos da profissão.
Reconheceu-se que a atividade de leiloeiro
não se restringe ao ato do pregão, propriamente dito e, não raro, a relação
entre o comitente ou seu representante, aquele que contrata o leiloeiro,
dependem também de uma série de atividades paralelas e acessórias como
armazenamento de bens, transporte e logística, contratação de seguros,
divulgação e outras medidas de organização que enfim envolvem o ato de leilão.
Atento a essas mudanças, o Departamento de
Registro Empresarial e Integração (Drei), órgão que compõe o Sistema Nacional
de Registro Empresarial e edita Instruções Normativas, para explicitar as leis
de registro público mercantil, estabeleceu na In Drei 72/2019, artigo
55, que:
"As atividades
meio e ou acessórias de leiloeiro, tais como apoio, guarda, logística,
divulgação e organização da leiloaria poderão ser exercidas por empresas
organizadoras de leilão, inclusive por meio de plataforma digital ou
eletrônica, o que não afasta a responsabilidade pessoal e direta do leiloeiro
no exercício de suas funções em pregões e hastas públicas."
A normativa assenta determinação de que
empresas organizadoras de leilões podem atuar livremente no mercado de
"organização de leilão", para transporte, logística, contratação de
seguros, etc. e, até mesmo contratar leiloeiros para cada ato de leilão a ser
consumado, seja como comitente ou representante dele.
Sem embargo, as organizadoras de leilões,
reitere-se, autorizadas a agir por si ou por mandato de terceiros, sempre na
posição de comitentes, pode contratar leiloeiros como aliás já vinha decidindo
o plenário da Junta Comercial do Estado de São Paulo, desde antes da normativa
do Órgão de Orientação Técnica - Drei (Departamento de Registro
Empresarial e Integração, que se substituiu ao DNRC - Departamento
Nacional de Registro de Comércio), mas não podem se apresentar como empresas
leiloeiras ou ostentar qualidade que traga dúvida em relação aos usuários dos
serviços de leilão, pena de usurpar da função pública, que não lhes é delegada
e é reserva privativamente à pessoa física do leiloeiro.
Apesar dos auspícios de um vultoso e
altruísta Associativismo negocial com o leiloeiro, agente em colaboração com o
Poder Público, o que não se admite, volto a ponderar, até por força de lei, é
que as empresas "Organizadoras de Leilões" não podem se apresentar
como empresas realizadoras de leilões, ou mesmo leiloeiras.
Exige-se, assim, atenção por aqueles que se
utilizam desse tipo de atividade empresarial, ou mesmo de quem exerce esse tipo
de negócio, porque não há qualquer previsão no ordenamento jurídico que permita
a esses tipos jurídicos que se substituam ao leiloeiro oficial, agente delegado
do exercício personalíssimo da função, contratando diretamente os comitentes
para a venda de bens. Podem, quando muito, e na forma da lei civil, representar
os comitentes ou mesmo ser um deles, porque podem vender bens próprios,
mediante ajuste com o leiloeiro oficial, com nome constante em lista publicada
pelo Órgão de Registro Público e Atividades Afins em seu site, que inclusive
expõe os dados funcionais do leiloeiro, possibilitando saber quem efetivamente
pode e não está impedido de exercer as funções.
Mas o que importa realçar e esclarecer
amiúde é que a lei não prevê a nomeação e atuação de pessoa jurídica como
leiloeira oficial, recaindo tal nomeação apenas em pessoa física natural que
atenda requisitos legais mencionados inicialmente para a função personalíssima.
Superada a questão relativa ao exercício da
função de leiloeiro, outro ponto que também deve ser reafirmado e esclarecido
com vigor, inclusive para instituições públicas, que se utilizam do serviço de
leiloeiro, é que somente este, o leiloeiro, nomeado segundo disposições do
Decreto Lei nº 21.981, de 19 de outubro de 1932, pode pessoalmente e
privativamente acordar com o comitente a comissão que será percebida pela
execução do ato propriamente dito.
Em momento algum, salvo exceções contidas
dispositivos da própria lei, admite-se que o leiloeiro deixe de se submeter a
dispositivo expresso no artigo 24, da Lei nº 21981/32 (com redação dada pelo
Decreto nº 22.427, de 1933), para o qual
"A taxa da comissão dos
leiloeiros será regulada por convenção escrita que, sobre todos ou alguns dos
efeitos a vender, eles estabelecerem com os comitentes. Em falta de estipulação
prévia, regulará a taxa de 5%, sobre moveis, mercadorias, joias e outros
efeitos e a de 3 %, sobre bens imóveis de qualquer natureza."
É, antes de tudo, um stantard de
natureza ontológica, que, em seu cunho regulatório, torna mais autero o âmbito
da lei ao arbitrar percentuais e delimitar a atuação dos sujeitos envolvidos na
atividade.
Ou seja, sem embaraço de poder o leiloeiro
firmar acordo por escrito, sobre a comissão a ser recebida, podendo até estabelecer
uma quantia fixa, não pode repassar, ou trespassar, a seu talante e vontade, ou
mesmo subdelegar essa função à empresa organizadora de leilões, recebendo em
conta empresarial a quantia pactuada, porque contratada especificamente para
sua organização, mediante adoção de providências periféricas.
