O PLP 108/24 propõe regras anti-abuso para o ITCMD,
desafiando a definição de direitos privados e exigindo justificativas negociais
para distribuições de lucros desproporcionais.
Introdução
A distribuição
desproporcional de dividendos é o pagamento de lucros - conforme sua designação
mais usual - feito de maneira assimétrica às participações dos sócios ou
acionistas no capital social. Como regra, a participação dos sócios ou
acionistas nos lucros da sociedade é diretamente proporcional às suas quotas ou
ações. No entanto, a distribuição desproporcional é admitida por lei, desde que
devidamente pactuada.
Nas sociedades
limitadas, a permissão é conferida através da sua regência supletiva pelas
normas da sociedade simples, que, através do art. 1.007 do CC, faculta a
estipulação sobre a participação dos sócios nos lucros de maneira
desproporcional às suas respectivas quotas. De outro lado, nas sociedades
anônimas, embora o pagamento do dividendo tenha que observar o número de ações
atribuídas ao seu titular na data do ato de sua declaração1, é possível a
implementação da distribuição desproporcional mediante a emissão de ações
preferenciais, geralmente pela previsão de prioridade na distribuição de
dividendos fixos ou mínimos facultada pelo art. 17, inciso I, da lei 6.404/76,
que dispõe sobre as sociedades por ações.
Nesse sentido, na
esfera societária, não há maiores dificuldades na previsão da distribuição
desproporcional de dividendos.
Ocorre, todavia, que
a assimetria nem sempre é bem-vista sob o olhar arrecadatório do fisco. Isso
porque, a rigor, a legislação do Imposto de Renda (art. 10, da lei 9.249/95)
estabelece que são isentos os lucros e dividendos distribuídos por pessoas
jurídicas previamente já tributadas com base no lucro real, presumido ou
arbitrado. Porém, há um movimento arrecadatório para desqualificar a
distribuição desproporcional, feita sem a observância de critérios rígidos do
conceito de dividendos regulares.
No Carf, o Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais, órgão integrante da estrutura do Ministério
da Fazenda, que tem por finalidade julgar recursos que versem sobre a aplicação
da legislação referente a tributos administrados pela Receita Federal do
Brasil, os casos sobre a distribuição desproporcional são frequentes.
A despeito das
recorrentes discussões no contencioso tributário, muito tem se falado sobre PLP
108/24, destinado à regulamentação da reforma tributária promovida pela EC
132/23, no ponto em que equipara à doação, para fins de incidência
do ITCMD - Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de
Quaisquer Bens ou Direitos, os atos societários que resultem em benefícios
desproporcionais para sócio ou acionista praticados por liberalidade e sem
justificativa negocial passível de comprovação, incluindo distribuição
desproporcional de dividendos.
Embora, à primeira
vista, possa-se afirmar que a regulamentação proposta visa ampliar o alcance da
definição de doação com o objetivo meramente arrecadatório, em verdade, é
preciso atentar que a doação também é isenta de Imposto de Renda (art. 6º, XVI,
da lei 7.713/88).
Deste modo, afora a
questionável constitucionalidade da medida, por atentar contra a Liberdade
Econômica e a Livre Iniciativa, caso a lei federal venha a ser aprovada da
forma proposta, haverá uma sensível limitação do âmbito de atuação fiscal da
Receita Federal. As possibilidades serão as seguintes: (i) distribuição
proporcional à participação societária isenta de IR; (ii) distribuição
desproporcional regular também isenta de IR; e (iii) distribuição desproporcional
irregular entre pessoas vinculadas será equiparada à doação, sujeita ao ITCMD,
mas isenta de IR.
