A crescente
digitalização de relações na contemporaneidade, sobretudo de relações
jurídicas, que migram, de maneira gradual, do suporte fático físico para o
suporte fático virtual, traz consigo relevantes discussões para o direito das
sucessões.
Com a criação
recente (em parâmetros históricos) do criptoativo bitcoin (BTC) em
2008, é possível defender que houve a reinvenção da "moeda" na forma de códigos
de computador [1]. Isso só foi realizável porque o
suposto criador do BTC, Satoshi Nakamoto, idealizou a tecnologia da blockchain,
isto é, o "local" em que ocorrem as transações de criptoativos. A blockchain pode
ser conceituada como uma espécie de livro-razão, capaz de registrar todos os
movimentos da transação, como a quantia, quem enviou, quem recebeu e o lugar
onde foi registrada a movimentação [2].
A mudança de
paradigma perpetrado pela ascensão do bitcoin, outros criptoativos e da
tecnologia da blockchain é visualizada na medida em que, de acordo
com pesquisa realizada pela empresa Cisco, até 10% da riqueza global poderá ser
armazenada em blockchain em até 2027 [3].
De acordo com a
Instrução Normativa nº 1.888/2019 (artigo 5º, inciso I), considera-se
criptoativo:
"A representação
digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço
pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado
eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros
distribuídos, que pode ser utilizado como forma de
investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso
a serviços, e que não constitui moeda de curso legal [4]."
Dessa forma,
constata o patente aspecto patrimonial dos criptoativos, pois, na medida em que
eles assumem as funções destacadas na resolução supracitada, essa situação pode
acarretar, por óbvio, um aumento no patrimônio digital do indivíduo. Além
disso, a Subcomissão de Direito Civil Digital responsável pela reforma do
Código Civil, e da qual um dos coautores fez parte, incluiu no rol
exemplificativo de patrimônio digital a previsão de criptoativos, disposto no
texto da reforma como criptomoedas [5].
Não há obscuridade
em relação à transmissibilidade das criptomoedas, muito embora sejam bens
digitais em sentido estrito, justamente por estar presente o caráter
patrimonial. É importante salientar que a reforma projetada em nada altera esta
regra, pois os bens digitais dotados de valor econômico serão sucedidos de
acordo com as normas já vigentes no ordenamento jurídico brasileiro [6].
A problemática
reside em como os eventuais herdeiros e legatários terão acesso às criptomoedas
que eram custodiadas pelo de cujus. O estudo sobre planejamento patrimonial
de criptomoedas do Cremation Institute revelou que, não obstante
quase 90% dos investidores em criptomoedas se preocuparem com o que acontecerá
com esses bens digitais depois que falecerem, apenas 23% desses investidores
possuem um planejamento sucessório para esses ativos [7].
Modalidades de
custódia das criptomoedas
Existem, atualmente,
duas formas de custódia de criptomoedas: por meio de corretoras especializadas,
as chamadas exchanges, ou através de carteiras de criptomoedas (wallets),
modalidade em que os ativos permanecem na posse exclusiva do titular.
Em relação à
primeira, as criptomoedas são guardadas por corretoras, que detém a posse dos
ativos. Na situação de morte do indivíduo, algumas corretoras possuem
procedimentos próprios em seus sites que, caso fique comprovada a morte do
titular das criptomoedas e a condição de herdeiro do requerente, é possível que
o requerente receba os ativos em sua própria conta da corretora. A Binance, por
meio do "recurso de herança", permite que um representante do patrimônio de
cujus ou beneficiário autorizado a preencher uma solicitação de herança
bem-sucedida, receba as criptomoedas em sua conta Binance [8].
Caso não seja
possível o acesso às criptomoedas pela via extrajudicial, nada impede que os
interessados se valham de medidas judiciais. Assim, na ação de inventário, por
exemplo, os sucessores, cientes de que o falecido era titular de conta em
corretora de criptomoedas, poderiam requerer a expedição de ofício às
corretoras para a transferência dos ativos que o de cujus investia em
vida.
Além disso, a citada
Instrução Normativa nº 1.888/2019 instituiu a obrigatoriedade de prestação de
informações relativas às operações realizadas com criptoativos, tanto por parte
do investidor, quanto da corretora, à Secretaria Especial da Receita Federal do
Brasil, o que pode auxiliar o inventariante a solicitar tais informações pelo
sistema Infojud. Após a solicitação das informações, cabe ao inventariante
requerer a expedição de ofícios às corretoras, com a finalidade de verificar a
existência de saldo em criptomoedas no momento da abertura da sucessão [9].
Faz-se imperioso
destacar que a medida judicial explicitada não é restrita apenas às ações de
inventário, pois, em matéria de sucessão, não raro ocorrem episódios em que a
regra da legítima é violada. Assim, faz-se necessária investigação sobre
eventual existência de investimento em criptoativos do falecido em ação de
sobrepartilha ou ação de sonegados, por exemplo.
Por outro lado, na
hipótese em que os criptoativos são custodiados pelo próprio indivíduo em
carteiras digitais (wallets), torna-se tarefa hercúlea o acesso aos ativos do
falecido caso ele não tenha elaborado um testamento. Isso porque o acesso às
criptomoedas se dá por meio de uma senha privada de 12 ou 24 palavras em inglês
e, uma vez perdida a sequência de palavras, é praticamente impossível
recuperá-la. Hoje, algumas startups de software utilizam
tecnologias que geram e testam milhões de senhas, mas, ainda assim, as chances
de êxito são baixas, e é estimado que cerca de 7,8 milhões de BTCs estão
perdidos, o equivalente a R$ 2,6 trilhões [10].
A melhor solução,
portanto, é a conciliação entre alternativas jurídicas e tecnológicas. Um
planejamento sucessório eficaz, mediante testamento, aliado à utilização da tecnologia
para viabilizar a sucessão da senha das wallets de criptoativos
desponta-se como estratégia coerente. Interessante notar que, na linha do §2º,
do artigo 1.857, do CC/02, as disposições testamentárias não se limitam a
conteúdos exclusivamente patrimoniais, o que permite, também, que o de
cujus deixe instruções sobre como acessar as senhas das wallets de
criptoativos [11].
Testamento público
não é viável
Rechaça-se, de
antemão, a lavratura de um testamento público, uma vez que, a publicidade do
conteúdo dessa forma de testamento vai de encontro à real motivação do
testador, que é justamente evitar o acesso de terceiros às chaves privadas das
carteiras.
Destarte, a primeira
alternativa é a elaboração de um testamento cerrado, ou místico, caracterizado
como aquele em que é escrito em carta sigilosa, pelo próprio punho do testador,
ou por outra pessoa a seu rogo, e completado com o instrumento de aprovação feito
pelo oficial público [12]. Embora haja a
necessidade de ser aprovado perante tabelião, o testador não revela o conteúdo
interno do testamento, permanecendo lacrado em sua posse. Assim, é mister que o
testador preserve o testamento, pois ele só será aberto judicialmente após sua
morte (artigo 1.875, do CC/02).
Não há óbices ao
testador constar nesse testamento que o pen drive ou o papel com a
senha de suas wallets, após sua morte, será transmitido aos seus
herdeiros. Entretanto, nos parece que surge um trabalho dobrado para o testador
nessa situação: o de preservar o testamento cerrado e os papéis com as senhas
das wallets de criptoativos. Há formas mais tecnológicas e engenhosas
de lidar com a problemática, como armazenar as senhas em um e-mail e
no testamento constar que aos herdeiros será concedido acesso do endereço
eletrônico com as senhas. Essa situação hipotética já pode ocorrer atualmente,
mas com a reforma do Código Civil a herança digital terá tratamento expresso.
É viável, também,
que o testador utilize em vida uma carteira de assinatura múltipla, as
chamadas multisig wallets, em que há a configuração para exigir um certo
número de assinaturas de um grupo predeterminado de chaves privadas [13], mesmo em vida. Em tese, não seria necessário um
testamento para que os herdeiros cotitulares, que foram nomeados em vida,
reivindicassem a carteira após o falecimento do indivíduo. Isso seria um
procedimento interno no âmbito da própria empresa da wallet. Mas, em razão
da segurança jurídica e do formalismo, o falecido poderia elaborar um
testamento definindo os beneficiários da multisig wallet e as senhas
para acesso.
Cresce o número de
empresas de inteligência artificial responsáveis por gerenciar as chaves
privadas no caso de falecimento dos indivíduos e outro exemplo que, em um
primeiro momento também dispensaria o testamento, seria o mecanismo de
segurança denominado dead man's switch, que exige a constante confirmação
de vida do titular dos criptoativos. Na hipótese em que não haja mais a
confirmação de vida, as senhas seriam transmitidas automaticamente para um
beneficiário previamente definido [14].
Por fim, o
testamento particular, ou hológrafo, também é alternativa viável para
permitir a sucessão dos criptoativos do falecido, pois não possui conteúdo
público e pode ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico para
abertura em juízo post mortem (artigo 1.876, do CC/02). A única
ressalva é sobre a exigência de que o testamento seja lido na presença de três
testemunhas, o que torna essencial que as estas sejam pessoas de confiança do
testador [15].
A inexorável
digitalização de atos jurídicos que eram inerentes somente ao meio ambiente
físico não pode se furtar da atenta análise dos operadores do direito e,
sobretudo, do legislador.
A possibilidade de
registrar testamentos em uma blockchain (blockchain wills [16]) pode ser uma
forma bastante segura que soluciona a problemática de preservação das senhas
das carteiras de criptoativos e do próprio testamento, cerrado ou particular. A
plataforma Notarchain, criada pelo e-Notariado, já permite a validação e
autenticação de documentos eletrônicos e, com o advento da reforma do Código
Civil e gradual evolução da jurisprudência pátria, os blockchain wills ganharão
força.
