A alteração proposta
não afeta diretamente o regime de bens do casamento e, consequentemente, a
meação
O anteprojeto de
reforma do Código Civil de 2002 foi apresentado ao Senado em abril de 2024.
Dentre as alterações propostas pela comissão de juristas formada com o intuito
de atualizar a legislação civil brasileira, há a exclusão do cônjuge do rol de
herdeiros necessários.
A modificação proposta já induz inúmeras discussões
sobre impactos positivos e negativos a serem ponderados, bem como preocupações
e dúvidas da população no geral. Sendo assim, para que seja possível adentrar
ao debate com propriedade, é necessário compreender o cenário atual e a
extensão dessas mudanças, sem achismos.
Atualmente, o artigo
1845 do Código Civil estabelece que são herdeiros necessários, os descendentes,
os ascendentes e os cônjuges. A reforma, por sua vez, pretende retirar os
cônjuges (e companheiros, equiparados pelo STF através do julgamento do Tema 809
de Repercussão Geral) da lista de herdeiros, caso haja descendentes e/ou
ascendentes. Assim, na ausência desses, o cônjuge segue como herdeiro.
A alteração proposta não afeta diretamente o regime de
bens do casamento e, consequentemente, a meação, apenas pode impactar a
sucessão dos bens do falecido, determinando se o cônjuge sobrevivente terá ou
não direito a uma parte mínima dos bens sem a necessidade de testamento.
Logo, o raciocínio sob a égide da nova redação do
Código seria que, em caso de:
- comunhão
parcial de bens, o
cônjuge tem direito à meação referente ao patrimônio comum do casal -
aquele construído durante a constância do matrimônio;
- comunhão
universal de bens, o
direito à metade do patrimônio do casal ainda é garantido ao cônjuge, seja
esse construído antes ou durante o casamento;
- separação
de bens, a herança só contemplará o cônjuge sobrevivente
em caso de testamento nesse sentido.
Assim, tem-se que, na prática, a relação entre a
mudança proposta e o regime de bens é simples: em caso de morte de um dos
cônjuges, o sobrevivente tem direito apenas ao que corresponde à meação, não
concorrendo com os herdeiros necessários na parte restante do patrimônio do
falecido.
Caso a proposta de reforma seja atendidanos termos
supramencionados, o que ainda será deliberado pelo Senado, a vida do brasileiro
inevitavelmente sofrerá impactos tanto no âmbito jurídico, quanto no familiar,
dentre os quais estão:
Ampliação da autonomia patrimonial, pela ausência de
obrigação de reserva mínima ao cônjuge, respeitado o regime de bens do casal;
Flexibilidade ao planejamento patrimonial, haja vista
maior liberdade para destinação do patrimônio;
Incentivo ao planejamento sucessório, seja pela vontade
de resguardar parcela específica ao cônjuge, seja pelo desejo de restringir a
herança apenas aos descendentes, ascendentes, ou terceiros;
Alteração das dinâmicas contratuais familiares, com
estruturação de pactos antenupciais que resguardem os interesses dos cônjuges
de forma a compensar a exclusão da vocação hereditária;
Possível aumento de discórdias matrimoniais, haja vista
os aspectos culturais que permeiam as discussões sobre a relação entre o
dinheiro e a vida a dois nos lares brasileiros;
Insegurança financeira para o cônjuge sobrevivente, nos
casos em que há dependência financeira do falecido.
Sendo assim, a referida alteração pode ser positiva do
ponto de vista do planejamento sucessório e da autonomia da vontade, visto que
incentiva a utilização das ferramentas de organização e destinação patrimonial
em vida para contemplar ou excluir o cônjuge da sucessão, fazendo valer os
desejos do autor da herança, sem as amarras legais vigentes.
Em contrapartida, do ponto de vista familiar e social,
vê-se que há um longo caminho a ser construído para que discussões e decisões
patrimoniais sejam mais palpáveis, leves e compreendidas, bem como para que
vulneráveis não saiam prejudicados em nome da liberdade patrimonial irrestrita.
De fato, a esfera privada de cada qual é extremamente
subjetiva e, os núcleos familiares plurais e incomparáveis. Logo, não há espaço
para julgamentos, há a necessidade de observar o destino do texto do
anteprojeto e pensar quais serão as balizas de aplicação prática em caso de
aprovação, tanto na esfera judicial, quanto na extrajudicial - mas isso é
assunto para outro momento.
O anteprojeto agora tramitará como projeto de lei e
poderá ter seu texto suprimido e/ou ampliado pelos Senadores, até que cumpra os
requisitos e ritos legislativos para seguir para Sanção Presidencial.
Enquanto isso, seja qual for a vertente do debate a ser
analisada, contribuída ou contrarrazoada, restam aqui postas impressões para
que seja possível sair do 0, começar a refletir e, quem sabe, construir uma
opinião sobre a temática, sem o automatismo moral que sustenta a sociedade
brasileira.
Autora: Fernanda Luíza Martins Alves, Graduanda em Direito pela UFMG.
Extensionista em Planejamento Sucessório pela PUC-RIO. Estagiária de
Contencioso Cível e Sucessório no Tavernard Advogados.