Portanto, o embate
arrecadatório que envolve a distribuição desproporcional de dividendos, que
hoje já existe entre isenção versus incidência de IR (com alíquotas de até
27,5%), passará a ser entre isenção total versus incidência de ITCMD (alíquota
de até 8%). No mais, sairá de cena a Receita Federal, e passará a ter
competência as secretarias estaduais de fazenda, que, ao nosso ver, não dispõem
dos dados necessários para fiscalizar ativamente tais operações, já que as
pessoas físicas não são obrigadas a prestar informações periódicas ao Fisco
Estadual. Estes não têm acesso imediato aos dados da DAA (Declaração de Ajuste
Anual do Imposto de Renda) e terão grande dificuldade de monitorar eventuais
"distribuições desproporcionais irregulares".
Indo além,
entendemos que o PLP pode trazer alguma segurança jurídica aos empresários
brasileiros. Ora, a distribuição desproporcional de lucros já não se encontra
totalmente isenta de tributos e, conforme entendimento da Receita Federal e
precedentes do Carf, o pagamento assimétrico demanda o cumprimento de
requisitos determinados que, se não observados, poderá sujeitar a distribuição
à incidência do imposto de renda e da contribuição previdenciária sobre a
parcela dos lucros que exceder a proporção das participações societárias.
Desse modo, no
intuito de contribuir para este importante debate, propomos, por meio destas
breves notas, oferecer outra perspectiva sobre o e a proposta de equiparar a
distribuição desproporcional de dividendos à doação, para fins de incidência do
ITCMD. Em que pese a aparente natureza arrecadatória da regulamentação, é
preciso considerar os potenciais ganhos em termos de segurança jurídica para os
empresários brasileiros, já que a doação é isenta de Imposto de Renda.
A distribuição
desproporcional e seus requisitos atuais
Como regra geral, a
distribuição de lucros deve ser feita de maneira proporcional à quantidade de
quotas ou ações que cada sócio ou acionista detém na sociedade. Contudo, a
desproporcionalidade, sendo ela excepcional - apesar de habitual na prática -,
exige o atendimento de certos requisitos para a sua implementação. A não
observância desses requisitos, no caso concreto, pode acarretar consequências
societárias e fiscais para a sociedade e seus sócios.
Cabe esclarecer que,
nas sociedades anônimas, a distribuição de dividendos é sempre proporcional à
quantidade de ações detidas pelo acionista. É como indica as disposições dos
arts. 205 e 186, § 2º, da lei 6.404/76. Todavia, o pagamento desproporcional -
como objetivo - poderá ser levado a cabo nas companhias através da emissão de
ações preferenciais com a prioridade na distribuição de dividendos fixos ou
mínimos, conforme disposição do art. 17, inciso I, da lei 6.404/76. Este
instrumento é, por vezes, utilizado na prática societária para a implementação
de regras específicas na distribuição de dividendos aos acionistas, resultando
na desproporcionalidade no pagamento dos lucros sociais. Nesse contexto, os
requisitos adiante relacionados - exceto pela estipulação expressa, uma vez que
as vantagens das ações preferenciais demandam previsão estatutária2 - não
se relacionam com as sociedades anônimas.
Quanto aos requisitos
a serem observados, a sociedade apenas poderá lançar mão da distribuição
desproporcional se possuir expressa previsão no seu contrato social para
autorizar o seu pagamento de modo diverso às participações dos sócios, a teor
do que dispõe o art. 1.007 do CC, que se encontra entre as disposições das
sociedades simples. Assim, a distribuição desproporcional de lucros é permitida
nas sociedades limitadas que se regem supletivamente pelas normas das
sociedades simples3. Exige-se, portanto, previsão expressa no contrato social,
requisito formal inerente ao próprio ato constitutivo, que deve dispor sobre a
participação dos sócios nos lucros e nas perdas (arts 997, VII, e 1.054 do
CC)4.
Em reforço ao que
prescrevem os dispositivos do CC, a Receita Federal do Brasil, por meio da
solução de consulta DISIT/ SRRF06 46/10, após instada a se manifestar sobre a
incidência de imposto de renda e contribuições previdenciárias sobre a
distribuição desproporcional, assinalou que estão abrangidos pela isenção os
lucros distribuídos aos sócios de forma desproporcional à sua participação no
capital social, desde que tal distribuição esteja devidamente estipulada pelas
partes no contrato social, em conformidade com a legislação societária.
