O STJ estabeleceu
novos contornos para o delito de apropriação indébita de ICMS com a Súmula nº
568, que redefiniu jurisprudência, originando um "novo tipo penal",
após o julgamento do HC nº 399.109 sob a tese do Ministro Rogério Schietti
Cruz.
O STJ, editou 5 novas súmulas em matéria
criminal, dentre elas, a nº 568, que trouxe novos contornos, relevantes, para o
delito de apropriação indébita de ICMS, ou seja, aquele esposado no art.2º, II
da lei 8.137/90.
De início, oportuno que façamos um breve
histórico da construção jurisprudencial do STJ em relação ao delito de
Apropriação Indébita do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de
Serviços - ICMS.
A construção do que podemos chamar do
"novo tipo penal" de Apropriação indébita de ICMS teve seu momento
inicial quando do julgamento dos autos do HC nº 399.109, que teve como tese
vencedora aquela levantada pelo Ministro Rogério Schietti Cruz.
Naquela ocasião, o debate girava em torno
do alcance da norma esposada no art. 2º, II, da lei 8.137/90, que prevê como
crime contra a ordem tributária a conduta de "deixar de recolher, no prazo
legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na
qualidade de sujeito passivo de obrigação tributária que deveria recolher aos
cofres públicos.".
Portanto, o que se propôs ao STJ, de forma
objetiva, é que fosse esclarecido se o simples inadimplemento de tributo
próprio - como, por exemplo, ICMS-próprio, ISS, PIS, COFINS - estaria abarcado
pela conduta descrita acima, ou seja, "deixar de recolher tributo,
descontado ou cobrado...".
Sendo assim, se debruçando sobre a
temática, o Ministro Rogério Schietti Cruz levantou a tese - que,
posteriormente, se tornou vencedora - de que o destaque de ICMS na Nota Fiscal
sem o devido recolhimento do imposto apurado e devido configura hipótese que se
amolda ao tipo previsto no art.2º, II da lei 8.137/90.
Segundo o Ministro, isso seria possível em
razão de que o ICMS-próprio devido na operação teve seu ônus financeiro
repassado ao consumidor final durante a operação, não se configurando
inadimplência, mas, sim, apropriação indébita.
Ressaltou, por fim, que a distinção entre o
inadimplemento de tributo - que é um fato atípico - e a apropriação indébita
tributária, reside justamente no dolo do contribuinte de se apropriar da
parcela embutida no preço produto vendido, relativa ao ICMS devido ao Estado.
Fixada a tese no STJ, o debate foi levado,
naturalmente, via Recurso, ao STF que, sob a Relatoria do Ministro Luís Roberto
Barroso, entendeu, nos autos do RHC nº 163.334, pela manutenção da tese fixada
pelo STJ, porém, estabelecendo que "o contribuinte que, de forma contumaz
e com dolo de apropriação, deixa de recolher ICMS cobrado do adquirente da
mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art.2º, inciso II da lei
8.137/90."
Portanto, apesar da manutenção da tese
inicial, o STF passou a fixar dois critérios objetivos para imputação do delito
em comento, quais sejam: Contumácia e a presença do Dolo de apropriação.
Acontece que, mesmo tendo estabelecidos
esses parâmetros para imputação objetiva do tipo penal em comento, o fato é que
não houve, inicialmente, uma definição sobre o que configuraria
"contumácia" ou até mesmo de qual espécie de dolo a Corte Suprema
estaria se referindo no requisito "dolo de apropriação".
Nesse ponto, a respostas sobre os
questionamentos esposados acima, via jurisprudência, apenas vieram em 2020
quando o Superior Tribunal de Justiça, utilizando o entendimento inicial
acrescido das orientações fixadas pelo STF, absolveu um réu condenado em
primeira instância, pelo tipo penal em apreço, nos autos do Resp. nº 1.852.129/SC.
