Os projetos de leis
complementares sobre a reforma tributária seguem tramitando no Congresso e nos
trazendo diversas surpresas. Uma das mais recentes consta do relatório aprovado
na Câmara dos Deputados sobre o PLP 108, cujo foco é regulamentar o funcionamento
do Comitê Gestor, mas que traz algumas novidades polêmicas sobre incidências
tributárias.
Trato da incidência
de ITCMD, sobre a vertente de tributação das doações, que incidiria
(ou incidirá, se o texto vier a ser transformado em lei) sobre a partilha
desigual de dividendos. O texto em debate no Congresso estabelece o seguinte
(artigo 164, §5, I):
"Consideram-se,
ainda, como doações, para fins da incidência do ITCMD, em transmissões entre
pessoas vinculadas: I - os atos societários que resultem em benefícios
desproporcionais para sócio ou acionista praticados por liberalidade e sem
justificativa negocial passível de comprovação, incluindo distribuição
desproporcional de dividendos, cisão desproporcional e aumento ou redução de
capital a preços diferenciados."
A situação fática
que a norma pretende alcançar, de modo a tributar como doação, ocorre
quando o capital social prevê que o sócio João tem 50% das quotas sociais e
Maria tem os outros 50%. Porém, quando partilham o lucro, João fica com 20% e Maria
fica com 80%. Haveria aqui, segundo o que a regulamentação deseja alcançar,
uma doação de 30 pontos percentuais de João a Maria, pois ele tem
metade do capital social, mas teria doado 30% do lucro daquele
período para Maria. Consequentemente, Maria teria que pagar ITCMD sobre esse
montante que recebeu em percentual superior à sua participação no capital
social, pois teria recebido uma doação de João.
Será isso verdadeiro
e constitucional?
Observemos uma
típica sociedade de pessoas, como as sociedades de advogados, que tenha apenas
dois sócios, cada qual com 50% do capital social. É extremamente usual que um
dos sócios, em certo período, receba honorários em valor superior ao outro, e,
portanto, não se utilize da regra do capital social para realizar a partilha,
que ficaria despareada naquele mês ou durante certo período. Teria
havido doação?
Para ser um pouco
mais rigoroso na apresentação do problema: a regra do capital social é algo a
ser rigorosamente seguida, ou podem os sócios, consoante seus interesses na
organização de seus negócios, estabelecer regras diferenciadas de partilha do
lucro (os dividendos)?
Entendo que nas
sociedades de pessoas os sócios podem estabelecer as regras que melhor lhe
aprouverem na divisão dos lucros, sem que isso se caracterize como doação.
Trata-se de liberdade de iniciativa econômica, visando organizar os
negócios internos da empresa como melhor aprouver aos sócios.
A regra do
percentual do capital social não deve ser usada para fins de obrigatória
divisão de lucros, tratando-se de indevido avanço do poder de tributar no
âmbito da liberdade de iniciativa econômica da sociedade, o que se configura
como uma inconstitucionalidade, por infração ao at. 1º, IV, e ao caput do
artigo 170, CF. O mesmo raciocínio vale para as demais hipóteses pretendidas
nesse mesmo texto em debate no Congresso.
Suponhamos que na
dissolução dessa hipotética sociedade de advogados, um dos sócios decida ficar
com todas os processos (as ações) em curso e o outro com os móveis e
equipamentos que guarneciam o escritório; haveria aqui uma doação de um para
outro? Como apurar isso? Do mesmo modo, se um receber maior valor em honorários
do que o outro em determinado período, isso se caracterizará como doação,
caso a partilha dos lucros não siga a regra da composição do capital social?
Pois é exatamente isso que o texto em debate no Congresso pretende fazer:
tributar o que for dividido de forma desigual entre os sócios, observada a
composição do capital social.
Até entendo que o
escopo seja o de evitar fraudes, que sempre podem ocorrer, mas, tal como
redigido, toda e qualquer partilha desigual acabará sendo objeto de autos de
infração, tendo o contribuinte que justificar sua conduta perante o Fisco.
Melhor será deixar tudo como está, ao invés de trilhar esse caminho perigoso e
potencialmente litigioso, como prevê o texto em debate no Congresso.
Se identificadas
de forma ativa pelo Fisco, as fraudes deverão ser coibidas, e
não fazer como proposto, que coloca o contribuinte sob prévia suspeita,
caso promova partilha desigual e seja levado a pagar imposto sobre doação,
quando doação não há, mas liberdade de iniciativa econômica. Incumbe ao Fisco
exercer a fiscalização e coibir as fraudes, e não considerar de
antemão os contribuintes como praticantes de condutas irregulares.
Urge modificar esse
texto no Congresso, simplesmente retirando esse inciso do projeto.
A cada vez que um
disparate como esse surge nos debates parlamentares, cresce minha convicção de
que a advocacia tributária será a profissão do futuro no
Brasil, em razão da forma como essa reforma tributária vem sendo conduzida.
Autor: Fernando Facury Scaff, é professor titular de
Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do
escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff -
Advogados.