Vale ainda remarcar e repisar que, mesmo
ostentando a qualidade de procuradora do comitente, não podem essas empresas
Organizadoras de Leilão negociar a comissão do leiloeiro, por si, para depois
repassá-la ao profissional. Pior e mais grave ainda, são as empresas que
contratam leiloeiros, para conduzir leilões mediante pagamento de quantia fixa
mensal, o que pode, em tese, até configurar infração legal.
A delegação legal consumada na pessoa do
leiloeiro que cumpre requisitos legais para nomeação não tem previsão de
subdelegação, nem mesmo de trespasse de funções a terceiros, o que pode
configurar ilegalidade eloquente.
E não pode assim agir as empresas
organizadoras de leilão, simplesmente, porque não receberam delegação estatal
para fazerem-se substituir pelo leiloeiro, que tem função privativa e
indelegável, estando impedidas de receber subdelegação para tal. Uníssono
na doutrina e jurisprudência administrativista a necessidade de lei específica
para se franquear a subdelegação de qualquer atividade estatal delegada, o caso
não comporta essa vertente.
É bom lembrar ainda que, sob fundamentos e
princípios constitucionais, assegura-se "a
todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de
autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei".
No afã de manter-se no mercado, ou mesmo
ampliá-los, algumas empresas Organizadoras de Leilão suscitam ofensa à livre
iniciativa, sob o argumento de que os leiloeiros estariam dominando esse
mercado e impedindo a livre concorrência, inclusive obstando a entrada empresas
transnacionais, que se dedicam a atividade de leiloaria em países alienígenas.
Mas o caso, antes de se resolver pela pretensa preservação da concorrência, tem
sustentação em lei regulamentadora da profissão de leiloeiro, de competência
exclusiva da União, o que requer respeito das empresas que atuam no mercado,
sejam elas nacionais ou transnacionais. Feita a opção legislativa, que
perdura por quase século, passando inclusive pela edição de outros diplomas
legislativos, e nenhuma alteração sentiu-se necessária. A função é indelegável,
privativa e personalíssima.
Além disso, lembrando que o exercício de
qualquer atividade econômica pode ser desenvolvido independentemente de
qualquer autorização de órgãos públicos, não se ignora que nos casos previstos
em lei, a livre iniciativa deve submeter-se às obrigações às quais lhes são
impostas pelos mesmos diplomas legais, sem que isso, em momento algum, seja
considerado um atentado às liberdades públicas.
Note-se, também, que o aparente silogismo
do aventado argumento de caráter parassocial decorrente dessa atuação
transnacional pretende desconsiderar a predominante natureza da atividade
regulatória e finalística da profissão de leiloeiro, exercício de soberania, a
ser respeitado interna e externamente.
Como bem se vê da Constituição, artigo
219, "o mercado
interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o
desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a
autonomia tecnológica do País, nos termos da lei federal". Todo
aquele que pretenda atuar no mercado interno, por mais riquezas que venha a
gerar, não está a salvo de submissão absoluta à Soberania Nacional e seus
regramentos.
A viabilização do desenvolvimento cultural
e sócio-econômico, e o bem-estar da população só é de fato preservado se
empresas nacionais ou transnacionais atuantes no País, tanto quanto qualquer
instituição brasileira, predisponham-se a se submeter à lei, nos seus exatos e
bem colocados termos, independentemente do lapso de tempo existente entre a sua
edição e a execução de seus mandamentos, o que deve ser considerado não no
sentido de afastar a lei, mas de ajustar suas disposições à ordem jurídica e
social em vigência.
Nesse aspecto, a In-Drei já
mencionada, utilizando-se dos claros da lei em vigor, sobretudo, com o escopo
de publicizar certos aspectos dessa prática mercantil, já regulamentou a
atividade de organização de leilões, sem infringir dispositivos expressos do
diploma legal que, a despeito de editado em 13 de outubro de 1932, ainda
expressa princípios que, por mais envoltos ao progresso e inovação, permanecem
como primados da ordem e da paz social almejada pelos brasileiros e
estrangeiros residentes no país.
No exercício do Registro Público Mercantil
e Atividades Afins, a Junta Comercial do Estado de São Paulo já enviou ofícios
tanto a Órgãos do Executivo, quanto a outros Poderes constituídos e Órgãos de
Controle como Ministério Público Federal e Estadual para providências em
relação a distorções que, a despeito da lei, infelizmente ainda ocorrem.
Espera-se assim que, com tais
esclarecimentos, sejam conhecidos os leiloeiros, respeitadas as suas
prerrogativas e preservada a lei, que a todos submete, para garantia das
liberdades públicas fundamentais.
Autores: Celso Jesus Mogioni é procurador do
Estado, chefe da Consultoria Jurídica da Junta Comercial do Estado de São
Paulo, mestre em Direitos Difusos e Coletivos e doutorando em Direito
Empresarial.
Antonio Jorge Angelino Halfeld Rezende Santos é advogado e assessor da
presidência da Junta Comercial do Estado de São Paulo.
Fonte:
Revista Consultor Jurídico