Nas últimas décadas, a tecnologia alterou
profundamente as relações sociais, sendo inevitável que os seus impactos
repercutissem também nos atos e negócios jurídicos. A comissão de juristas
responsável pela reforma do Código Civil, atenta a esse fenômeno, não apenas
incluiu previsões que tangenciam a temática nos dispositivos sugeridos, como
também previu um livro autônomo para o Direito Digital, com o intuito de harmonizar
o ordenamento jurídico e abarcar os desafios e as peculiares do ambiente
digital. Decorridas múltiplas reuniões e consultas, foi divulgado o relatório
final, contemplando as contribuições que foram aprovadas.
No livro dedicado ao Direito Digital foram
introduzidas previsões sobre assinatura eletrônica, ante a migração das
relações contratuais para o meio digital. A assinatura manuscrita, meio
consolidado e amplamente utilizado para atestar a ciência e o consentimento de
uma parte em relação ao teor de um documento, coexiste com outra modalidade
que vem ganhando crescente relevância, a assinatura eletrônica. As categorias
existentes possuem grau progressivo de confiabilidade com relação a autoria, a
integridade e a autenticidade, que se iniciam com a assinatura eletrônica
simples, perpassam pela assinatura eletrônica avançada até atingir o seu maior
nível com a assinatura eletrônica qualificada.
Na Europa, em 1999, foi elaborada a
primeira regulamentação comunitária sobre o tema, a diretiva 1999/93/CE, oportunidade
em que foram apresentados os elementos mínimos para a confiabilidade das
assinaturas eletrônicas. A existência de instrumentos que permitissem o
controle exclusivo do signatário e a verificação de eventuais alterações do
seus dados foram atreladas à modalidade de assinatura eletrônica avançada, ao
passo que o uso de certificado eletrônico qualificado emitido por prestador de
servidor creditado, que assegurasse o nexo entre os dados de verificação da
assinatura e a identicidade inequívoca ao signatário, foi associada à
assinatura eletrônica qualificada. O cenário legal foi aperfeiçoado em 2014,
com a edição do regulamento 910/14/CE (regulamento eIDAS), que, entre outros,
determinou a existência de autoridade supervisora em cada Estado-Membro para
regular o assunto naquela circunscrição e fixou a equivalência entre a
assinatura eletrônica qualificada e a assinatura manuscrita.
O Brasil legislou pela primeira vez sobre a
matéria com a edição da MP 2.200-2, de 24/8/01, que instituiu a ICP-Brasil
- Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira, a qual serve como
fundamento para o funcionamento do sistema nacional de assinaturas eletrônicas.
Complementarmente, a lei 14.063/20 definiu as modalidades de assinaturas
eletrônicas, fazendo referência expressa às três espécies4, o que não existia
até então, além de estabelecer suas aplicações em interações com entidades
públicas e em determinados atos realizados por pessoas jurídicas.
Ante a ausência de dispositivos sobre
assinatura eletrônica no Código Civil, o grupo de Direito Digital apresentou
sugestões, em capítulo dedicado, no qual foram incorporadas as definições
conceituais contidas no art. 4º, I a III da lei 14.063/20, bem como a
presunção de veracidade ali fixada em prol das declarações que utilizam o
sistema de certificação da ICP-Brasil, empregado nas assinaturas eletrônicas
qualificadas.
Previsão relevante estabelece que, salvo
disposição legal em sentido contrário, a validade de documentos constitutivos,
modificativos ou extintivos de posições jurídicas que produzam efeitos perante
terceiros depende de assinatura qualificada. O intuito foi assegurar que a
espécie de assinatura eletrônica considerada mais segura, em termos de certeza
quanto à identidade do signatário e integridade do conteúdo, e traz em si a
possibilidade de checagem para fins probatórios, a modalidade qualificada,
fosse utilizada em atos jurídicos que possam afetar terceiros. A seara
dos direitos reais é permeada de exemplos nesse sentido, como as operações de
venda e compra de imóveis e de constituição de usufruto, que devem ser
registradas no registro público para eficácia plena da publicidade registral.
Atos afetos a outros ramos do Direito, como a instituição de legados ou a
realização de doações de bens da parte disponível da herança também podem
exigir o uso de assinatura eletrônica qualificada. Ponto distintivo adicional
da proposta da Comissão é a previsão de que a assinatura eletrônica não serve
como meio de comprovação da capacidade do signatário ou da inexistência de vícios
na manifestação de vontade. A eficiência do método de assinatura eletrônica
empregado não se confunde com a comprovação da capacidade do signatário em
compreender o ato jurídico praticado e suas implicações.
