Quando dois amigos
começam a discutir sobre determinado assunto e perguntam a você qual deles tem
razão, você, visando não se indispor com nenhum deles, provavelmente, dirá que
prefere manter-se neutro e não influenciar o resultado da contenda.
Do mesmo modo, no
direito tributário, um imposto é considerado neutro quando não afeta a
estruturação das operações promovidas pelo contribuinte (p.ex. não comprar de
empresas do Simples Nacional), nem seu processo de produção (p.ex. utilizar
insumo com qualidade inferior, porém com menor carga tributária) ou de
comercialização (p. ex. operações de triangulação) e nem tampouco sua
localização (p.ex. benefícios fiscais concedidos por estados e municípios).
Ou seja, quando um
imposto atende ao princípio da neutralidade ele não influencia as decisões dos
contribuintes quanto aos métodos de produção ou comercialização de seus
produtos, quanto à escolha dos fornecedores, quanto ao uso da mão de obra
(própria ou terceirizada) etc.
Podemos afirmar que
o imposto verdadeiramente neutro gera receita à Fazenda Pública sem influenciar
as decisões econômicas dos contribuintes.
Maneira eficiente
Em nossa opinião, a
maneira mais eficiente de garantir a neutralidade tributária é por meio da não
cumulatividade plena e do creditamento amplo, além, é claro, do fim dos
benefícios fiscais, pressupostos esses que não são atendidos por nossa atual
legislação tributária sobre o consumo. Senão vejamos:
1) Limitação quanto
ao direito de creditamento: tanto a legislação do ICMS quanto a legislação do
IPI só permitem o creditamento referente a insumos incorporados fisicamente ao
produto. Trata-se do famigerado "crédito físico";
2) Limitação quanto
às hipóteses de utilização, transferência a terceiros ou obtenção de
ressarcimento de créditos acumulados de ICMS, fato este que acarreta custos
financeiros às empresas e, não raro, resulta em perda de competitividade do
produto nacional no exterior;
3) Limitação quanto
ao uso de créditos de ICMS relacionados com a aquisição de ativo imobilizado
(regra do 1/48) e vedação ao crédito decorrente de compra de bens de uso e
consumo;
4) Uso exacerbado do
regime de substituição tributária, que implica no não creditamento do ICMS/ST
pago pelo contribuinte substituído, acarretando-lhe aumento de custo
tributário;
5) Concessão de
benefícios fiscais pelos entes subnacionais (guerra fiscal), influenciando a
decisão do contribuinte quanto ao local de instalação de sua empresa.
Nesse diapasão, vale
lembrar que a principal característica do Imposto sobre Valor Agregado (IVA)
mundo afora é a ampla possibilidade de creditamento do imposto pago na operação
anterior, possibilitando que (i) a cadeia produtiva seja desonerada, (ii) o
imposto seja não cumulativo e (iii) o IVA seja repassado ao consumidor final.
Princípio da
neutralidade
Infelizmente, a
nosso sentir, a EC 132/2023 não respeitou adequadamente o princípio da
neutralidade tributária, expressamente previsto no § 1º do artigo 156-A da
CF/1988, pois diversos benefícios fiscais continuarão existindo (vide artigos
8º e 9º da EC nº 132/2023, §§ 2º e 3º do artigo 146 e inciso VIII do § 1º do
artigo 225 da CF/1988 e artigo 92-B do ADCT) e, considerando-se o disposto na
alínea "a" do inciso I do artigo 7º do PLP nº 68/2024, verifica-se que será
mais vantajoso para o contribuinte contratar mão de obra terceirizada do que
utilizar mão de obra própria, haja vista que esta não gerará crédito, enquanto
aquela sim.
Esta questão afeta
diretamente a estruturação das operações do contribuinte com fundamento, único
e exclusivo, no resultado tributário a ser alcançado, fato este que,
claramente, afronta o princípio da neutralidade.
Nesse sentido,
saliente-se que em alguns países que utilizam o IVA (p.ex. França), é possível
defender o creditamento de todas as despesas necessárias e essenciais à
atividade da empresa, incluindo as despesas com mão de obra própria, em
observância ao princípio da neutralidade.
