Com a reforma tributária em pleno andamento, tendo como pilares constitucionais
os princípios da simplicidade e transparência, o governo federal acaba por
tomar a direção oposta e instituir mais uma obrigação fiscal, a Declaração de
Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária (Dirbi),
cujo não adimplemento resultará em gravosas penalidades.
A Dirbi foi instituída por meio da Medida Provisória (MP) 1.227/2024 (também
conhecida como a "MP do Fim do Mundo") e tem por finalidade impor às empresas a
obrigação de prestar informação sobre os valores do crédito tributário
referente a impostos e contribuições que deixaram de ser recolhidos em razão da
concessão de determinados incentivos, renúncias, benefícios e imunidades de
natureza tributária usufruídos pelas pessoas jurídicas.
Para regulamentar a obrigação, em 18/6/2024 foi publicada a Instrução Normativa
RFB 2.198/2024, que estabelece o rol de 16 benefícios fiscais que devem ser
informados via Dirbi, dentre os quais o Programa Emergencial de Retomada do
Setor de Eventos (Perse), o Regime Especial de Incentivo para o Desenvolvimento
da Infraestrutura (Reidi), a desoneração da folha de salários e diversos
créditos presumidos de PIS e Cofins, tais como o dos setores farmacêutico e
agropecuário.
Visando assegurar a efetividade da Dirbi, referida legislação também impôs
penalidades bastante gravosas: a não apresentação da Dirbi sujeita o
contribuinte a multas de 0,5% a 1,5% da sua receita bruta, limitada a 30% do
valor dos benefícios fiscais; além disso, aplica-se multa de 3% sobre o valor
omitido, inexato ou incorretamente prestado na Dirbi.
Inicialmente, consigna-se que ora não se busca discutir a (im)possibilidade de
instituição de declarações fiscais, até porque o Código Tributário Nacional
prevê a possibilidade de imposição de obrigações acessórias no interesse da
arrecadação ou da fiscalização dos tributos. O que se pondera é a pertinência e
necessidade da criação da Dirbi e as correlatas multas criadas pela MP
1.227/2024.
Da análise da lista de benefícios sujeitos à Dirbi, nota-se que o foco é
identificar as desonerações tributárias pertinentes ao Imposto de Renda,
Contribuição sobre o Lucro, desoneração da folha de salários e, principalmente,
PIS/Cofins.
Disso surge o primeiro ponto de questionamento: qual é a necessidade da Dirbi?
A esse respeito, a exposição de motivos da MP 1.227/2024 invoca a necessidade
de aumentar a transparência ativa sobre as renúncias fiscais, a fim de garantir
o acesso a informações de interesse coletivo ou geral, facilitando o controle
social, bem como contribuir para a redução gradual de benefícios fiscais e
melhorar a gestão e a governança dos benefícios tributários.
A despeito da louvável intenção com a busca de informações por meio da Dirbi, o
questionamento surge porque com a edição do Decreto 6.022/2007 instituiu-se o
Sistema Público de Escrituração Digital (Sped), que consiste num instrumento
que unifica as atividades de recepção, validação, armazenamento e autenticação
de livros e documentos que integram a escrituração contábil e fiscal, mediante
fluxo único, computadorizado, de informações.
Desde então, o Sped evolui para um dos mais moderno e respeitado sistemas de
escrituração fiscal, abrangendo desde a emissão eletrônica em tempo real de
notas fiscais, até os mínimos detalhes em escrituração fiscal e contábil. Nesse
contexto, em relação aos tributos desonerados objeto da Dirbi, o Sped já prevê
detalhadas informações na Escrituração Contábil Digital (ECD), Escrituração
Contábil Fiscal (ECF), Escrituração Fiscal Digital das Contribuições (EFD-PIS/Cofins),
Escrituração Fiscal Digital de Retenções e Outras Informações Fiscais
(EFD-Reinf) e o Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais,
Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial).
Todas estas obrigações fiscais no âmbito do Sped já oferecem ao governo federal
detalhadas informações que permitem identificar com precisão a apuração dos
tributos e respectivos valores desonerados. Ainda, os contribuintes já devem se
empenhar para o seu cumprimento, visto que a legislação estabelece penalidade
pela sua não apresentação, bem como por prestação de informações incorretas ou
omissas.
Portanto, já se nota que a Dirbi acaba por se mostrar como mais uma obrigação
acessória para prestar informações já prestadas e que podem ser facilmente
identificadas pela administração tributária em auditoria do Sped. Aliás,
auditoria esta que comumente é realizada de forma automática e informatizada,
sem a necessidade de processamento manual de dados.
Assim, mostra-se bastante questionável a necessidade de criação da Dirbi,
quando considerado que as informações já são de conhecimento do Governo
Federal, bastando que parametrize seus sistemas para buscá-las.