No caso citado, a 6ª turma do STJ absolveu
o réu por entender que não estaria configurada a contumácia delitiva e nem
mesmo o dolo de apropriação na omissão praticada pelo contribuinte, já que a
conduta perdurou por 4 (quatro) meses, configurando mero "evento isolado
na
gestão da pessoa jurídica".
A decisão foi reiterada posteriormente,
porém, com novos contornos importantes.
Nesse segundo momento, a mesma 6ª turma
entendeu pelo trancamento de uma ação penal tendo em vista que a contumácia
delitiva não se encontrava presente já que o não recolhimento ocorreu tão
somente uma vez. No entanto, o que chamou a atenção foi o segundo argumento,
relativo à ausência do dolo de se apropriar, que, segundo a Corte, não estaria
configurado, uma vez que o contribuinte requereu parcelamento e, ainda que não
tenha adimplido, o fato é suficiente para afastar a intenção de apropriação.
Analisando os autos, percebe-se uma
modificação do próprio entendimento do relator que, no ano anterior, nos mesmos
autos, negou provimento ao RHC sob o argumento de que a "consciência de
não recolher" estaria comprovada e isso, por si só, seria o suficiente
para manutenção da ação penal.
O Ministro explicou que a mudança de
entendimento se deu em razão de que, ao analisar um caso de não recolhimento de
ICMS declarado, é necessário perquirir se a omissão tinha o intuito de obtenção
de benefício pessoal, como "possibilidade de reinvestimento com maior
retorno, obtenção de maiores lucros etc.", fator suficiente para distinguir
o não recolhimento do tributo por qualquer que seja a circunstância que o
impeça de exercer sua vontade de pagar e aquele não recolhimento com intuito
voltado aos interesses pessoais do contribuinte.
Esse posicionamento se confirma outra vez
nos autos do REsp nº 854.893, ressaltando que o dolo exigido para o tipo penal
é aquele que está presente numa conduta que visa a utilização de procedimentos
que violem, de forma objetiva, a lei ou o regulamento fiscal para benefício
próprio ou de terceiros.
Consolidado o entendimento sobre os
contornos da figura típica da apropriação indébita de ICMS-próprio - no qual o
contribuinte é o sujeito passivo natural da obrigação tributária e, portanto,
responsável direto pelo recolhimento - a pauta sobre o alcance desse delito retorna
à Corte Superior, porém, desta vez, para entender se a conduta poderia abarcar
operações que envolvem ICMS em substituição tributária (ICMS-ST).
Isto é, o delito de apropriação indébita
tributária poderia se estender a operações sujeitas à substituição tributária,
ou seja, onde existe um deslocamento de responsabilidade tributária1 para um
contribuinte que não praticou o fato gerador?
Para que fique claro, nesse modelo de
recolhimento do ICMS, no que tange ao debate, seria a hipótese de o contribuinte
substituto cobrar o valor do ICMS-ST do contribuinte substituído, embutindo o
valor dentro do preço do produto vendido, sem, contudo, repassar o valor do
tributo ao fisco.
Debruçando-se sobre o tema, o STJ firmou o
entendimento de que a própria descrição típica do crime de apropriação indébita
tributária restringe a abrangência do sujeito ativo do delito, uma vez que nem
todo sujeito passivo da obrigação tributária que deixa de recolher o tributo ou
contribuição social responde pelo delito constante do art.2º, inciso II da lei
8.137/90.
No entendimento consolidado do STJ, nos
autos do RHC 114.513, por exemplo, somente aqueles sujeitos passivos da
obrigação tributária que 'descontam' ou 'cobram' o tributo ou contribuição é
que poderiam figurar como sujeito ativo do delito de apropriação indébita de
ICMS.
Em seguida, o STJ afimou que "a
interpretação consentânea com a dogmática penal do termo 'descontado' é a de
que ele se refere aos tributos diretos quando há responsabilidade tributária
por substituição, enquanto o termo 'cobrado' deve ser compreendido nas relações
tributárias havidas com tributos indiretos (incidentes sobre o consumo)".