Outrossim,
ressalte-se que, na prática, o creditamento constitui uma importante ferramenta
de combate à "pejotização", haja vista que, a teor do disposto no precitado PLP
nº 68/2024, somente a contratação de mão de obra terceirizada ensejará o
creditamento a título de IBS.
Se considerarmos
que, após a reforma trabalhista, restou autorizada a terceirização de mão de
obra relacionada à atividade-fim da empresa, certamente, caso o creditamento
correspondente ao IBS [1] não seja permitido,
haverá um importante aumento da "pejotização" em nosso país e, consequente,
diminuição dos empregos formais, principalmente nas empresas brasileiras não integrantes
do Simples Nacional.
Ademais, caso essa
diferenciação quanto ao direito de creditamento (contratação de mão obra
própria x contratação de mão de obra terceirizada) não seja eliminada,
certamente haverá um significativo aumento de planejamentos tributários
abusivos envolvendo a utilização de cooperativas ou de micro e pequenas
empresas, cujos encargos sociais e trabalhistas são menores, acarretando
prejuízos ao financiamento da Previdência Social e, consequentemente, obrigando
o governo a aumentar seus gastos com o pagamento de aposentadorias, pensões e
licenças securitárias.
Em suma, não há
proporcionalidade, razoabilidade ou qualquer justificativa plausível para que a
lei instituidora do IBS, orientada por novas e modernas diretrizes constitucionais,
admita o creditamento quando o resultado pretendido pelo contribuinte (p.ex.
fabricação de um produto, comercialização de uma mercadoria, prestação de um
serviço etc.) for alcançado indiretamente, por meio de mão de obra
terceirizada, e não o admita quando o mesmo resultado for alcançado
diretamente, por meio de mão de obra própria.
A par do acima
exposto, cumpre esclarecer que no modelo constitucional vigente a não
cumulatividade atinente ao ICMS, prevista no inciso I do § 2º do artigo 155 da
CF/1988, é concretizada pela utilização do método denominado "imposto contra
imposto", que consiste na apuração do imposto devido mediante o abatimento do
imposto cobrado na operação anterior.
A respeito do método
"imposto contra imposto", assim leciona André Mendes Moreira [2]:
"Em que pese o nome,
o imposto sobre valor acrescido não tributa - em regra - o valor que se agrega
ao bem ou serviço em cada etapa de circulação. Em sua técnica de apuração mais
comumente utilizada, a incidência do IVA se dá sobre o valor da venda da
mercadoria ou do serviço. Em um segundo momento é que se deduz do quantum a
ser pago (calculado, repise-se, mediante aplicação da alíquota sobre o preço
cheio) o montante de imposto que incidiu na operação anterior. É neste ponto
que atua a não-cumulatividade. Abatendo-se do IVA devido aquele recolhido na
etapa anterior consagra-se a apuração intitulada invoice credit (crédito
sobre a fatura) ou tax on tax (imposto-contra-imposto). As
nomenclaturas são autoexplicativas: na fatura (nota fiscal) o imposto que
incidiu na operação vem destacado, sendo abatido do IVA a pagar pelo
contribuinte adquirente.
(.)
No Brasil, como já referido, o método imposto-contra-imposto foi utilizado
desde os primórdios da implantação da não-cumulatividade, quando ainda vigorava
o vetusto Imposto de Consumo, no final da década de 1950. Desde então e até os
dias atuais, o referido método é o único utilizado pelos tributos
não-cumulativos brasileiros."
E ainda, em outra
obra de sua autoria [3]:
"A CR/88 (assim como
as Constituições que lhe antecederam) optou pelo método imposto contra imposto
(subtração indireta) de apuração dos tributos não-cumulativos. Assim, o cálculo
do IPI e do ICMS a pagar é feito mediante compensação do imposto incidente nas
operações anteriores, tal como ocorre com o IVA europeu.
Todavia, em relação ao PIS/Cofins não cumulativos, a Carta não definiu a
sistemática de apuração (base-contra-base, imposto-contra-imposto ou adição),
deixando-a a critério do legislador ordinário." (Grifou-se)
Nessa seara, vale
destacar que a não cumulatividade relacionada ao IBS, prevista no inciso VIII
do § 1º do artigo 156-A da CF/1988, é mais ampla que aquela relacionada ao
ICMS, prevista no inciso I do § 2º do artigo 155 da CF/1988. Confira-se:
Art. 155. Compete
aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
(.)