A integração da tecnologia no Direito,
refletida na reforma do Código Civil e na criação do livro autônomo para o
direito digital, marca um avanço significativo na adaptação do ordenamento
jurídico às novas realidades digitais. A inclusão das modalidades de assinatura
eletrônica no sistema jurídico brasileiro, com ênfase na assinatura eletrônica
qualificada, demonstra um esforço deliberado para garantir segurança e
confiabilidade nos atos jurídicos em um ambiente digital cada vez mais
presente. A reforma, portanto, não apenas harmoniza o direito com as novas
tecnologias, mas também estabelece limites claros para assegurar a integridade
dos atos jurídicos. Dessa forma, o Código Civil atualizado oferece uma base
sólida para lidar com os desafios do ambiente digital, promovendo uma maior
segurança jurídica e adaptabilidade em um cenário de constantes inovações
tecnológicas.
1 Para Béatrice Fraenkel, antropóloga
especializada em antropologia da escrita, a assinatura surgiu como um símbolo
da identidade moderna que se estabelecia, incorporando o eu individua, a
capacidade de emitir juízos morais, de agir conforme a legislação e de
consentir e estabelecer relações sociais. Com o crescimento da alfabetização, a
disseminação das normas escritas e a criação de governos mais burocráticos,
a assinatura tornou-se um instrumento de validação capaz de converter um
documento escrito em um ato jurídico. FRAENKEL, B. La signature, gene`se
d'un signe. Paris: Gallimard, 1992.
2 Na Alemanha apenas as assinaturas
eletrônicas qualificadas, conforme definido no Art. 3(12) do Regulamento eIDAS,
atendem aos requisitos de forma eletrônica estabelecidos pelo § 126-A do Código
Civil Alemão (BGB), podendo substituir a forma escrita legalmente exigida.
Apenas documentos eletrônicos assinados com assinatura eletrônica
qualificada possuem o mesmo valor probatório que os documentos em papel, de
acordo com o Código de Processo Civil (seção 371-A (1) ZPO).
3 Art. 4º Para efeitos desta Lei, as
assinaturas eletrônicas são classificadas em:
I - assinatura eletrônica simples:
a) a que permite identificar o seu
signatário;
b) a que anexa ou associa dados a outros
dados em formato eletrônico do signatário;
II - assinatura eletrônica avançada: a que
utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação
da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que
admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o
documento, com as seguintes características:
a) está associada ao signatário de maneira
unívoca;
b) utiliza dados para a criação de
assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança,
operar sob o seu controle exclusivo;
c) está relacionada aos dados a ela
associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável;
III - assinatura eletrônica qualificada: a
que utiliza certificado digital, nos termos do § 1º do art. 10 da Medida
Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001.
COORDENAÇÃO
Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em
Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor
Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito
(EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de
pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da
pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da
EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto
Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro
de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo,
parecerista e consultor jurídico. Relator-Geral da proposta da reforma do
Código Civil.
Autores:
Luis
Felipe Salomão é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Corregedor Nacional
de Justiça. Membro da Corte Especial do STJ. Presidente da comissão de juristas
responsável pela revisão e atualização do Código Civil.
Marco
Aurélio Bellizze é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Membro da 3ª
Turma. Membro da 2ª Seção. Membro da Comissão de Jurisprudência. Professor da
Fundação Getúlio Vargas desde 2021. Coordenador Acadêmico da FGV/Exame de
Ordem. Vice-presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e
atualização do Código Civil.
Rosa
Maria de Andrade Nery é professora associada de Direito Civil da Faculdade de
Direito da PUC/SP. Livre-Docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.
Árbitra em diversas câmaras de arbitragem do Brasil. Foi Procuradora de Justiça
do Ministério Público do Estado de São Paulo por 20 anos e desembargadora do
Tribunal de Justiça o Estado de São Paulo por 15 anos. Titular da cadeira de
número 60 da Academia Paulista de Direito. Professora do curso de graduação e
de pós-graduação em Direito da PUC/SP e professora colaboradora do Centro
Universitário Ítalo-Brasileiro. Relatora da proposta da reforma do Código
Civil.
Fonte:
https://www.migalhas.com.br/coluna/reforma-do-codigo-civil/414488/assinatura-eletronica-no-projeto-da-reforma-do-codigo-civil