Para além disso, a possibilidade da
apropriação indébita tributária alcançar as operações sujeitas à substituição
tributária, decorre da interpretação objetiva do art.121 do Código Tributário
Nacional - CTN.
Isto é, geralmente, o sujeito passivo da
obrigação tributária é aquele que pratica objetivamente uma conduta típica
(fato gerador), no entanto, o CTN, no mencionado art.121, dispõe que, mesmo
aquele que não pratique a conduta típica (fato gerador) pode se tornar sujeito
passivo desde que haja disposição expressa decorrente de lei.
Perceba, ainda que o substituto tributário
não seja, originalmente, o sujeito passivo da obrigação tributária, por não ter
praticado o fato gerador (conduta típica), o CTN autoriza que essa
responsabilidade atrelada ao sujeito passivo seja deslocada para um terceiro -
que não se reveste da condição de contribuinte - desde que haja expressa
previsão legal como, de fato, ocorre na substituição tributária.
Nesse caso, o contribuinte deixa de ser o
sujeito passivo da obrigação tributária principal e transfere esse ônus para o
chamado "Responsável Tributário" (Substituto), conforme consta do
Art.121, Parágrafo único, inciso II do CTN.
Justamente com base nessa lógica, o
Superior Tribunal de Justiça entendeu pela possibilidade de também haver
apropriação indébita nos casos de operações tributárias que estejam sujeitas ao
regime da substituição tributária.
Portanto, devemos fazer uma remissão ao
art.121, do CTN, para interpretar a parte que diz "na qualidade de sujeito
passivo de obrigação" constante do art.2º, inciso II da lei 8.137/90.
Com isso, consolidando o entendimento
esposado acima, o STJ, editou a súmula nº 658, no dia 13/9/23, consolidando um
entendimento que há muito já vinha sendo utilizado e firmando de vez a tese de
que "o crime de apropriação indébita tributária pode ocorrer tanto em
operações próprias, como em razão de substituição tributária.".
Com isso, entende-se que a apropriação
indébita de ICMS pode ocorrer em operações próprias ou naquelas sujeitas ao
regime da Substituição Tributária, desde que presente a contumácia e o do dolo
de apropriação. Esses requisitos são cumulativos, portanto, é ônus da acusação
provar a frequência da sonegação e o ânimo de obter vantagem indevida pela
falta de pagamento do tributo.
Sem dúvidas, o impacto do entendimento
sumulado é significativo porque, naturalmente, gera um risco para uma
quantidade maior de empresas e contribuintes, abarcando seguimentos de
atividades que antes não estavam contemplados dentro do entendimento de ambas
as Cortes Superiores.
Isso demonstra a importância das empresas
ou contribuintes, independentemente do setor da economia ou de seu modelo
tributário, não negligenciarem a escrituração e o recolhimento de seus
impostos, reforçando os processos de controle e conformidade fiscal como,
escriturando suas obrigações fiscais e contábeis de forma correta e, principalmente,
buscando recolher os impostos no devido vencimento.
1 A chamada substituição "para
frente" significa que a responsabilidade tributária é deslocada do sujeito
passivo natural, portanto, o produtor/indústria - que figura como primeiro
sujeito da cadeia de recolhimento - para que ele apure e recolha o tributo por
toda cadeia de circulação, antes mesmo da ocorrência do fato gerador da
obrigação tributária, utilizando como base de cálculo o valor final do produto
no varejo que possui referência na chamada "pesquisa de preços"
regularmente publicada pela Fazenda Estadual.
Autor:
Luiz Luna. Advogado criminalista, professor de Direito Processual Penal,
Especialista em Direito Processual Penal, Especialista em Direito Penal
Econômico e Master of Law em Direito Tributário.
Fonte:
https://www.migalhas.com.br/depeso/397451/a-edicao-da-sumula-658-do-stj-e-os-novos-contornos-do-icms