O Projeto de Lei Complementar (PLP nº 108/2024),
segundo projeto a regulamentar a reforma tributária (EC nº 132/2023), veicula
uma previsão no mínimo estranha em relação ao ITCMD. Trata-se da incidência
desse imposto sobre a distribuição desproporcional de dividendos como se doação
fosse, desde que tenha sido realizada "por liberalidade" e "sem
justificativa negocial passível de comprovação".
A Constituição, em sua rígida repartição de
competências tributárias, outorgou aos estados e ao Distrito Federal a
competência para tributar via Impostos a Transmissão Causa Mortis e
Doação, de quaisquer bens ou direitos (artigo 155, inciso I), o que resultou na
sigla ITCMD para designar esse imposto.
A doação é um instituto de Direito Privado,
sendo definido tanto no Código Civil vigente (artigo 538), quanto no Código
Civil de 1916 (artigo 1.165), como um contrato em que uma pessoa, por
liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra,
que os aceita.
Considerando que a lei tributária não pode
alterar a definição dos institutos de Direito Privado utilizados na
Constituição para definir competências tributárias, vedação positivada pelo
artigo 110 do CTN, o fato gerador do ITCMD-Doação deverá ser, obrigatoriamente,
a riqueza manifestada pelo ajuste de vontades em que uma pessoa, por liberalidade
(animus donandi), transfere de seu patrimônio bens ou direitos para o de outra.
Esse fato não é verificado na distribuição
desproporcional de dividendos
A distribuição desproporcional de
dividendos, quando prevista no contrato social e deliberada em reunião, é um
negócio jurídico entre os sócios e a sociedade. A decisão é societária. Não se
trata de um ajuste civil em que a sociedade figura como doadora e os sócios
como donatários. A sociedade não desfalca o seu patrimônio em favor dos sócios.
Não há liberalidade. A distribuição de
dividendos é uma forma de remunerar os sócios pelo capital investido na
sociedade. Antes de receber os lucros do negócio, os sócios investiram capital
para a criação e o desenvolvimento da atividade econômica da sociedade
empresária.
Objetivo da distribuição desproporcional
Quando a distribuição de dividendos é feita
de forma desproporcional à participação societária, o objetivo pode ser
remunerar de forma equitativa cada sócio de acordo com seu engajamento na
sociedade, de modo que aqueles sócios que, por exemplo, administram a sociedade
ou captaram mais clientes e negócios, contribuindo significativamente para o
faturamento da sociedade, recebam maiores dividendos, independentemente da
participação no capital social, sendo certo que, no fim, todos os sócios saem
ganhando.
Desta forma, distribuir dividendos
desproporcionalmente não se trata de uma decisão irrefletida, com base em uma
mera liberalidade. Há sempre fundamentos negociais (ainda que intrínsecos) para
distribuir entre os sócios os lucros da sociedade de forma não proporcional à
participação deles no capital social.
A despeito das justificativas negociais
sempre presentes, o artigo 1.007 do Código Civil vigente, fundamento legal da
distribuição desproporcional de lucros, não exige a demonstração de um
propósito negocial para essa forma de distribuição. A cláusula inaugural do
dispositivo ("Salvo estipulação em contrário") revela a predominância da
autonomia privada para a definição acerca da distribuição desproporcional de
dividendos. Como já dito, é uma decisão dos sócios e da sociedade.
Em verdade, tendo em vista o direito
assegurado pela lei civil, essa pretensa justificativa negocial se confunde com
a própria decisão societária de distribuir os dividendos da sociedade de forma
desproporcional à participação no capital social.
Diferença entre lucro e patrimônio
Outro ponto relevante é que a sociedade
somente distribui os lucros por ela auferidos. Há uma diferença conceitual
imensa entre lucro (dinâmico) e patrimônio (estático). A sociedade não desfalca
o seu patrimônio em favor dos sócios. Ela distribui os lucros obtidos com o
desenvolvimento de sua atividade econômica. O que é diferente da doação, em que
o doador, por liberalidade, efetivamente, desfalca o seu patrimônio em favor do
donatário.
Recapitulando
Portanto,
na distribuição desproporcional de dividendos:
(1) não
há liberalidade;
(2) há sempre um fundamento negocial governado pela autonomia da vontade;
(3) não há transferência do patrimônio da sociedade para os sócios;
(4) remunera-se equitativamente os sócios pelo engajamento na sociedade,
para além de suas participações societárias.
Por essas razões, a distribuição
desproporcional de dividendos não é doação e a ela não pode ser equiparada,
muito menos para fins tributários.
Invasão de competências
No plano legal, tributar pelo ITCMD a
distribuição desproporcional de dividendos como se doação fosse, implica em
violação do artigo 110 do CTN, uma vez que a lei tributária estaria alterando a
definição do instituto de direito privado "doação", utilizado expressamente na
Constituição para definir uma das competências tributárias outorgadas aos
estados e Distrito Federal.
Já no plano constitucional, a cobrança do
ITCMD sobre a distribuição desproporcional de lucros viola a repartição de
competências tributárias e, consequentemente, o pacto federativo.
A distribuição de dividendos pela sociedade
importa em auferimento de renda pelos sócios, tendo em vista o acréscimo
patrimonial dela resultante. Atualmente, os dividendos são isentos do imposto
de renda pela União. A tributação deles por meio do ITCMD acarreta uma invasão
da competência tributária conferida pela Constituição à União para tributar a
renda e proventos de qualquer natureza.
Na prática, os estados e o Distrito Federal
tributariam renda (e não doação) por meio ITCMD, o que é, a um só tempo, ilegal
e inconstitucional.
Autor:
Sandro Miguel Júnior, é advogado tributarista no escritório Ernesto Borges
Advogados, mestre e especialista em Direito Tributário pelo Ibet e professor em
cursos de especialização em Direito Tributário.