Recentemente, o Superior Tribunal de
Justiça (STJ) proferiu decisão inédita e favorável aos contribuintes nos autos
do REsp 2.026.473/SC, permitindo o aproveitamento fiscal do ágio por
rentabilidade futura (goodwill) em operações com ágio interno e
empresas-veículo, isto é, sociedades usualmente constituídas por um curto
período para receber um aporte financeiro e adquirir um investimento, muitas
vezes sendo utilizada como sociedade intermediária da operação.
Inobstante o novo precedente, a lacuna legal referente ao uso de
empresas-veículo permanece mesmo com o advento da Lei nº 12.973/2014, que
trouxe diversas alterações relevantes na legislação tributária, inclusive no
que diz respeito aos dispositivos aplicáveis à amortização fiscal do goodwill [1],
razão pela qual as discussões sobre a matéria parecem estar longe de se
encerrar.
Isso porque as normas anteriores que
tratavam do tema não traziam qualquer impeditivo ao aproveitamento fiscal
do goodwill nesses casos e, não obstante a Lei nº 12.973/2014 tenha
vedado expressamente a dedutibilidade do ágio interno, esta permaneceu silente
quanto ao aproveitamento do ágio em operações com interposição de
empresas-veículo.
Diante dessa lacuna legal, o Fisco lavrava - e continuará lavrando - inúmeros autos
de infração sob o argumento de que as empresas-veículo são constituídas com o
único objetivo de reduzir tributos mediante o aproveitamento fiscal do ágio, ou
seja, não haveria fundamento econômico que desse respaldo à operação para
validar a amortização do goodwill.
Quando essas discussões chegavam ao Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais, as decisões proferidas pelo órgão variavam dependendo do caso
concreto, sendo mantidas as autuações nas hipóteses de o Carf entender que não
havia "propósito negocial" na operação, isto é, qualquer objetivo na
constituição da empresa-veículo além da dedutibilidade do ágio.
Nos últimos cinco anos, diversos precedentes relevantes sobre o assunto foram
publicados pelo Carf. Veja-se alguns exemplos.
Em 19/10/2023, foi proferido o Acórdão nº 1201-006.216 [2], que, por maioria
dos votos, julgou procedente o recurso voluntário do contribuinte sob o
entendimento de que a legislação então vigente permitiria a aquisição de
participações societárias por interposição de empresas-veículo, desde que
observados outros requisitos, como a confusão patrimonial, o efetivo desembolso
de valores, entre outros - o que teria ocorrido no caso analisado.
De acordo com a referida decisão, "a opção pela realização de investimentos
societários mediante a interposição de empresa veículo necessária ou útil
à estratégia de negócios do contribuinte não representa, por si só, infração à
lei, com ou sem os reflexos tributários decorrentes da amortização do ágio" [g.n.].
Os conselheiros entenderam, ainda, que "buscar o ágio não é ilícito, salvo nos
casos de demonstração de simulação ou outro tipo de patologia intencional que
justifique a desconstituição do ato em si". [3] [4].
Vale dizer que, na situação analisada,
todas as exigências legais para a amortização fiscal do ágio foram observadas
pelo contribuinte, razão pela qual a mera utilização de empresa-veículo não
teria o condão de afastar a dedutibilidade do goodwill, conforme
entendimento do Carf.
Outro exemplo de decisão do Carf sobre a matéria - porém, neste caso,
desfavorável ao contribuinte - foi a proferida no Processo nº
11065.722801/2016-67 [5].
Nesta hipótese, as reais adquirentes do investimento se situavam no exterior e
adquiriram a participação societária almejada por meio de empresa-veículo que,
de acordo com a fiscalização, não possuía quaisquer operações ou mesmo um CNPJ
preexistentes, tendo a empresa servido de intermediária tão somente para
receber o aporte de recursos advindos de investidores no exterior e adquirir uma
eletrônica no Brasil.
O Fisco entendeu se tratar de uma operação simulada em que a empresa-veículo
foi constituída com o único objetivo de aproveitar o ágio da operação, sendo
que as efetivas adquirentes eram sociedades estrangeiras. O Carf, por sua vez,
manteve a autuação do Fisco por entender que não havia propósito negocial na
operação [6].
Em que pese haver, de fato, um risco nessa espécie de reorganização societária,
parece ser mais apropriado o entendimento de que a utilização de
empresa-veículo em uma operação legítima e com fundamento econômico não pode,
por si só, ser um impedimento à amortização fiscal do ágio, seja porque não
havia - e continua não havendo - quaisquer impedimentos legais nesse sentido,
seja porque o ágio integra o custo de aquisição do investimento e o
contribuinte deve ter o direito de deduzi-lo, sob pena de violação ao princípio
da renda líquida, segundo o qual as regras de tributação do IRPJ e da CSLL
devem observar o efetivo acréscimo patrimonial dos contribuintes após as eventuais
deduções aplicáveis [7] [8].
Nesse diapasão, são acertadas as decisões no sentido de descaracterizar a
autuação do Fisco nos casos em que os requisitos para o aproveitamento fiscal
do ágio estão presentes, tais como o efetivo desembolso de valores, o
fundamento econômico e a confusão patrimonial, independentemente do emprego de
empresa-veículo.
Mesmo porque, do contrário do que costuma alegar o Fisco, existem sim razões
comerciais para sua utilização que vão muito além da mera economia tributária -
o que, como já explicado, sequer é um ato ilícito, não sendo o planejamento
tributário vedado na legislação pátria, mas, sim, as operações que acarretem
simulação, fraude ou outra espécie de prejuízo ao erário [9].
Um exemplo de uso de empresa-veículo que possui "propósito negocial" e pode ser
benéfico às partes envolvidas na operação é o caso de cisão parcial com
posterior aquisição da empresa cindida pelo investidor [10]. Veja-se.
Um investidor pretende adquirir um percentual de participação societária de uma
determinada
sociedade, mas não possui interesse em ter outros sócios em seu negócio. Os
sócios da empresa-alvo, de outro lado, têm a intenção de vender uma parte de
sua sociedade e não pretendem compartilhar seu negócio com um terceiro.
Os sócios alienantes, então, realizam uma cisão parcial de sua sociedade,
enquanto o investidor cria uma empresa-veículo para adquirir integralmente a
empresa cindida, passando a ser o único titular desta na proporção que
pretendia em relação à sociedade originária. Após a compra, o adquirente poderá
efetuar uma incorporação reversa, extinguindo a empresa-veículo e mantendo a
sociedade operacional ativa.
Reorganizações societárias como a do exemplo citado já foram analisadas pelo
Carf [11] e, da análise das decisões do órgão, é possível verificar que o risco
de manutenção da autuação não está atrelado ao uso de empresas-veículo em si,
mas, sim, da ausência de um objetivo em tal estrutura além da redução da carga
tributária, apesar de não haver qualquer impedimento legal ao contribuinte de
economizar tributos, conforme mencionado.
Como explicado, a oscilação da jurisprudência do Carf tem se repetido há tempos
e, embora não tenha havido decisões relacionadas a fatos geradores posteriores
ao advento da Lei nº 12.973/2014, considerando que esta não trouxe inovações
quanto ao uso da empresa-veículo para fins de amortização fiscal do ágio, a
tendência é a de que a jurisprudência administrativa seja mantida, isto é,
permitindo o uso de empresas-veículo quando observado algum propósito negocial
na operação.
Há, porém, um agravante ao contribuinte que poderá influenciar nas futuras
decisões do órgão sobre o tema, qual seja, a retomada do voto de qualidade
decorrente da Lei nº 14.689/2023, passando o voto de desempate ser a favor do Governo
nas votações do Carf.
No entanto, em que pese a possibilidade de uma mudança de entendimento no CARF
sobre a matéria com a volta do voto de qualidade, há uma luz no fim do túnel
que se acende na seara judicial com a recente decisão proferida pelo STJ nos
autos do REsp nº 2026473/SC, em 05/09/2023.
Isso porque o STJ validou o entendimento de
muitas decisões proferidas pelo CARF e defendido pelos contribuintes de que a
mera utilização de empresas-veículo, por si só e diante da ausência de
dispositivo legal em contrário, não significa um impedimento ao aproveitamento
fiscal do ágio.
De acordo com o Tribunal Superior, "embora seja justificável a preocupação
quanto às organizações societárias exclusivamente artificiais, não é dado
à Fazenda, alegando buscar extrair o "propósito negocial" das operações,
impedir a dedutibilidade, por si só, do ágio nas hipóteses em que o instituto é
decorrente da relação entre "partes dependentes" (ágio interno), ou quando o
negócio jurídico é materializado via "empresa-veículo"; ou seja, não é cabível
presumir, de maneira absoluta, que esses tipos de organizações são desprovidos
de fundamento material/econômico" [g.n.].
Vale destacar que é a primeira vez que um tribunal superior se posiciona sobre
o tema, sendo, portanto, um precedente inédito e bastante favorável aos
contribuintes.
Ademais, embora a decisão também trate de fatos geradores ocorridos antes da
Lei nº 12.973/2014, como explicado, a nova norma não trouxe quaisquer
impedimentos à amortização fiscal do ágio em operações com a interposição de
empresas-veículo, de maneira que a decisão poderá servir de precedente para
fatos geradores ocorridos após a publicação da referida lei.
De fato, a nova decisão do STJ brilha nos olhos dos contribuintes, mas quando
se lida com o Fisco, é preciso sempre se lembrar que nem tudo que reluz é ouro.
Por fim, independente da jurisprudência
judicial ou administrativa sobre a matéria, prevalece a lacuna legal que dá
ensejo a essa espécie de discussão e, considerando o teor da maioria das
decisões proferidas pelo Carf e, agora, pelo STJ, o contribuinte que optar por
utilizar empresas-veículos em suas estruturas societárias deve continuar
buscando fundamento econômico e razões comerciais que deem à operação algum
respaldo para aproveitar fiscalmente o goodwill sem riscos de
questionamento pelo Fisco.
[1] Vide art. 20 do Decreto-lei nº 1.598/77 e Lei nº 9.532/1997.
[2] CARF. Recurso Voluntário. Acórdão nº 1201-006.216. Processo nº
10830.722174/2013-31. Data de Sessão: 19/10/2023.
[3] No mesmo sentido: CARF. Recurso Voluntário. Acórdão nº 1302-006.875.
Processo nº 16682.720277/2019-89. Data de Sessão: 15/08/2023.
[4] Vide art. 149, VII, do Código Tributário Nacional.
[5] CARF. Recurso Voluntário. Acórdão nº 1401-003.185. Processo nº 11065.722801/2016-67.
Data de Sessão: 19/03/2019.
[6] No mesmo sentido: CARF. Recurso
Especial do Procurador. Acórdão nº 9101-003.740. Processo nº
10480.735112/2012-25. Data de Sessão: 12/09/2018.
[7] POLIZELLI, Victor Borges. Direito Tributário - Princípio da Realização no
Imposto sobre a Renda. Estudos em Homenagem a Ricardo Mariz de Oliveira.
Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). São Paulo, 2019. P. 42.
[8] ÁVILA, Humberto. "Dedutibilidade de Despesas com o Pagamento de Indenização
Decorrente de Ilícitos Praticados por Ex-Funcionários" em Tributação do
Ilícito. Cord. Pedro Augustin Adamy e Arthur Ferreira Neto. São Paulo. Editora
Malheiros. 2018.
[9] O planejamento tributário e a teoria do proposito negocial. In: SCHOUERI,
Luis Eduardo; BIANCO, João Francisco (coord.). Estudos de direito tributário em
homenagem ao Professor Gerd Willi Rothmann. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p
770.
[10] Considerando a aquisição de controle, nos moldes do CPC nº 15.
[11] CARF. Recurso Especial do Contribuinte. Acórdão nº 9101-006.381. Processo
nº 10600.720035/2013-86. Data de Sessão: 06/12/2022.
Autora: Patricia Campos Soares é sócia da
área tributária no escritório Diamantino Advogados Associados.