2º O imposto
previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
I - será
não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à
circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas
anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;
Art. 156-A. Lei
complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência
compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios.
1º O imposto
previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade e atenderá ao
seguinte:
(.)
VIII - será não
cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante
cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem
material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas
exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei
complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição; (Grifou-se)
Dessarte, e
considerando que, no tocante ao IBS, todas as operações [4],
excetuadas, exclusivamente, as consideradas de uso ou consumo pessoal,
devidamente especificadas em lei complementar, e aquelas discriminadas na
própria CF/1988, ensejarão créditos para o contribuinte, nos parece claro que
se o contribuinte agregar ao preço do bem ou do serviço o custo de sua própria
mão de obra e sobre esse valor incidir o IBS, revela-se ilógico,
desproporcional, desarrazoado e, portanto, injustificável não permitir o
creditamento do custo da mão de obra suportado diretamente pelo contribuinte e
permiti-lo quando suportado indiretamente, por meio da terceirização.
De mais a mais,
verifica-se que a CF/1988 não proíbe esse creditamento, pelo contrário, ela o
impõe, na medida em que ela estabelece, no § 1º do artigo 156-A, que o IBS será
regido pelo princípio da neutralidade, o qual, conforme esclarecido
anteriormente, visa evitar que as decisões administrativas e operacionais do
contribuinte sejam tomadas com base na incidência tributária, o que
caracterizaria uma indesejada influência do tributo na atividade empresarial,
provocando distorções concorrenciais e estimulando planejamentos tributários
abusivos, os quais, obviamente, afrontam os objetivos da reforma tributária, em
especial, quanto à simplificação da tributação e à diminuição do contencioso
tributário.
Por fim, importa
ressaltar que a não cumulatividade, como simples técnica de compensação que é,
visa assegurar que o valor do imposto recolhido na operação anterior seja
computado (creditado) pelo contribuinte no cálculo do imposto que deverá ser
pago ao término do período de apuração, sem, contudo, impedir que outros
créditos também sejam computados.
Não fosse assim, o
crédito presumido, por exemplo, deveria ser considerado inconstitucional, haja
vista que, comumente, ele é maior que o valor do imposto correspondente à
operação anterior. Ou seja, a não cumulatividade assegura que, no mínimo, o
imposto recolhido na operação anterior seja creditado, mas não proíbe que
outros créditos, relacionados com despesas suportadas pelo contribuinte no
desenvolvimento de sua atividade empresarial, tais como, por exemplo, as
despesas com mão de obra própria, também sejam passíveis de creditamento.
[1] O IBS não
incide sobre as relações de emprego (alínea "a" do inciso I do art. 7º do PLP
nº 68/2024).
[2] MOREIRA,
André Mendes. In, Não-cumulatividade tributária no Brasil e no mundo:
origens, conceito e pressupostos. In Sistema Tributário Brasileiro e a Crise
Atual - VI Congresso Nacional de Estudos Tributários. CARVALHO, Paulo de Barros
e SOUZA, Priscila de. São Paulo: Noeses / IBET, 2009, p. 47-48.
[3] MOREIRA.
André Mendes. In, A não cumulatividade dos tributos. São Paulo: Noeses,
2010, p. 124.
[4] Geraldo
Ataliba e Cleber Giardino analisaram o significado do vocábulo "operações" e
esclarecem que, embora esse vocábulo possa apresentar um sentido econômico,
físico ou jurídico, para o intérprete do Direito só interessa o sentido
jurídico, sendo este o seguinte: "Operações são atos jurídicos; atos regulados
pelo Direito como produtores de determinada eficácia jurídica." In,
ATALIBA, Geraldo; GIARDINO, Cléber. Núcleo da definição constitucional do ICM -
Operações, circulação e saída. Revista de direito tributário. São Paulo:
Revista dos Tribunais, v. 25/26, ano 7, 1983, p. 105.
Autores:
Alberto Sobrinho Neto. É especialista em Direito Financeiro e Tributário pela
Universidade Federal Fluminense.
Marcus Livio Gomes. É professor associado de Direito
Tributário da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e pesquisador
associado da Universidade de Londres.