Como é bem sabido, a
recuperação judicial é um instituto jurídico que visa à reestruturação
financeira de empresas em dificuldades econômicas.
De acordo com o
artigo 49 da Lei nº 11.101/2005, todos os créditos existentes na data do pedido
de recuperação judicial estão sujeitas ao procedimento, mesmo que não vencidos.
Art. 49 - Estão
sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido,
ainda que não vencidos.
Conforme
estabelecido no § 3º do referido artigo, alguns créditos não estão sujeitos aos
efeitos da recuperação judicial. Isso se aplica especialmente aos credores
cujos contratos possuem pacto de alienação fiduciária. No entanto, a parte
final deste mesmo artigo faz uma exceção: durante o processo de recuperação
judicial, não é permitida a venda ou retirada dos bens de capital essenciais do
estabelecimento do devedor, preservando, assim, sua atividade empresarial.
§ 3º - Tratando-se
de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou
imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de
imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou
irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário
em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos
efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre
a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se
permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do
art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens
de capital essenciais a sua atividade empresarial.
Observa-se que a
parte final do supracitado parágrafo estabelece uma exceção dentro da exceção,
pois determina que, apesar de certos créditos não estarem sujeitos aos efeitos
da recuperação judicial, o credor, ao exercer os direitos decorrentes da mora
ou inadimplemento, não pode realizar a venda ou retirada dos bens de capital
essenciais do estabelecimento do devedor. Estes referidos bens são considerados
fundamentais para a atividade empresarial que se busca reerguer por meio da
recuperação judicial.
Portanto, este
artigo jurídico visa trazer à discussão um tema que está se mostrando
extremamente controverso no ordenamento jurídico da atualidade, porém muito
relevante para a correta aplicação da Lei de Recuperação e Falência.
No contexto jurídico
em questão, visando elucidar de maneira mais aprofundada a problemática em
pauta, é pertinente rememorar um episódio que vem se mostrando de extrema
relevância para o escopo da Lei nº 11.101/2005, havendo que se destacar o
imbróglio gerado entre uma empresa transportadora, cuja essência do seu negócio
é o transporte rodoviário de cargas, e as instituições financeiras cuja frota
de caminhões encontrava-se alienada fiduciariamente.
Neste quesito, o
artigo 6º da Lei nº 11.101/2005 traz algumas das consequências jurídicas que
ocorrem quando da decretação de falência ou o deferimento da recuperação
judicial, no sentido de auxiliar a empresa devedora nos estágios iniciais da
sua reestruturação. Nestes termos, parafraseando o § 4º do artigo em
referência:
§ 4º - Na
recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I,
II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e
oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação,
prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que
o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal.
Retirada de bens
De bom alvitre
rememorar que o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de
que, mesmo com o término do prazo de blindagem legal, denominado de "stay
period", previsto no artigo 6º, § 4º da Lei nº 11.101/2005, no caso de bem
reconhecidamente essencial à consecução da atividade empresarial da pessoa
jurídica em recuperação judicial, de rigor a manutenção da proibição de
retirada dos referidos bens do estabelecimento comercial (AREsp nº 1.608.261/GO
(2019/0319762-2).
Em relação a isto,
segue trecho que merece destaque, de voto do ministro Antônio Carlos
Ferreira, verbo ad verdum:
Esta Corte possui
entendimento de que os credores cujos créditos não se sujeitam ao plano de
recuperação não podem expropriar bens essenciais que afetem o patrimônio da
sociedade recuperanda, consoante disciplina o art. 49, § 3º, da Lei n.
11.101/05, pois indispensáveis à preservação da atividade econômica da
devedora, sob pena de inviabilização da empresa e dos empregos ali gerados.
O entendimento do
Superior Tribunal de Justiça é ainda mais evidente no AREsp nº 2001822 - GO
(2021/0326653-3), pois a Corte consagrou a tese no sentido de que apesar do
credor fiduciário de bens móveis ou imóveis não se sujeitar aos efeitos da
recuperação judicial, se os referidos bens forem declarados como indispensáveis
ao soerguimento da empresa devedora pelo juízo universal, restará vedada a
alienação ou remoção destes bens do estabelecimento comercial da empresa em
soerguimento.
Além dos que já
foram mencionados, os precedentes do Superior Tribunal de Justiça acerca do
tema são inúmeros (REsp nº 1.660.893/MG; REsp nº 1.668.877/DF; REsp nº
1.061.093/SP; AREsp nº 1.732.379/MS; AREsp nº 1.475.536/RS; AREsp nº
1.475.546/RS) e merecem a devida menção neste artigo para fins de estudo.
Aos olhares da Corte
Superior, plenamente possível, portanto, a permanência dos bens essenciais na
posse do devedor, mesmo após finalizado o período de blindagem legal, comumente
referenciado como "stay period".
Todavia, tal
situação não irá ocorrer de forma automática, sendo necessário que o devedor
leve ao conhecimento do Juízo Universal a necessidade de permanência na posse
dos bens, utilizando-se de dados informativos atualizados e que possam servir
como fundamento do pedido.