Acredita-se,
portanto, que pode haver um fomento dos testamentos, especialmente o cerrado,
já que é o meio mais eficaz atualmente para a transmissão dos bens digitais
do de cujus, especialmente em se tratando de criptoativos. Devido às
problemáticas envolvendo a transmissão post mortem de criptoativos,
um planejamento sucessório adequado, mediante testamento, é medida primordial
para garantir que as disposições de última vontade do falecido sejam
transmitidas aos seus herdeiros e, principalmente, que valores em criptoativos
não se percam.
[1] ULRICH,
Fernando. Bitcoin: A moeda na era digital. São Paulo: Mises Brasil, 2014, p.
12.
[2] PELLINI,
Rudá. O Futuro do dinheiro. São Paulo, Gente, 2019, p. 74.
[3] TAYLOR,
Charlie. Up to tenth of world wealth set to be stored on blockchain by 2027.
The Irish Times. 11 abr. 2019. Disponível em: https://www.irishtimes.com/business/technology/up-to-tenth-of-world-wealth-set-to-be-stored-on-blockchain-by-2027-1.3855716,
Acesso em: 16 ago. 2024.
[4] RECEITA
FEDERAL DO BRASIL. Instrução Normativa nº 1.888, de 03 de maio de 2019. Acesso
em: 21 ago. 2024. Disponível em:
http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=100592.
[5] Prefere-se
o termo "criptoativos" às "criptomoedas", pois o segundo, em realidade, é uma
ficção.
[6] NUNES,
Dierle; MACIEL, Mathaus Miranda; CAPUTE, Vitória de Castro. A herança digital
dentro da reforma do Código Civil. ConJur. 20 maio. 2024. Disponível em: Acesso
em:
https://www.conjur.com.br/2024-mai-20/reforma-do-codigo-civil-e-a-heranca-digital/.
17 ago. 2024.
[7] CREMATION
INSTITUTE. Cryptocurrency Estate Planning Study. 07 jul. 2020. Disponível em:
https://cremationinstitute.com/crypto-estate-planning-study/. Acesso em: 19
ago. 2024.
[8] BINANCE.
Termos de Uso. 03 jun. 2024. Disponível em:
https://www.binance.com/pt-BR/terms. Acesso em: 19 ago. 2024. BINANCE. Como
usar o "Recurso de Herança" na Binance? 04 mar. 2024. Disponível em:
https://www.binance.com/pt-BR/support/faq/como-usar-o-recurso-de-heran%C3%A7a-na-binance-89413ec723d94a1d8fb038e3e1130e0a.
Acesso em: 19 ago. 2024.
[9] TEIXEIRA,
Tarcisio. Direito Digital e Processo Eletrônico. São Paulo: SaraivaJur, 2022,
p. 196.
[10] MARTINS,
Lucas Gabriel. Há cinco Petrobras em Bitcoins perdidos. InfoMoney. 13 mar.
2024. Acesso em: 22 ago. 2024. Disponível em:
https://www.infomoney.com.br/onde-investir/ha-cinco-petrobras-em-bitcoins-perdidos-e-vale-ate-hipnose-para-tentar-recuperar/.
[11] LARA,
Moises Fagundes. Herança Digital. Joinville: Clube dos Autores, 2019.
[12] OLIVEIRA,
Arthur Vasco Itabaiana de. Tratado de Direito das Sucessões. São Paulo: Max
Limonad, 1952.
[13] BINANCE
ACADEMY. Como proteger e repassar suas criptomoedas após a morte? Binance. 15
nov. 2023. Disponível em:
https://academy.binance.com/pt/articles/how-to-safely-pass-on-your-crypto-when-you-die.
Acesso em: 25 ago. 2024.
[14] Ibidem.
[15] AFFONSO,
Lucas Brandão. A relação da herança digital com as carteiras de criptoativos no
direito brasileiro. RedUNB, Brasília, v. 18, n. 2, p. 198, 2023. Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/redunb/article/view/44880. Acesso em: 25
ago. 2024.
[16] BRIDGET,
J. Crawford. Blockchain wills. Disponível em:
https://digitalcommons.pace.edu/lawfaculty/1158/. Acesso em: 25 ago. 2024.
Autores:
Dierle Nunes, é sócio do escritório do Camara,
Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia), doutor em Direito
Processual, professor na PUC Minas e UFMG, membro da Comissão de Juristas que
elaborou o anteprojeto de reforma do Código Civil e que assessorou na
elaboração do CPC/2015 e presidente da Comissão de Inteligência Artificial no
Direito da OAB-MG.
Mathaus Miranda, é advogado em Camara, Rodrigues,
Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia), membro do Grupo de Estudos em
Direito e Tecnologia (DTec) da UFMG e pós-graduando em Direito Privado,
Tecnologia e Inovação pela EBRADI/SP.