Não é novidade alguma a grande relevância
do planejamento sucessório na prevenção dos conflitos familiares ocasionados no
momento da delimitação sobre o acervo patrimonial e sobre o direito dos
herdeiros quando da morte de um ente querido.
Muito pelo contrário. Reiteradamente se
fala sobre a importância dessa organização, evitando que a família enlutada,
que já precisa se debruçar sobre os aspectos e reflexos da sucessão aberta,
ainda tenha que enfrentar embates entre si.
Nesse sentido, o planejamento sucessório
surgiu como uma ferramenta para que uma pessoa, em vida, possa alinhar e
definir todos os contornos sucessórios decorrentes de seu eventual falecimento.
Dessa forma, se valendo de todos os instrumentos juridicamente permitidos, é
feita essa prévia organização de suas vontades, bens, ativos e outros aspectos
pertinentes em sua situação específica.
A medida, além de organizar as questões
afetas ao evento morte, prevenindo os embates mencionados e registrando
expressamente a vontade do de cujus enquanto ainda em vida, pode
proporcionar a redução de diversos custos que decorrem da sucessão causa
mortis - como, por exemplo, os gastos com inventário e pagamento de alguns
tributos.
Dentro do enorme universo de possibilidades
para a formalização do planejamento sucessório, diversos são os instrumentos
que podem ser utilizados, isoladamente ou em conjunto, sendo os mais comuns o
testamento, o seguro de vida, as holdings patrimoniais e a doação -
não se limitando somente a esses, vale ressaltar.
A escolha de quantos e quais instrumentos
são pertinentes, contudo, deve ser feita conforme as necessidades e vontades
específicas da pessoa que pretenda organizar sua sucessão patrimonial, bem como
dos aspectos fáticos e jurídicos de sua situação patrimonial e familiar.
É em razão desse amplo leque de
possibilidades para a instrumentalização do procedimento que, apesar da grande
quantidade informações disponíveis sobre o tema, o assunto implica em
constantes discussões e debates no meio jurídico.
Recentemente, um dos instrumentos mais
comumente utilizado no planejamento sucessório, a doação, se tornou palco de
debates no contexto da Reforma Tributária (PEC 45/2019) - atualmente em análise
na Câmara dos Deputados após aprovação pelo Senado -, sendo merecedor de
especial atenção e, assim, tema do presente artigo.
Em linhas gerais, caracteriza-se a doação
pela transferência do patrimônio de uma pessoa para outra de forma gratuita -
mas que pode estabelecer, ou não, alguma espécie de encargo ao donatário.
Especificamente no âmbito do planejamento
sucessório, a ferramenta é utilizada como forma de antecipar a transferência
patrimonial necessariamente ocasionada pelo falecimento, tendo como
consequência o fato de que a massa patrimonial doada não será mais objeto de
inventário e, assim, não será partilhada entre os herdeiros. Justamente por
isso, o Código Civil prevê essa possibilidade como uma forma de adiantamento da
herança [1].
Acontece que, por óbvio, a questão não é
tão despretensiosa quanto parece, possuindo a doação uma série de reflexos,
dentre os quais destacamos, para fins de análise do objeto desse artigo, a
incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).
O referido imposto, que tem como uma de
suas hipóteses de incidência a doação [2], possui como base de cálculo o
valor venal dos bens ou direitos transmitidos [3] e tem suas
alíquotas fixadas por cada Estado da Federação, por meio de lei ordinária,
sendo respeitadas as alíquotas máximas fixadas pelo Senado [4] -
atualmente fixada em 8% pela Resolução n° 09/1992 do Senado.
No que se refere às alíquotas, contudo, é
onde surge a mudança proposta pela reforma tributária (PEC 45/2019), eis que
existem, atualmente, três modelos a serem escolhidos pelos entes federativos
para sua fixação: alíquotas fixas, progressivas ou mistas.
Essa discricionariedade na opção do modelo
fixação sempre foi alvo de grandes debates, notadamente porque torna alguns
Estados, a depender de sua opção, mais vantajosos para a utilização da doação,
inclusive no âmbito do planejamento sucessório, gerando desigualdade de
arrecadação do imposto entre os entes tributantes e de recolhimento de seus
valores pelo contribuinte a depender do local de incidência.
Assim, Entes Federativos com alíquotas
menores acabam se tornando muito mais atraentes aos contribuintes, enquanto
Entes Federativos com alíquotas maiores acabam arrecadando muito mais aos
cofres públicos, ocasionando verdadeira "guerra fiscal".
Diante dessa preocupação, a Reforma
Tributária propôs a adoção de um modelo único aplicado em todo o território
nacional, de modo que, se for aprovada conforme a minuta da redação final
revisada e aprovada pelo Senado, tornará a progressividade do ITCMD
obrigatória conforme o valor da doação.
A nova redação sugerida ao artigo 155 da
Constituição, que inclui em seu §1º o inciso VI e observa, em maior grau, o
princípio da capacidade contributiva, impondo maior contribuição àqueles que possuem
maiores condições financeiras para tanto. O referido dispositivo dispõe que o
ITCMD, nos casos de doação, "será progressivo em razão do valor [.] da
doação".
Dessa forma, sendo aprovada a Reforma
Tributária conforme os termos elencados, cada Estado terá que promover as
mudanças necessárias em suas legislações internas de modo que as alíquotas de
ITCMD respeitem não só o teto fixado pelo Senado Federal, mas também a
necessária progressividade.
Os impactos da alteração, contudo, serão
sentidos de forma diferente em cada um dos Estados brasileiros a depender das
alíquotas cobradas até então, eis que, conforme exposto, são maiores ou menores
em cada um deles. Ou seja, o aumento da carga fiscal não ocorrerá de forma
igual em todo o território, sendo sentido de forma mais intensa a depender da
legislação interna anterior à reforma.
É justamente nesse ponto que reside a
conexão entre todos os aspectos abordados e a necessidade de atenção ao assunto
por parte daqueles que pretendam organizar sua sucessão patrimonial, assim como
daqueles que instrumentalizam essa possibilidade por meio da prestação de
serviços de consultoria jurídica: é essencial que sejam analisadas, de forma
estratégica, as possibilidades de manejo do planejamento sucessório com a
utilização da ferramenta da doação para que, em sendo vantajoso, esse
procedimento seja formalizado antes da aprovação do texto sugerido,
especialmente em relação aos Estados em que a imposição da progressividade
implicará em aumento da carga tributária.
Evidente que nenhuma medida deve ser tomada
às pressas ou de maneira afoita, haja vista que, até a aprovação do texto,
podem ocorrer mudanças e, caso aprovada a redação, os contribuintes gozarão de
um período até sua entrada em vigor, quando ainda poderão tomar as providências
conforme as implicações do sistema atual. Além disso, após a eventual vigência
das alterações promovidas, ainda existirão diversos outros meios e instrumentos
disponíveis para manejo da organização patrimonial em vida.
Contudo, considerando a possível majoração
das alíquotas cobradas em determinados Estados com a imposição da
progressividade pretendida, certo é que vale a atenção e a reflexão sobre os
benefícios de, conforme o caso, ser priorizado neste momento o planejamento
sucessório por parte dos contribuintes.
[1] Artigo 544. A doação de
ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do
que lhes cabe por herança.
[2] Artigo 155. Compete aos Estados e
ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
I - transmissão causa mortis e doação, de
quaisquer bens ou direitos; [Constituição Federal]
***
Art. 35. O impôsto, de competência dos
Estados, sôbre a transmissão de bens imóveis e de direitos a êles relativos tem
como fato gerador:
I - a transmissão, a qualquer título, da
propriedade ou do domínio útil de bens imóveis por natureza ou por acessão
física, como definidos na lei civil;
II - a transmissão, a qualquer título, de
direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia;
III - a cessão de direitos relativos às
transmissões referidas nos incisos I e II.
Parágrafo único. Nas transmissões causa mortis,
ocorrem tantos fatos geradores distintos quantos sejam os herdeiros ou
legatários. [Código Tributário Nacional]
[3] Artigo 38. A base de cálculo do
imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos. [Código
Tributário Nacional]
[4] Artigo 155. [.].
§ 1º [.].
IV - terá suas alíquotas máximas fixadas
pelo Senado Federal; [Constituição Federal]
***
Artigo 39. A alíquota do impôsto não excederá
os limites fixados em resolução do Senado Federal, que distinguirá, para efeito
de aplicação de alíquota mais baixa, as transmissões que atendam à política
nacional de habitação. [Código Tributário Nacional]
Autora:
Julia Carneiro do Carmo é advogada no Bustamante Guaitolini Almada Advogados,
especialista em Direito de Família e das Sucessões pelo Instituto Damásio de
Direito e em Direito Privado Contemporâneo pelo G7 Jurídico, extensão em
Direito Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e associada ao
Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil).