A prática da
"pejotização", contratação via CNPJ para evitar encargos
trabalhistas, cresceu, mas a obtenção do CNPJ nem sempre implica em uma
estrutura empresarial, levantando questões sobre a fraude na relação de
emprego.
Não é de hoje a discussão sobre a
contratação de trabalhadores por meio em pessoas jurídicas como forma de elisão
a encargos trabalhistas, previdenciários e tributários. A medida é tão
corriqueira que ganhou a alcunha de "pejotização". Não seria
CNpejotização, pelo fato de se almejar, muitas das vezes, tão somente uma
inscrição no CNPJ?
O fenômeno da "pejotização",
consistente em admitir trabalhadores portadores de inscrição no CNPJ para
contornar o contrato de emprego, ganhou corpo e evoluiu, especialmente a partir
das decisões do STF na ADPF nº 324 e no RE nº 958252 (Tema 725 da repercussão
geral).
Sem ingressar no mérito das referidas
decisões, é patente que, na maioria dos casos concretos, os agentes sociais
buscam apenas a obtenção de um número de inscrição no CNPJ e, com isso,
ingressar no mercado de trabalho. No entanto, além de aspectos evidentes sobre
eventuais fraudes à relação de emprego, um elemento central tem passado ao
largo da discussão: a obtenção de CNPJ não necessariamente está vinculada à
existência de uma pessoa jurídica.
Daí se revela como o estratagema da
chamada "pejotização" tem evoluído ao longo dos anos, com uma nova
variante, especialmente comum no âmbito dos microempreendedores individuais -
MEI, que seria a admissão dessa mão-de-obra de forma selecionada pelo simples
fato de possuírem inscrição no CNPJ.
Ou seja, ao invés de tomadores de serviço
exigirem a formalidade de constituição de uma pessoa jurídica de seus
prestadores, contentam-se com a mera obtenção de um CNPJ junto à Receita
Federal do Brasil, como se tal condição permitisse evidenciar uma real pessoa
jurídica, capaz de elidir os encargos ordinários das relações laborais. A
"CNpejotização" surge, na realidade, como gênero da
"pejotização", abrangendo tanto a criação de trabalhadores
travestidos de pessoa jurídica (sociedades ou PJs) como MEIs, que não formam
pessoa jurídica, mas pessoas físicas equiparadas às pessoas jurídicas para fins
tributários.
De efeito, a atribuição de um CNPJ não
permite presumir, de pronto, o surgimento da personalidade legal. Como regra, a
Instrução Normativa RFB 2.119/21, que disciplina o Cadastro Nacional da Pessoa
Jurídica no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, dispõe
que estão sujeitas à inscrição no CNPJ as pessoas jurídicas de direito público
ou privado e suas equiparadas pela legislação do imposto de renda (art. 3º).
O decreto 9.580/18, que dispõe sobre o
Regulamento do Imposto de Renda, estabelece que são equiparados às pessoas
jurídicas, entre outros, as empresas individuais, os empresários constituídos
nos termos dos arts. 966 e 969 do Código Civil, as pessoas físicas que, em nome
individual, explorem, habitual e profissionalmente, qualquer atividade
econômica de natureza civil ou comercial, com o fim especulativo de lucro, por
meio da venda a terceiros de bens ou serviços (art. 162).
Do mesmo modo, o art. 160 do referido
Decreto preceitua que as sociedades em conta de participação (arts. 991 a 996
do Código Civil) são equipadas às pessoas jurídicas. Tendo em mente que o art.
993 do Código Civil prevê expressamente que essa sociedade não possui
personalidade jurídica, ainda que inscrito seu ato constitutivo no registro
próprio, há mais uma hipótese de CNPJ sem pessoa jurídica. Também os condomínios
edilícios, fundos de investimentos, consórcios de empregadores rurais são
obrigados à inscrição no CNPJ (Anexo I da IN 2.119/21) e tampouco a legislação
as considera tecnicamente pessoas jurídicas.
Em sentido semelhante, as empresas simples
de inovação, criadas ao amparo do art. 65-A, da lei Complementar 123/06, podem
se constituir com pluralidade de sócios no Portal do Inova Simples e se
caracterizam como sociedades de fato, sem personalidade jurídica, nos termos
dos arts. 986 a 990 do Código Civil, mas recebem número de inscrição no CNPJ
(art. 3º, § 2º, da Resolução 55, de 23.3.20, do Comitê Gestor do Simples
Nacional - CGSIM; item 7 do Ofício Circular SEI 4767/2022/ME, de 30.11.22, do
CGSIM).
Por estranho que possa parecer, mas em
atendimento às necessidades da Justiça Eleitoral, o Anexo I da IN nº
2.119/2021, XIII, determina que os candidatos a cargo eletivo igualmente se
inscrevam no CNPJ, para fins de prestação de contas da campanha eleitoral. Nem
por isso o candidato se torna, mercê sua candidatura, uma pessoa jurídica.
Não custa lembrar que o Código Civil buscou
agrupar as pessoas jurídicas de direito privado no rol de art. 44 e ali não se
encontra relacionado o Empresário Individual - EI, nem o MEI que constitui
modalidade daquele (art. 18-A, § 1º, da LC 123/06; e art. 100, da Resolução
140/18, do Comitê Gestor do Simples Nacional). A própria sistematização do
Código Civil, dispondo sobre o Empresário Individual no Título I do Livro II e
sobre as Sociedades (com e sem personalidade jurídica) no Título II do mesmo
Livro, confirma o raciocínio.
Pelas disposições acima se percebe que o
CNPJ é atribuído também às pessoas naturais que exercem atividade econômica,
sem que se convertam em pessoas jurídicas pela simples obtenção de CNPJ. Em seu
tratamento tributário é que recebem a equiparação às pessoas jurídicas.
Sobre persistência de uma única
personalidade na figura do empresário individual e suas modalidades, aduz Fábio
Ulhoa Coelho:
Se não for informal - traço, aliás, muito
comum na hipótese -, o empresário pessoa física terá registro na Junta
Comercial e nos cadastros de contribuintes como firma individual. Note-se que
esta é apenas uma espécie de nome empresarial e não representa nenhum mecanismo
de personalização ou separação patrimonial. O empresário individual, ao
providenciar os registros obrigatórios por lei, não está constituindo um novo
sujeito de direito com autonomia jurídica, mas simplesmente regularizando a
exploração de atividade econômica." Em seguida, o mesmo autor salienta que
não se trata de sujeito de direito, mas simples categoria registraria (COELHO,
Fábio Ulhoa. Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas.
2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 284).
O STJ endossa esse entendimento, como se vê
da decisão veiculada em seu Informativo de Jurisprudência nº 374, de 2 de maio
de 2022:
O empresário individual e o
microempreendedor individual são pessoas físicas que exercem atividade
empresária em nome próprio, respondendo com seu patrimônio pessoal pelos riscos
do negócio, não sendo possível distinguir entre a personalidade da pessoa
natural e da empresa. O microempreendedor individual e o empresário individual
não se caracterizam como pessoas jurídicas de direito privado propriamente
ditas ante a falta de enquadramento no rol estabelecido no artigo 44 do Código
Civil (....). (REsp 1.899.342-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, por
unanimidade, julgado em 26/4/22, DJe 29/4/22).
Em conclusão, o que se tem observado, em
diversas situações, é a contratação de trabalhadores - incluindo
microempreendores individuais - apenas pelo fato de estes possuírem inscrição
no CNPJ, na crença equivocada de que há pessoa jurídica como ente destacado da
pessoa de seu titular.
Como exposto, a premissa é incorreta. A
obtenção de CNPJ não possui o condão de presumir estar-se diante de uma efetiva
pessoa jurídica, a qual não se confunde com seus membros, instituidores ou
administradores (art. 49-A do Código Civil). Nesse contexto a aspirada obtenção
de CNPJ para trabalhador, especialmente quando formalizado como MEI, não enseja
uma pessoa jurídica ou o fenômeno da "pejotização", mas a
"CNpejotização" desse trabalhador, em realidade ainda mais precária
que aquela.
Autor:
Ronald Amaral Sharp Junior
Mestre
em Direito da Empresa e Auditor Fiscal do Trabalho.
Fonte:
https://www.migalhas.com.br/depeso/399019/cnpejotizacao-versus-pejotizacao