A Emenda
Constitucional n° 132, publicada em 21 de dezembro de 2023, trouxe grande
alteração para o sistema tributário nacional. No entanto, estão pendentes de
aprovação, no Congresso, as leis complementares [1] que
regulamentarão os dispositivos da emenda.
Por isso ainda não é
possível fazer um diagnóstico preciso do alcance da reforma sobre os diversos
setores da economia.Quanto às operações de planejamento patrimonial e
sucessório, já podemos antecipar algumas mudanças que nos chamam atenção.
Preliminarmente,
vamos lembrar que as operações de planejamento societário, patrimonial e
sucessório são desejáveis, e até necessárias, para o bom desenvolvimento dos
negócios privados e empresariais, porquanto representam uma forma de
organização - racional e deliberada - dos bens, direitos e interesses das
partes envolvidas.
É o meio pelo qual
organizamos e definimos como iremos desenvolver as nossas atividades
econômicas, contribuir, produzir e compartilhar riquezas.
Essas operações de
planejamento são positivas, pois podem proporcionar maior eficiência fiscal e
administrativa, além de sensível otimização dos custos, capitais e demais
ativos empregados. Tais eficiências trazem melhorias para a gestão do negócio,
além de mitigar conflitos e/ou contingências relacionadas aos empreendimentos,
potencializado os resultados.
Por fim, não podemos
deixar de mencionar que os planejamentos patrimoniais, sucessórios e
societários estão alinhados aos princípios e boas práticas de governança corporativa,
contribuindo para a perpetuação das empresas e dos negócios.
Podem, inclusive,
permitir que a implementação da sucessão na gestão das empresas ocorra de forma
gradual, abrindo espaço para a preparação das partes envolvidas, sobretudo em
circunstância de crise.
O devido alinhamento
dos interesses internos e a melhora do fluxo de informações entre as partes
também permitem a criação de processos e estruturas, que funcionarão como
alicerces para a sucessão empresarial.
Importância do
planejamento no cenário atual
Pois bem. São
inúmeras as razões que justificam as operações de planejamento, sobretudo em
momentos, como os atuais, em que vivenciamos profundas mudanças no arcabouço
legal.
É justamente neste
contexto, no qual a reforma tributária já está aprovada, conquanto pendente a
sua regulamentação, que fazemos uma reflexão sobre a forma de planejar os
negócios no Brasil, em particular, os planejamentos patrimoniais e sucessórios.
Vejamos alguns
pontos que podem ser tocados pelas novas regras.
Aumento da
tributação de doações de bens e direitos ou na transmissão de heranças (ITCMD)
A Emenda
Constitucional 132 alterou a redação do artigo 155, §1º, VI, da Constituição,
dispondo que o ITCMD (o imposto estadual que incide sobre doações e sobre a
transmissão de patrimônio em virtude de herança) será sempre progressivo,
conforme o valor do quinhão, do legado ou da doação, com alíquotas que podem
chegar, atualmente, a 8%.
Além disso, a
alíquota máxima - de 8%, poderá ser ampliada, em razão de resoluções do Senado,
que ainda pendem de aprovação.
Em vista dessa
modificação já aprovada, diversos estados brasileiros - como é o caso de São
Paulo, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Paraná - devem ajustar
as suas legislações, determinando a progressividade do ITCMD, prevista na
Constituição, aplicando alíquotas de até o dobro da tributação atual.
Para determinar a
base legal da tributação valerá o estado onde tiver domicílio o doador ou o de
cujus, caso estes sejam domiciliados no Brasil.
No caso do estado de
São Paulo, um projeto de lei [2] prevê a
mudança da tributação, com alíquotas progressivas do ITCMD, entre 2% e 8%, o
qual, se aprovado em 2024, permitirá a maior oneração fiscal a partir de 2025.
A alíquota do ITCMD
passaria a ser progressiva, (1) saindo dos atuais 4% para 6%, alcançando
doações ou heranças de bens com valores maiores de 85.000 e menores de 280.000
Ufesps (o equivalente, aproximadamente, ao intervalo entre três milhões de
reais e nove milhões e novecentos mil reais); e (2) saindo dos atuais 4% para
8%, no caso de doações ou heranças de bens com valores superiores a 280 mil
Ufesps (o equivalente a, aproximadamente, R$ 9,9 milhões).
As operações que
forem realizadas antes da aprovação da nova legislação serão tributadas de
acordo com a legislação em vigor, portanto, com a alíquota fixa atualmente
vigente.
Tributação das
distribuições desproporcionais de dividendos entre sócios de empresas e das
doações sujeitas a encargos
Há, no projeto de
lei [3], uma outra alteração significativa quanto à
legislação do ITCMD.
De acordo com o texto
da proposta de Lei Complementar, serão considerados como "atos de mera
liberalidade", ou seja, doações passíveis de tributação, as distribuições,
entre partes vinculadas, de dividendos, feitas em desacordo com as
participações societárias, salvo se forem "justificadas".
Esta tentativa de
mudança legislativa pode, na prática, impor cuidados redobrados e tornar
insegura uma operação onerosa, que nos dias atuais é rotineira e relativamente
segura. Isso porque a distribuição de dividendos pela sociedade ao sócio
configura simples repartição de resultados e remuneração do capital social,
algo que é bem distinto de uma doação ou atos de liberalidade.
A distribuição de
dividendos de forma desproporcional é permitida e reconhecida na legislação
atual como uma forma lícita e admitida para remunerar a efetiva e justa contribuição
de um sócio para o capital e para o desenvolvimento das atividades empresárias,
dentro de um contexto específico. Esta distribuição desproporcional ocorre,
sobretudo, nos casos em que a contribuição do sócio tem, por exemplo, natureza
imaterial ou intelectual.
