Entre os desafios para a implementação da
reforma tributária do consumo, aprovada por meio da Emenda Constitucional nº
132, de 20 de dezembro de 2023, está a regulamentação do contencioso
administrativo e judicial tributário, que passará a julgar as novas espécies
tributárias surgidas, bem como a necessidade de que o processo tributário, de
modo geral, acompanhe os conceitos de modernização, simplificação e eficiência
propostos pela mencionada reforma.
A par da consideração que o sistema tributário brasileiro engloba todos os
tributos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, bem como
o arcabouço normativo que o regulamenta e o aparato administrativo de cobrança
e fiscalização [1], ressaltamos que a Constituição
não traz previsão expressa quanto ao contencioso administrativo, o que não
conduz, de toda forma, à vedação ou negação do instituto [2].
De todo modo, determina a EC 132/23 que, para regulamentar o novo contencioso,
necessário aprovar Lei Complementar tratando do processo tributário [3].
Nossa atenção, por ora, volta-se ao fato
que, em momento anterior à aprovação da reforma tributária do consumo, em fevereiro
de 2022, foi instituída uma comissão de juristas [4],
sob a presidência da ministra Regina Helena Costa, com a missão de elaborar
anteprojetos de proposições legislativas visando a reforma do processo
administrativo e do processo tributário brasileiro, propondo normas que
incentivem a solução consensual de conflitos em matéria tributária, a redução
do contencioso tributário, a desjudicialização, a diminuição da litigiosidade
entre fisco e contribuintes, a simplificação de processos e a composição entre
as partes [5].
Decorridos sete meses, em setembro de 2022, a comissão apresentou ao Senado 11
propostas, sendo: oito projetos de lei (PLs nº 2.481/2022; nº 2.483/2022; nº
2.484/2022; nº 2.485/2022; nº 2.486/2022; nº 2.488/2022; nº 2.489/2022; nº
2.490/2022), dois projetos de lei complementar (PLP nº 124/2022 e PLP nº
125/2022) e uma indicação (INS 56/2022) esta, sugerindo ao Poder Executivo
Federal a regulamentação da atuação do conselheiro representante do
contribuinte no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) [6]. Em síntese, essas são as matérias:
PLP 124/2022 - Dispõe sobre normas gerais de prevenção de
litígio, consensualidade e processo administrativo, em matéria tributária.
PLP 125/2022 - Estabelece normas gerais relativas a direitos, garantias e
deveres dos contribuintes.
PL 2481/2022 - Reforma da Lei 9.784/1999 (Lei do Processo Administrativo).
PL 2483/2022 - Dispõe sobre o processo administrativo tributário federal e
dá outras providências.
PL 2484/2022 - Dispõe sobre o processo
de consulta quanto à aplicação da legislação tributária e aduaneira federal.
PL 2485/2022 - Dispõe sobre a mediação tributária na União e dá outras
providências.
PL 2486/2022 - Dispõe sobre a arbitragem em matéria tributária e
aduaneira.
PL 2488/2022 - Dispõe sobre a cobrança da dívida ativa da União, dos
estados, do Distrito Federal, dos municípios e das respectivas autarquias e
fundações de direito público, e dá outras providências.
PL 2489/2022 - Dispõe sobre as custas devidas à União, na Justiça Federal
de primeiro e segundo graus, e dá outras providências.
PL 2490/2022 - Dá nova redação ao artigo 11 do Decreto-Lei 401, de 30 de
dezembro de 1968.
Processo tributário
Ao passar despercebido pela maioria dos olhares, a comissão priorizou o
termo processo tributário, no lugar do processo fiscal; mudança essa
de paradigma que carrega, em si, juízo axiológico. De acordo com a doutrina de
Alcides Jorge Costa, em momento anterior à existência do Estado de Direito,
prevalecia o Estado de Polícia onde vigia a doutrina do Fisco fundada na ideia
de que o patrimônio público pertencia ao Fisco, com personalidade própria, e
submetia-se às mesmas normas jurídicas e justiça que os particulares. Com o
estabelecimento do Estado de Direito, o Fisco deixou de ter personalidade
própria e o Estado passou a ter personalidade una, passando o patrimônio
público à tutela do direito público [7].