Inclusive, antes da
alteração do § 4º do artigo 6º da Lei nº 11.101/2005, e de adotar uma posição
mais conservadora, o Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, por intermédio
de sua câmara reservada, possuía entendimento que possibilitava a
flexibilização do "stay period", de forma excepcional, desde que o devedor não
tivesse concorrido com a superação do lapso temporal (Enunciado IV do Grupo de
Câmaras Reservadas de Direito Empresarial).
Por sua vez, para acompanhar
o pedido de permanência dos bens essenciais na posse do devedor, e para trazer
mais embasamento jurídico à questão, será pertinente rememorar o instituto
jurídico da manutenção de posse, abarcado pelo artigo 560 do Código de Processo
Civil, ad litteris:
Art. 560 - O
possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação e reintegrado
no caso de esbulho.
Trazendo ainda mais
robustez nestes dizeres, o artigo 1.020 do Código Civil também dispõe acerca do
tema:
Art. 1.020 - O
possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no
de esbulho, e segurado de violação iminente, se tiver justo receio de ser
molestado.
É consabido que o
interesse de agir no caso em comento irá surgir a partir de um conflito de
interesses ao qual o devedor, ao se julgar lesado ou na iminência de vir a
sê-lo, busca a intervenção do Poder Judiciário para a análise e aplicação do
Direito, ao qual, conforme a orientação do Superior Tribunal de Justiça (REsp n
1.637.375/SP), a obrigatória adstrição do julgador ao pedido pode ser mitigado
em observância ao "brocardos da mihi factum dabo tibi ius" (dá-me os fatos
que te darei o direito) e "iuria novit curia" (o juiz é quem conhece o
direito).
Portanto, comprovada
a necessidade de manutenção dos bens em posse do devedor, conforme reconhecido
pelo juízo universal e em conformidade com as diretrizes do Superior Tribunal
de Justiça, e preenchendo-se os requisitos do artigo 561 do Código de Processo
Civil, entende-se ser perfeitamente viável a manutenção temporária dos bens na
posse da empresa em soerguimento, visando auxiliar no processo de recuperação.
De mais a mais,
mesmo que os credores fiduciários venham a alegar que possuem a propriedade
sobre os bens, tal fato não acarretará em qualquer óbice para a análise do
pedido, uma vez que o artigo 557, parágrafo único do Código de Processo Civil
aduz claramente que o pedido não poderá ser obstado mediante a alegação de
propriedade ou de outro direito sobre a coisa.
Isto, pois,
rememora-se que a retirada dos bens essenciais da posse do devedor, como, por
exemplo, caminhões de uma empresa cujo objeto social é o transporte rodoviário
de cargas, prejudicará, por completo, a viabilidade do procedimento, indo em
direção contrária ao princípio da preservação da empresa, disposto no artigo 47
da Lei nº 11.101/2005, ad litteris:
Art. 47 - A
recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de
crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte
produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores,
promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à
atividade econômica.
Como no caso que
aqui está sendo citado, afigura-se evidente o caráter essencial de cavalos-mecânicos
e carretas alienados fiduciariamente para a realização da atividade empresária
que constitui o objeto precípuo da devedora fiduciante, em recuperação
judicial. Neste exemplo, o exercício da garantia fiduciária interferirá
diretamente na recuperação financeira do devedor, o que acarretará na
diminuição da frota de veículos e consequente perda de capacidade de cumprir os
contratos de transporte, prejudicando a relação do devedor com os seus clientes
e afetando diretamente o seu faturamento.
O referido princípio
visa não só a manutenção da empresa no mercado, como também a preservação da
busca pelo pleno emprego, regulando-se o exercício da atividade econômica
mediante a implementação de incentivos à iniciativa privada para a criação e
subsistência dos empregos.
Destaca-se que a
situação jurídica em comento deverá sempre ser analisada caso a caso, uma vez
que nem todas as sociedades empresárias podem ser consideradas beneficiárias da
excepcionalidade aqui discutida, pois nem todas utilizam os bens alienados
fiduciariamente para a consecução de suas principais atividades,. Assim, para
se evitar negativas generalizadas deverá o magistrado interpretar a situação
concreta, mediante análise minuciosa dos fatos, fundamentos jurídicos e provas
colacionadas nos autos, decidindo sempre com fulcro na preservação da sociedade
empresária e na manutenção da coletividade de credores.
Por fim, rememora-se
que no caso excepcional aqui discutido, a preservação da empresa e a manutenção
da fonte produtora de empregos importam mais do que o direito dos credores
fiduciários, que podem perseguir o adimplemento do crédito extraconcursal por
vias transversas, como o ajuizamento de processo de execução.
Autor: Rafael Henrique Boselli é advogado do escritório
Nakano & Berga-masco Sociedade de Advogados, atuando em direito
empresarial, e pós-graduado em Direito Digital e Proteção de Dados pela
UniBrasil.