Portanto, caso
aprovada, a nova legislação exigirá das partes uma maior cautela jurídica, caso
decidam implementar a distribuição desproporcional de lucros, de forma a bem
explicitar, na documentação que a formaliza, as bases e justificativas para a
referida distribuição, de forma a diferencia-la de uma doação.
A proposta de
legislação alcança inclusive atos societários que impliquem (1) partilhas de
bens, de que resultem excesso de meação ou quinhão, porquanto feitas de forma
desproporcional, em caso de dissolução de matrimônio ou união estável; (2) as
transferências, a título gratuito, pelo usufrutuário, para o nuproprietário,
dos rendimentos não usufruídos pelo usufrutuário, (3) a cisão
"desproporcional", o aumento ou a redução de capital "a preços diferenciados";
(4) o perdão de dívida "por liberalidade e sem justificativa negocial passível
de comprovação".
A redação do projeto
de lei complementar traz uma outra nuance digna de nota: segundo o texto [4] proposto, para fins de incidência do ITCMD,
considera-se como doação, o ato pelo qual uma pessoa, por liberalidade,
transfere do seu patrimônio bens ou direitos para o de outra, "que os
aceita, expressa, tácita ou presumidamente, com ou sem encargo".
Ora, a redação acima
afronta o disposto na lei material civil, disposta no artigo 539, do Código
Civil, segundo o qual, se a doação for sujeita a encargo, não se poderá
presumir "aceita a doação" pelo donatário, caso este não se manifeste de forma
expressa. Esta nuance poderia confundir um ato de mera liberalidade, sujeito
a encargo, com aqueles outros atos negociais, onerosos, fundamentados em
contrapartidas e balanceamentos patrimoniais.
Desta forma, caso a
proposta de legislação seja aprovada, atos ordinários, onerosos e negociais,
poderão gerar controvérsias fiscais.
Será necessário
prever, detalhadamente, nos atos societários que os formalizam, as regras, os
termos e as condições, segundo os quais os atos serão perfeitamente eficazes.
Tributação de
operações das 'holdings' patrimoniais, isto é, sociedades meramente detentoras
de bens imóveis, sem atividades econômicas relevantes
Entre as possíveis
estratégias de planejamento patrimonial e sucessório, são comuns as operações
de conferência de bens ao capital de sociedades patrimoniais ("holdings"),
seguidas da doação das correspondentes participações societárias, com ou sem
reserva de usufruto, em favor de herdeiros do doador.
Estas sociedades
normalmente possuem o objetivo de gerir e controlar, de forma mais eficiente, o
patrimônio imobiliário das pessoas físicas, otimizando recursos, serviços, bem
como facilitando o compartilhamento de despesas e receitas entre as partes
envolvidas. Não são sociedades comerciais, como é o caso das incorporadoras e
construtoras, cujos objetivos são ligados ao desenvolvimento de "produtos" imobiliários
direcionados ao mercado consumidor.
Na legislação atual,
a incidência do ITBI sobre atos de conferência de bens imóveis para sociedades
patrimoniais, pode ser afastada, caso fique demonstrado que as receitas
auferidas pela sociedade não decorrem, preponderantemente, de atividades
imobiliárias.
Caso essas
sociedades patrimoniais sejam equiparadas às sociedades imobiliárias, ou seja,
sociedades que possuem em seus objetivos sociais as atividades de incorporação
e construção de empreendimentos e a sua correspondente comercialização ou
locação no mercado, haverá um incremento da tributação atual sobre as suas
atividades, pois afetará a tributação dos resultados auferidos com locação ou
venda eventual de ativos.
A possível
equiparação entre entidades notadamente distintas poderia gerar uma elevação da
carga tributária, bem como de possíveis controvérsias fiscais, tanto as
relativas à incidência do IBS (imposto agregado sobre serviços), como à
incidência do ITBI (imposto sobre a transmissão de bens imóveis) nos atos de
conferência de bens ao capital social.
Considerações finais
Os casos acima
ilustram um cenário incerto e preocupante.
A regulamentação da
reforma tributária, que ainda está pendente de aprovação, definirá o alcance
das novas normas e os efeitos positivos e negativos que produzirão sobre as
empresas, afetando significativamente as estruturas societárias de planejamento
patrimonial e sucessório.
Em vista das
considerações acima, dependendo da magnitude e da natureza dos ativos e
interesses a serem contemplados, nos parece oportuno revisar e traçar novas
estratégias societárias e contratuais, mais adequadas ao novo cenário
normativo, diversificando riscos e tornando mais eficiente o resultado
econômico global do planejamento societário, patrimonial e sucessório.
Além da revisão dos
planejamentos realizados no passado, a adoção de novas técnicas, como a
celebração de contratos de seguro e a aquisição de ativos ou direitos em outras
jurisdições, podem se mostrar úteis, quando usadas em conjunto, para assegurar
a proteção e a preservação, de forma eficaz, do legado empresarial e do
patrimônio das partes envolvidas.
[1] Projetos de
Lei Complementar 68 e 108/2024
[2] Projeto de
Lei 7/2024, que altera a Lei nº 10.705/2000, instituindo a progressividade do
ITCMD no Estado de São Paulo.
[3] PLP
108/2024, art. 160, parágrafo 5º, inciso I.
[4] Ibidem. Cf.
art. 160, parágrafo 3º.
Autora: Ana Lúcia Alves da Costa Arduin é advogada em
São Paulo, mestre em Direito Comercial e Especialista em Direito Empresarial
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), membro do
Instituto de Direito Societário Aplicado (IDSA) e formação em Governança
Corporativa pelo IGBC e em mediação pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP).