Recentemente, foi abordada nesta coluna a
temática envolvendo o trabalho externo e o pagamento de horas extras [1], assim como a limitação da jornada para os cargos de
gestão [2]. Isto porque as questões envolvendo
controle de horário, para além de serem muito debatidas no Poder Judiciário,
sempre despertam muitas dúvidas nos trabalhadores e nas empresas.
Neste contexto, a temática do tempo gasto
em deslocamentos e nas viagens a trabalho, decorrentes da atividade laboral
sobretudo após a lei da reforma trabalhista, é bastante controvertida e sempre
causa muita dúvida.
À vista disso, surgem algumas indagações:
como são computadas essas horas gastas em deslocamentos e nas viagens corporativas?
Qual seria o momento efetivo de cômputo do início e término da jornada de
trabalho? O tempo de deslocamento pode ser considerado como hora
extraordinária?
Por certo, considerando os inúmeros questionamentos em torno do assunto, o tema
foi indicado por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna
Prática Trabalhista, desta ConJur [3], razão
pela qual agradecemos o contato.
Alterações legislativas x Súmulas do TST
Do ponto de vista normativo no Brasil, de um lado, com o advento da Lei
13.467/2017, a redação do § 2º do artigo 58 da CLT foi alterada [4], de sorte que após a reforma trabalhista não mais se
considera mais tempo à disposição do empregador aquele em que o trabalhador
gasta desde o deslocamento da sua residência até a efetiva ocupação ao posto de
trabalho e vice-versa, inclusive se o transporte for fornecido pelo empregador.
Entrementes, impende destacar que o referido dispositivo legal aborda a
temática das horas in itinere, ou seja, as horas itinerantes. Assim,
antes dessa alteração legislativa, o tempo que era gasto pelo empregado até o
local de trabalho e para o seu retorno, por regra, não era computado na jornada
de trabalho, exceto quando se tratava de local de difícil acesso ou não servido
por transporte público, para o qual o empregador fornecia a condução.
Aliás, diante das inúmeras controvérsias
sobre o assunto, o TST editou na época os verbetes sumulares 90 [5] e 320 [6], que
consideravam o tempo de deslocamento como jornada extraordinária. De igual
modo, a Súmula 429 do TST [7] também
interpretava que o período de deslocamento do trabalhador entre a portaria e o
local de trabalho, caso superasse dez minutos diários, também seria considerado
como tempo à disposição do empregador.
Lado outro, o atual §2º do artigo 4º da
norma celetista [8] trouxe algumas inovações
ao tratar da problemática envolvendo o tempo à disposição do empregador,
trazendo algumas exceções que não são computadas doravante como período
extraordinário, ainda que ultrapasse o limite estabelecido no artigo 58, §1º da
CLT, quais sejam: quando o empregado, por escolha própria,
buscar proteção pessoal, em caso de insegurança nas vias públicas ou más
condições climáticas; ou, ainda, se adentrar ou permanecer nas dependências da
empresa para exercer atividades particulares e etc.
Lição de especialista
A respeito do assunto, oportunos são os
ensinamentos do professor Carlos Henrique Bezerra Leite [10]:
"O sistema jurídico brasileiro não adotou
como critério para estipulação da jornada de trabalho o tempo efetivamente
trabalhado, pois, conforme expressamente adotado pelo art. 4º da CLT,
computa-se como tempo trabalhado aquele em que o trabalhador se encontra a
disposição do empregador. Porém, ainda que não utilizado como regra no Brasil,
é possível que o empregador estabeleça critérios de produtividade e, nesse
caso, o salário do trabalhador será fixado por cada pela produzida (art. 78 da
CLT).
Com efeito, computa-se o tempo de
deslocamento (horas in itinere ou horas itinerantes) quando tratar-se de "local
de difícil acesso ou não servido por transporte público" e o empregador
fornecer a condução, conforme artigo 58 da CLT. (.). Entretanto, a Lei
13.467/2017, inseriu o § 2º no art. 4º da CLT, dispondo que: (.). Além disso, a
Lei 13.467/2017, que deu nova redação ao § 2º do art. 58 da CLT, extinguiu as
horas in itinere, nos seguintes termos: (.)."
TST
Recorde-se que, antes da reforma
trabalhista (11/11/2017), o período em que o trabalhador realizava
deslocamentos com viagens corporativas poderia ser considerado como tempo de
efetivo serviço.
Contudo, mesmo antes da Lei 13.467/2017, a
Corte Superior Trabalhista já havia tinha decisões no sentido de que não seria
possível levar em consideração o tempo em que o trabalhador permanecia
aguardando, por exemplo, o embarque e/ou desembarque em aeroportos [11].
De igual modo, o deslocamento do
trabalhador entre o aeroporto de destino e o hotel, para o TST, também não era
configurado como tempo à disposição, tendo em vista se tratar de evento comum
que ocorre com todos os trabalhadores que dependem, v.g, de transporte público
(ou privado) para o deslocamento da residência para o trabalho e
vice-versa [12].
Logo, antes das alterações realizadas pela
lei reformista, o §2º do artigo 58 da CLT, em conjunto com a Súmula 90 do TST,
ditavam as diretrizes acerca das horas in intinere, desde que
presente os seguintes requisitos: a) local de difícil acesso; e b) transporte
fornecido pelo empregador. Atualmente, porém, as mudanças foram expressivas,
vale dizer, a jornada de trabalho só será computada quando o trabalhador
estiver em seu posto de trabalho, ainda que o transporte seja fornecido pelo
empregador.
Por fim, em relação aos pernoites decorrentes das viagens corporativas, esses
de igual sorte não são contabilizados para efeitos de cômputo da jornada de
trabalho, ainda que o ato de pernoitar fora da residência traga relativa
restrição à disponibilidade de tempo do trabalhador. Pensamento em sentido
contrário, s.m.j, poderia chancelar o cômputo da jornada de trabalho em mais de
24 horas diárias, situação essa incompatível com o ordenamento jurídico e com a
jurisprudência do TST que, como visto nos julgados citados, nem sequer admitem
o tempo à disposição em deslocamentos em viagens.
Conclusão
Em arremate, cabe ressaltar que, hodiernamente, as horas in
itinere, pela sistemática do Tema 1.046 do STF, poderão ser objeto de
negociação coletiva. Sendo assim, o instrumento coletivo de trabalho poderá
estabelecer critérios para ajustar a remuneração envolvendo tempo de
deslocamento, principalmente em casos de viagens corporativas, cuja remuneração
pelo tempo de deslocamento não se define como direito trabalhista indisponível.
[1] Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-jun-06/trabalho-externo-e-o-pagamento-de-horas-extras/.
Acesso em 16.7.2024.
[2] Disponível
em https://www.conjur.com.br/2024-jun-13/cargos-de-gestao-e-limitacao-da-jornada-de-trabalho/.
Acesso em 16.7.2024.
[3] Se você
deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática
Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua
sugestão para a próxima semana.
[4] CLT, Art.
58 - A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade
privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado
expressamente outro limite. (.). § 2º O tempo despendido pelo empregado
desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu
retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido
pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à
disposição do empregador.
[5] SUM. 90 -
HORAS "IN ITINERE". TEMPO DE SERVIÇO. I - O tempo despendido pelo empregado, em
condução fornecida pelo empregador, até o local de trabalho de difícil acesso,
ou não servido por transporte público regular, e para o seu retorno é
computável na jornada de trabalho. II - A incompatibilidade entre os horários
de início e término da jornada do empregado e os do transporte público regular
é circunstância que também gera o direito às horas "in itinere". III - A mera
insuficiência de transporte público não enseja o pagamento de horas "in
itinere". IV - Se houver transporte público regular em parte do trajeto
percorrido em condução da empresa, as horas "in itinere" remuneradas limitam-se
ao trecho não alcançado pelo transporte público. V - Considerando que as horas
"in itinere" são computáveis na jornada de trabalho, o tempo que extrapola a
jornada legal é considerado como extraordinário e sobre ele deve incidir o
adicional respectivo.
[6] SUM. 320 -
HORAS "IN ITINERE". OBRIGATORIEDADE DE CÔMPUTO NA JORNADA DE TRABALHO. O fato
de o empregador cobrar, parcialmente ou não, importância pelo transporte
fornecido, para local de difícil acesso ou não servido por transporte regular,
não afasta o direito à percepção das horas "in itinere".
[7] SU. 429 -
TEMPO À DISPOSIÇÃO DO EMPREGADOR. ART. 4º DA CLT. PERÍODO DE DESLOCAMENTO ENTRE
A PORTARIA E O LOCAL DE TRABALHO. Considera-se à disposição do empregador, na
forma do art. 4º da CLT, o tempo necessário ao deslocamento do trabalhador
entre a portaria da empresa e o local de trabalho, desde que supere o limite de
10 (dez) minutos diários.
[8] CLT, Art.
4º - Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à
disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição
especial expressamente consignada. (.). § 2º Por não se considerar tempo
à disposição do empregador, não será computado como período extraordinário o
que exceder a jornada normal, ainda que ultrapasse o limite de cinco minutos
previsto no § 1º do art. 58 desta Consolidação, quando o empregado, por escolha
própria, buscar proteção pessoal, em caso de insegurança nas vias públicas ou
más condições climáticas, bem como adentrar ou permanecer nas dependências da
empresa para exercer atividades particulares, entre outras: I - práticas
religiosas; II - descanso; III - lazer; IV - estudo; V - alimentação; VI -
atividades de relacionamento social; VII - higiene pessoal; VIII - troca de
roupa ou uniforme, quando não houver obrigatoriedade de realizar a troca na
empresa.
[9] CLT, Art.
58 - A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade
privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado
expressamente outro limite. § 1º Não serão descontadas nem computadas como
jornada extraordinária as variações de horário no registro de ponto não
excedentes de cinco minutos, observado o limite máximo de dez minutos diários.
[10] Curso de
direito do trabalho. 14ª ed.- São Paulo: SaraivaJur, 2022. Página 626 e 627
[11]Disponível
em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=996&digitoTst=14&anoTst=2015&orgaoTst=5&tribunalTst=05&varaTst=0032&submit=Consultar.
Acesso em 16.7.2024.
[12]Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=770&digitoTst=74&anoTst=2011&orgaoTst=5&tribunalTst=03&varaTst=0106&submit=Consultar.
Acesso em 16.7.2024.
Autores:
Ricardo Calcini, é professor, advogado, parecerista e consultor trabalhista,
sócio fundador de Calcini Advogados, com atuação estratégica e especializada
nos tribunais (TRTs, TST e STF), docente da pós-graduação em Direito do
Trabalho do Insper, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do comitê
técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, membro e
pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da
Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP
e da Cielo Laboral.
Leandro
Bocchi de Moraes, é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e
Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD),
pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pós-graduado em Diretos Humanos e
Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha, pós-graduando em
Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (Ius Gentium Coninbrigae), da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da
Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da
Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito
do Trabalho, da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).