Seguindo essa lógica, a relação jurídico tributária passa a ser tutelada pela
supremacia do interesse público sobre o particular, de um lado, e,
inevitavelmente, de garantias constitucionais ao contribuinte, de outro. Se o
Brasil tem na arrecadação tributária a maior fonte de recursos para custeio de suas
atividades, imprescindível que sejam instituídas as devidas garantias,
materiais e processuais, a favor dos contribuintes, como forma de limitar o
poder de tributar do Estado [8].
Eis aqui a lembrança que a reforma tributária do consumo não atingirá seus
ideais caso deixe de lado as garantias processuais de todos os contribuintes.
Como bem se sabe, a Emenda Constitucional
nº 132/2023 instituiu no ordenamento tributário duas espécies tributárias
novas, a Contribuição Sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Sobre Bens e
Serviços (IBS), o primeiro de competência da União e o segundo de competência
dos estados, dos municípios e do Distrito Federal. Determinou, ainda, que os
novos tributos deverão observar as mesmas regras em relação a fatos
geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência e sujeitos passivos;
imunidades; regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação;
regras de não cumulatividade e de creditamento. Por essa razão, foram
apelidados de irmãos gêmeos.
A necessidade de uma emenda constitucional para instituir a reforma tributária
do consumo dá-se em razão da extinção de antigos tributos, substituídos por
outros novos, alterando a competência constitucional para instituição dos novos
tributos. A competência tributária refere-se à esfera de atuação própria de
cada pessoa jurídica de Direito Público (União, estados, Distrito Federal e
municípios), e pode ser exclusiva, se apenas um ente atua, ou concorrente, se
há mais de um ente atuando em conjunto. Assim, de acordo com a competência
definida pela Constituição, cada ente será competente para instituir os tributos,
por meio de lei própria [9].
Dentro do racional que tributos federais são julgados por órgãos judiciais e
administrativos federais, e o mesmo ocorre com tributos estaduais e municipais,
alguns imbróglios ganham destaque, como peças de um quebra-cabeça.
O que se tem, até o momento, é que as discussões legislativas referentes à
regulamentação da reforma tributária do consumo e aquelas relacionadas à
modernização do processo tributário tramitam de forma paralela e independentes
no Congresso. Contudo, é imprescindível que dialoguem entre si, de forma
amistosa e cooperativa, para que os frutos de ambas sejam devidamente colhidos.
Vale dizer, há um caminho de mão dupla a ser percorrido por ambas reformas,
material e processual, para que possam resultar em possível avanço e
modernização do sistema tributário brasileiro, tema este que será o foco da nossa
atenção pelos próximos passos esperados.
[1] CARDOSO, Alessandro Mendes. Processo Legislativo Tributário
Federal e bloqueios à concretização do projeto constitucional: Análise em
face dos pressupostos de racionalidade legislativa de Manuel Atienza. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2023, p. 277.
[2] FALLET,
Allan. A Natureza Jurídica do Processo Administrativo Fiscal. São Paulo:
Noeses, 2019, p. 33.
[3] Art. 156-A.
Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (.)
5º Lei complementar disporá sobre: (.)
VII - o processo administrativo fiscal do
imposto;
[4] Ato
Conjunto dos Presidentes do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal nº 1
[5] Comissão
que moderniza processos tributário e administrativo finaliza trabalhos nesta
terça - Senado Notícias
[6] Sugestões
de comissão sobre processos tributário e administrativo viram projetos - Senado
Notícias
[7] COSTA,
Alcides Jorge. Algumas notas sobre a relação jurídica tributária. In: SCHOUERI,
Luís Eduardo; ZILVETI, Fernando Aurélio. (coord.) Direito tributário: estudos
em homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, p. 21-35.
[8] SERGIO,
André Rocha. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. Belo Horizonte:
Letramento, 2020, p. 19.
[9] SCHOUERI,
Luís Eduardo. Direito Tributário. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p.
251.
Ana Claudia Borges de Oliveira
Autora: Ana Claudia Borges de Oliveira, é
conselheira da 2ª Seção do Carf, presidente da Aconcarf, especialização em
Direito Tributário e Finanças Públicas (IDP), mestrado em Direito Tributário
(IBDT), pesquisadora dos grupos Mulheres, Tributação e Políticas Públicas
(USP), Tributação sobre Operações Envolvendo Criptoativos (USP), Observatório
da Macrolitigância Fiscal (IDP) e Tributação do Agronegócio no Brasil e no
Direito Comparado (IBDT). Professora convidada de Direito Tributário na UnB,
PUC-SP e IBDT.