Outro questionamento relevante é: qual é a relevância e a urgência para a
instituição da Dirbi por meio de medida provisória e com efeitos imediatos (e,
até mesmo, retroativos)?
A Constituição estabelece que, em caso de
relevância e urgência, o presidente da República poderá editar medida
provisória, com força de lei. A esse respeito, já vimos que a relevância da instituição
da Dirbi é bastante questionável, de forma que a medida feita, por si só,
revela-se duvidosa. Outrossim, a urgência da instituição da Dirbi com efeitos
imediatos também é bastante duvidosa.
Note que a MP 1.227/2024 foi publicada em 04/06/2024 e a Instrução Normativa
reguladora em 18/06. Ocorre que, e bastante preocupante, tal norma estabelece
que a Dirbi deverá ser apresentada retroativamente em relação aos períodos de
apuração de janeiro a maio de 2024, até 20 de julho de 2024.
Como resultado, o contribuinte que iniciou junho de 2024 sem nunca sonhar com
uma obrigação como a Dirbi, agora deverá se adaptar, apurar e prestar as
informações sobre cinco meses de atividades em apenas um mês, além de já se
preparar para prestar as informações de junho de 2024. E, bastante preocupante,
o que é feito às pressas inevitavelmente pode resultar em erros e, como visto,
multas bastante pesadas.
Além do absurdo da retroatividade em si, é
que, em situações normais, a Dirbi deve ser apresentada até o vigésimo dia do
segundo mês subsequente ao do período de apuração, ou seja, após dois meses do
respectivo mês de apuração. Contudo, a primeira Dirbi a ser apresentada,
abrangendo cinco meses de apuração, deverá ser em apenas um mês.
Dessa forma, com base numa pretensa urgência, impôs-se de imediato a exigência
do cumprimento de uma nova obrigação acessória para fornecer informações já
prestadas, gerando nova camada de complexidade e burocracia para os
contribuintes, sob pena de sofrer severas sanções.
No entanto, a exposição de motivos da MP 1.227/2024 acaba por denunciar a
completa falta de urgência da instituição imediata da Dirbi. Isso porque, é
esclarecido que a medida foi proposta inicialmente no Projeto de Lei 15/2024,
encaminhado pelo próprio presidente da República, prevendo justamente a
prestação das informações objeto da Dirbi.
Como resultado, a MP 1.227/2024, neste viés, mostra-se como medida
democraticamente duvidosa, que afronta a republicana tripartição dos poderes,
pois o Executivo acabou por forçar a sua vontade em sobreposição à matéria já
proposta para debates perante o Legislativo. Com efeito, se a instituição da
Dirbi foi submetida ao Legislativo, que é o foro adequado para tanto, cabe ao
Executivo respeitar o processo legislativo, deixando que siga seu curso e, ao
final, se for da vontade dos representantes do povo, que se torne lei.
A exposição de motivos invoca, ainda, a Emenda Constitucional 109/2021, que
estabelece regras transitórias sobre redução de benefícios tributários,
mediante plano de redução gradual do montante total dos incentivos e benefícios
federais de natureza tributária até 2029.
Se a redução dos benefícios fiscais é uma medida necessária desde 2021, a
instituição imediata e retroativa da Dirbi em 2024 se mostra ainda menos
urgente. Isso porque, se nenhuma medida desta natureza foi tomada até o
momento, não há como se admitir que se transfira para o contribuinte a "conta"
da demora do governo.
Ainda, a maior parte dos benefícios objeto da Dirbi são referentes ao
PIS/Cofins que, em razão da reforma tributária, serão extintos em 2027, de
forma que a medida tomada neste momento se mostra tardia e nada urgente.
Por fim, em relação à necessidade de controle dos gastos públicos, não é de
hoje que o déficit público se mostra como tema sensível e de grande relevância.
Dessa forma, não cabe ao Executivo tomar medidas imediatistas - ainda mais
quando estas estão em discussão pelo Parlamento - sob o pretexto de equilíbrio
fiscal.
Dessa forma, percebe-se que a instituição imediata e retroativa da Dirbi não
possui qualquer urgência que justifique a edição de medida provisória,
mostrando a obrigação bastante duvidosa, também, sobre esta ótica.
Diante destas ponderações, tem-se que a instituição imediata e retroativa da
Dirbi, além de afrontar a tripartição dos poderes, sobrepondo-se ao processo
legislativo - onde o tema já é objeto de debate -, impõe, de forma extremamente
truculenta, desnecessário ônus aos contribuintes na busca de informações já
existentes no âmbito do Sped, sob pena de graves penalidades, indo na contramão
da simplicidade almejada para um moderno sistema tributário.
Autor: Gabriel Caldiron Rezende. É
advogado do Machado Associados.