A inter-relação
entre atos contábeis, investigações internas e a responsabilização jurídica.
No universo corporativo, é comum associar
empresas a organismos vivos, ao utilizar termos como "empresa
saudável", "DNA corporativo" e "longevidade
empresarial". Essas analogias não são meramente figurativas, mas sim
indicativas de como as ações empresariais, muitas vezes vistas isoladamente, na
realidade, fazem parte de um sistema interdependente e complexo, tal como os
processos biológicos ocorrem no corpo humano. É dessa forma que o funcionamento
contábil dentro das organizações reflete essa interdependência, já que os
resultados financeiros divulgados ao mercado e aos stakeholders são o
produto de múltiplos atos contábeis interligados.
A contabilidade, ao buscar retratar a
realidade econômica da forma mais fiel possível, depende de informações
oriundas de diversos setores, níveis de controle e hierarquias dentro da
empresa. Essas informações devem ser precisas e adequadas para que as
demonstrações financeiras sejam confiáveis. No entanto, é justamente na
complexidade desse sistema que surgem oportunidades para a ocorrência de erros
e, mais preocupantemente, de fraudes contábeis.
Diferentemente de um erro contábil, que
pode ser resultado de falhas humanas ou, e.g., de defeitos de configurações nos
sistemas, a fraude contábil é marcada pela intenção deliberada de manipular
dados financeiros com o objetivo de obter benefícios indevidos, seja para o
autor ou para terceiros. Em outras palavras, o elemento central que diferencia
a fraude é o dolo, ou seja, a intenção consciente de enganar.
A detecção e a análise de fraudes contábeis
requerem uma abordagem jurídica robusta. Primeiramente, é imprescindível que
sejam individualizadas as condutas fraudulentas para se determinar a autoria e
o grau de responsabilidade dos envolvidos. Esse processo de individualização
não é meramente técnico strictu sensu, mas fundamental para garantir que
as sanções sejam aplicadas de maneira justa e que os direitos constitucionais,
como a presunção de inocência e o princípio do in dubio pro reo, sejam
respeitados.
A quantificação do valor fraudado
(materialidade) também é essencial, pois a aplicação indiscriminada de sanções
pode gerar ineficácia no combate às fraudes, além de prejudicar injustamente os
acusados. A materialidade deve ser calculada com precisão, permitindo que as investigações
sejam focadas e eficazes. Nesse contexto, a literatura internacional, como nos
estudos de Michael Levi e Mike Maguire sobre práticas fraudulentas e
criminalidade econômica, enfatiza a necessidade de uma investigação criteriosa
que leve em conta a complexidade das operações financeiras e a inter-relação
entre os diferentes agentes envolvidos.
Por isso, é necessário que as investigações
sejam conduzidas com rigor técnico e científico, despindo-se de preconceitos ou
ideias preconcebidas, adotando, digamos, uma abordagem zetética. Tal postura
investigativa busca não apenas aplicar as normas jurídicas, mas compreender a
realidade econômica e organizacional do contexto em questão, permitindo uma
interpretação mais próxima aos objetivos do legislador. Como destaca a doutrina
de Beate Sjåfjell, editora do International and Comparative Corporate Law
Journal, em seu estudo sobre governança corporativa sustentável, é essencial
entender as interações entre as normas contábeis e a dinâmica interna das
empresas para se atingir resultados mais justos e eficazes.
Seguindo nessa linha de pensamento, a
investigação de fraudes contábeis deve ser realizada com base em critérios
técnicos claros e bem definidos. A correta identificação dos atos fraudulentos
e a precisa delimitação da autoria permitem uma responsabilização em
consonância com os princípios jurídicos nacionais e internacionais. Nesse
sentido, o conceito de "contabilidade forense" ganha destaque, sendo
amplamente utilizado em jurisdições como Estados Unidos e Reino Unido, onde as
práticas contábeis fraudulentas são rigorosamente investigadas e punidas,
levando em consideração o contexto econômico e a intencionalidade dos atos. A
obra de Howard Schilit, Financial Shenanigans, é um exemplo notável, que
explora as várias formas de manipulações contábeis e a importância de uma
abordagem rigorosa na detecção de fraudes.
A famosa alegoria da caverna de Platão
serve como metáfora nesse contexto. É necessário lançar luz sobre as sombras
projetadas pelas práticas contábeis inadequadas, rompendo com as correntes do
senso comum e das ideias preconcebidas que por vezes dominam ambientes
corporativos. Esse processo de iluminação pode ser desconfortável,
especialmente para aqueles que preferem a obscuridade das práticas contábeis
pouco transparentes. No entanto, é um esforço necessário para assegurar que as
decisões empresariais sejam justas, informadas e alinhadas com os princípios
éticos e legais. Nesse ponto, a literatura do professor Dennis Thompson, da
"John Kennedy School of Governament", da Universidade de Harvard, em
"Ethics in Congress: From Individual to Institutional Corruption",
oferece insights valiosos sobre como a cultura organizacional e pressões
internas podem influenciar comportamentos éticos, ou a falta deles, dentro de
empresas.
Assim, a complexidade dos atos contábeis e
a interdependência dos sistemas dentro de uma organização requerem uma
abordagem investigativa e jurídica que vá além da mera aplicação de normas. É
preciso compreender o contexto em que as fraudes ocorrem, identificar com
precisão os responsáveis e garantir que as sanções aplicadas sejam
proporcionais e justas. Somente assim será possível alcançar uma verdadeira
transparência contábil e assegurar a confiança dos stakeholders nas
demonstrações financeiras apresentadas.
Desta forma, as lições extraídas de
investigações contábeis rigorosas e bem estruturadas devem ser utilizadas para
aprimorar as práticas internas das empresas e fortalecer os mecanismos de
governança corporativa. Ao reconhecer a importância de uma abordagem holística
e integrativa, será possível não apenas prevenir fraudes futuras, mas também
promover um ambiente empresarial mais saudável, ético e sustentável, como
defendem autores como Jayne W. Barnard, em suas análises sobre o papel da
governança corporativa na prevenção de fraudes.
A transparência contábil e a correta
aplicação das normas jurídicas não são apenas uma obrigação legal, mas uma
ferramenta essencial para a construção de um mercado mais justo e equitativo.
Na era da informação, onde a confiança é um ativo valioso, é imperativo que as
empresas assumam a responsabilidade de garantir a veracidade e a integridade de
suas demonstrações financeiras, lançando luz sobre todos os aspectos de suas
operações contábeis.
Autores:
Francisco
Petros, advogado, especializado em direito societário, compliance e governança
corporativa. Também é economista e MBA. No mercado de capitais brasileiro
dirigiu instituições financeiras e de administração de recursos. Foi
vice-presidente e presidente da seção paulista da ABAMEC e Presidente do Comitê
de Supervisão dos Analistas de Investimento. É membro do IASP e do Corpo de
Árbitros da B3, a Bolsa Brasileira, Membro Consultor para a Comissão Especial
de Mercado de Capitais da OAB - Nacional. Atua como conselheiro de
administração de empresas de capital aberto e fechado.
Fernandes,
Figueiredo, Françoso e Petros Advogados,
Bárbara
Castellari Peixoto
Advogada
do escritório Fernandes, Figueiredo, Françoso e Petros Advogados.
Fonte:
https://www.migalhas.com.br/depeso/414095/desvendando-complexidade-e-combatendo-fraude-em-ambientes-empresariais