Conforme esclarecido pela Receita Federal, a dita conformidade com a legislação
societária se verifica pela observância dos seguintes preceitos e dispositivos
do CC: (i) previsão sobre o modo de distribuição dos lucros no contrato social
(arts 997, IV; 1.007; e 1.054), (ii) respeito ao direito essencial do
sócio de participar dos lucros (art. 1.008), e (iii) regência supletiva da
sociedade limitada pelas normas da sociedade simples (art. 1.053).
No mesmo sentido, o
Carf, no seu entendimento dominante5, também exige a previsão contratual para
autorizar o pagamento de dividendos de forma assimétrica em relação ao capital
social, como demonstram os seguintes julgados:
ASSUNTO: IRPF
- IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA FÍSICA
Ano-calendário:
2011, 2012, 2013, 2014
DISTRIBUIÇÃO DE
LUCROS DESPROPORCIONAL.
Somente admitida se
estiver disposta no contrato social da empresa [...].
(Proc.
11516.723215/2016-84, Acórdão 2402-010.872, de 10/11/22).
ASSUNTO: IRPF
- IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA FÍSICA
Ano-calendário: 2005
DISTRIBUIÇÃO
DESPROPORCIONAL DE LUCROS.
A despeito da falta
de vedação legal à distribuição desproporcional de lucro aos sócios, tal
possibilidade deve constar do contrato social da empresa. No caso de expressa
previsão contratual no sentido de que a distribuição dos lucros deve observar a
proporcionalidade das cotas detidas por cada sócio, incide tributação sobre a
parcela do lucro distribuída que exceder ao montante que seria devido ao sócio
pela sua participação proporcional, sendo irrelevante a existência de ajustes
particulares não averbados. [...].
(Proc.
10380.013096/2009-49, Acórdão 2201-008.959, de 15/07/21).
ASSUNTO: IRPF
- IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA FÍSICA
Ano-calendário: 2008
DISTRIBUIÇÃO DE
LUCROS DESPROPORCIONAL À PARTICIPAÇÃO SOCIETÁRIA. LIBERDADE DE PACTUAÇÃO.
PERMISSÃO EXPRESSA NO CONTRATO SOCIAL.
Não há vedação legal
no que se refere à distribuição desproporcional de lucros em relação à
participação social, quando o contrato social for claro ao dispor sobre tal
distribuição. Havendo contabilidade que cumpre com as formalidades intrínsecas
e extrínsecas e sendo a apuração de lucro regular e contabilizada, não há que
se falar em incidência de imposto de renda em face dos valores distribuídos
como lucro. [...].
(Proc.
19515.723028/2013-70, Acórdão 2402-009.350, de 12/01/21).
A partir do exame
dos precedentes do Carf, conclui-se ainda pela necessidade de cumprimento de
outros requisitos, notadamente a existência de lucro apurado em demonstração de
resultado e a manutenção de contabilidade regular pela sociedade, com o
cumprimento de suas formalidades intrínsecas e extrínsecas. Nesse sentido:
DISTRIBUIÇÃO DE
LUCROS DESPROPORCIONAL À PARTICIPAÇÃO SOCIETÁRIA. SOCIEDADE CIVIL DE PRESTAÇÃO
DE SERVIÇOS PROFISSIONAIS. EXPRESSA PREVISÃO CONTRATUAL. POSSIBILIDADE.
INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO LEGAL. DISCRIMINAÇÃO ENTRE PRÓ-LABORE E LUCRO. NÃO
INCIDÊNCIA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA.
Não há vedação legal
no que se refere à distribuição desproporcional de lucros em relação à participação
social, nas sociedades civis de prestação de serviços profissionais relativos
ao exercício de profissões regulamentadas, quando o contrato social for claro
ao dispor sobre tal distribuição. Havendo contabilidade que cumpre com as
formalidades intrínsecas e extrínsecas e sendo a apuração de lucro regular e
contabilizada, não há que se falar em incidência de contribuições
previdenciárias em face dos valores distribuídos como lucro, com mais razão
ainda quando houver
discriminação entre
a remuneração decorrente do trabalho (pró-labore) e a proveniente do capital
social (lucro) e tratar-se de resultado já apurado por meio de demonstração do
resultado do exercício (DRE).
(Proc.
19515.721101/2014-50, Acórdão 2402-006.980, de 13/02/19).
Diante do exposto,
com fundamento no entendimento da Receita Federal, firmado na solução de
consulta DISIT/SRRF06 46/10, e nos precedentes do Carf, verifica-se que, caso
não sejam observadas as condições para sua implementação, a distribuição
desproporcional de dividendos pode estar sujeita à incidência de Imposto de
Renda (e contribuição previdenciária), a título de remuneração de outra
natureza, como pró-labore.
Assim, o PLP 108/24
não surpreende pela tributação em si, mas porque substitui a incidência de
tributos federais mais onerosos (que podem chegara a 50%) pelo ITCMD, que é
estadual e tem alíquota máxima de 8%. Além disso, a proposta introduz um novo
requisito de validade para a distribuição desproporcional: a justificativa
negocial passível de comprovação, que é um aspecto até então não explorado nos
julgados do CARF.
Em qualquer caso, a
distribuição desproporcional de dividendos permanecerá legítima e disponível às
sociedades, de maneira isenta de tributos - ainda -, desde que atendidos os
requisitos comentados. Por um raciocínio inverso, caso os sócios optem por
realizar distribuições desprovidas de propósito negocial, quando se tratar de
uma sociedade entre pessoas vinculadas, sob a ótica tributária, haverá uma
equiparação à doação, também isenta de tributos federais (apenas sujeita ao
ITCMD), e amparada agora por lei federal.
O PLP 108/24 e a
exigência de justificativa negocial
O PLP 108/24 faz
parte do conjunto normativo destinado a regulamentar a recente reforma
tributária aprovada pela EC 132/23.
Embora seu principal
objeto seja o IBS - Imposto sobre Bens e Serviços, o projeto também
aborda a regulamentação do ITCMD. Nesse particular, o PLP 108/24 busca
equiparar, para fins de incidência do ITCMD, os atos societários que resultem
em benefícios desproporcionais para sócio ou acionista praticados por
liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação, incluindo
distribuição desproporcional de dividendos. A previsão está no art. 160, § 5º,
inciso I, do PLP 108/24, conforme transcrito abaixo:
Art. 160. [...].
§ 5º. Consideram-se,
ainda, como doações, para fins da incidência do ITCMD, em transmissões entre
pessoas vinculadas:
I - os atos
societários que resultem em benefícios desproporcionais para sócio ou acionista
praticados por liberalidade e sem justificativa negocial passível de
comprovação, incluindo distribuição desproporcional de dividendos, cisão
desproporcional e aumento ou redução de capital a preços diferenciados; e
[...].
A doação, por
definição legal, é o contrato pelo qual uma pessoa, por liberalidade, transfere
do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra6. As situações previstas no
§ 5º do art. 160 do PLP 108/24 se referem exclusivamente a operações entre
pessoas vinculadas7, realizadas por liberalidade e que resultem em benefícios
ou vantagens sem justificativa negocial comprovável. O objetivo do legislador,
nesse ponto, é qualificar determinados atos e operações praticados entre
pessoas vinculadas que, feitos por liberalidade e sem justificativa negocial,
seriam, na verdade, doações. Abaixo, segue o trecho da exposição de motivos do
PLP 108/24 que trata sobre o comentado § 5º:
O § 5º do art. 155
introduz normas específicas anti-abuso, com objetividade e previsibilidade para
o contribuinte e para o ente tributante. Essas normas estão limitadas a
transmissões entre pessoas vinculadas e versam sobre situações que, na
realidade econômica, consistem em doações. As situações, entre pessoas
vinculadas, de "atos societários que resultem em benefícios
desproporcionais para sócio ou acionista praticados por liberalidade e sem
justificativa negocial passível de comprovação"; e "perdão de dívida
por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação"
podem corresponder a negócios jurídicos praticados pelo contribuinte com
qualificação jurídica atribuída por ele incorreta, correspondendo, na
realidade, a verdadeiras doações.
Nesse aspecto, a
medida tem legalidade e constitucionalidade bastante questionáveis, uma vez que
altera "a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e
formas de direito privado [.] para definir ou limitar competências
tributárias", em clara afronta ao art. 110 do Código Tributário Nacional8,
além de exigir demonstração de "propósito negocial" para arranjos
empresariais. Conforme prescreve a declaração de Direitos de Liberdade
Econômica9, que detalha a proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de
atividade econômica, nos termos dos arts. 1º, IV, e 170, da CF/88,
interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos
contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação
pública sobre atividades econômicas privadas.
Nesse sentido, não é
permitido à lei tributária alterar um conceito de direito privado para ampliar
a competência do ITCMD, e, sobretudo, adotando como premissa a ausência de
boa-fé do contribuinte, ou seja, impondo a demonstração de um propósito
negocial.
Importante rememorar
que não há incidência tributária sobre a distribuição desproporcional de lucros
em si. Como ocorre na sistemática atual - a partir do que foi exposto no último
tópico -, se realizada sem a observância de critérios mínimos para a sua
realização, a distribuição desproporcional de lucros pode estar sujeita a
tributos. Além disso, independentemente da nova previsão, o fisco já possui a
prerrogativa de desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a
finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo10. Dessa
forma, o PLP 108/24 apresenta alterações substanciais em relação à prática atual:
a exigência de uma justificativa negocial passível de comprovação e a
incidência do ITCMD - tributo de competência dos estados - em substituição ao
imposto de renda e à contribuição previdenciária, que são de competência da
União.
Sobre a
justificativa negocial passível de comprovação, realmente, o PLP 108/24
apresenta complexo requisito para demonstração diante do seu alto grau de
subjetividade. Não existe uma definição uniforme para os conceitos de propósito
ou justificativa negocial em operações societárias. Geralmente, o fisco pode
entender pela ausência de propósito negocial quando não houver motivação além
da redução da carga tributária. Assim, na distribuição desproporcional de
dividendos, algum fundamento negocial ou econômico, passível de comprovação,
deve anteceder sua aplicação.
Inclusive, apesar de
a repercussão penal não ser o foco da presente análise, ao normalizar
distribuições de lucro sem propósito negocial (bastando que se pague o ITCMD),
abre-se um flanco perigoso para o combate à lavagem de dinheiro. Por exemplo,
uma pessoa física poderá adquirir uma participação societária de baixo valor e
sem histórico e, em pouco tempo, passar a receber enormes montas de dinheiro, a
título de distribuição desproporcional de dividendos, mediante regular
pagamento da tributação estadual sobre doações.
Voltando ao cerne
societário, entendemos que as sociedades caracterizadas como de pessoas, nas
quais prevalecem os atributos individuais dos sócios sobre sua contribuição no
capital para o desenvolvimento do objeto social, como nas sociedades de
prestação de serviços profissionais, terão melhor sorte para demonstrar, por
meio de evidências plausíveis, a justificativa negocial para a realização da
distribuição desproporcional dos lucros sociais. Nas sociedades de pessoas, as
características pessoais dos sócios têm impacto direto na realização do objeto
social. Dessa forma, a distribuição desproporcional pode ser estipulada como
justa contrapartida pelos lucros exclusiva ou preponderantemente obtidos pela
sociedade em razão das respectivas contribuições individuais dos sócios, como,
por exemplo, a produtividade, o comprometimento e o empenho nos serviços
prestados.
Por outro lado, nas
sociedades de capital, em que a capacidade de contribuição ao capital (investimento)
do sócio se sobrepõe às suas qualidades individuais, a justificativa negocial
torna-se ainda mais complexa. Se, nessas sociedades, os atributos pessoais dos
sócios são pouco relevantes e o foco reside na sua capacidade de investimento,
a distribuição desproporcional de lucros carece de fundamento econômico,
especialmente porque, nesses casos, o lucro distribuído tem como finalidade
remunerar o capital investido pelo sócio. Não se justifica uma distribuição
desigual de lucros se, por exemplo, as contribuições dos sócios no capital
social forem idênticas.
Nesse contexto,
passando a ser legalmente exigida uma justificativa negocial, o pagamento de
lucros de maneira desproporcional às participações no capital social deve ser
realizado a partir de algum fundamento ou critério econômico passível de
demonstração objetiva. A sociedade que adotar a distribuição desproporcional de
dividendos deve ter cautela na fixação de critérios objetivos, economicamente
justificáveis, para afastar a incidência tributária proposta no PLP 108/24.
Conclusão
A distribuição
desproporcional de lucros é faculdade conferida pela legislação societária como
maneira de acomodar adequada participação dos sócios ou acionistas nos
resultados da sociedade, a partir dos seus acertos privados sobre a partilha
dos ganhos auferidos no desenvolvimento do objeto social. O pagamento de
lucros, por proteção legal, (ainda) está isento de tributos. Atualmente, há a
incidência de tributos federais na distribuição desproporcional de dividendos
apenas se não forem atendidos certos requisitos, a saber: (i) previsão sobre o
modo de distribuição dos lucros no contrato social, (ii) respeito ao direito
essencial do sócio de participar dos lucros, (iii) regência supletiva da
sociedade limitada pelas normas da sociedade simples, (iv) existência de lucro
apurado em demonstração de resultado; (v) manutenção de contabilidade regular
pela sociedade, com o cumprimento de suas formalidades intrínsecas e
extrínsecas.
Apesar da proposta
legislativa, a distribuição desproporcional de lucros continuará sendo legítima
e isenta de tributos, desde que, além do cumprimento das normas da legislação
societária e princípios contábeis, não seja realizada por liberalidade entre as
partes e sem uma justificativa negocial passível de comprovação. Embora a
demonstração da justificativa negocial esteja sujeita a elementos subjetivos, a
indicação legislativa de que uma operação pode ser tributada se certas
condições não forem observadas proporciona previsibilidade ao contribuinte. Assim,
ele pode decidir com clareza se deseja realizar determinadas ações,
considerando os possíveis impactos tributários.
Deve-se destacar
que, atualmente, a distribuição desproporcional feita em desacordo com as
condições exigidas pelo fisco pode sofrer a incidência de imposto de renda e
contribuição previdenciária, ambos de competência da União. Se aprovado o PLP
108/24, a incidência será do ITCMD, que é de competência dos estados. As
diferentes regulamentações, aplicações e interpretações de cada unidade
federativa sobre o mesmo objeto poderão ser consequências negativas da
proposição. No entanto, se comparadas as alíquotas aplicáveis para cada tributo
mencionado, o ITCMD, atualmente limitado a 8%, leva larga vantagem sobre a
atual incidência do imposto de renda e contribuição previdenciária, que,
somada, pode chegar perto de 50%, conforme o caso.
Cabe agora
acompanhar com atenção os debates e o andamento do processo legislativo
relativo ao PLP 108/24 até sua eventual aprovação. Caso seja aprovado, não se
espera que a equiparação de atos e operações societárias à doação - para fins
de incidência do ITCMD -, quando realizados entre partes vinculadas, sem
justificativa econômica objetiva, altere significativamente as práticas
atualmente consolidadas para a distribuição desproporcional de dividendos de
maneira regular e isenta. O pagamento desproporcional de lucros, quando
realizado em conformidade com os critérios estabelecidos, continuará sendo um
mecanismo legítimo de partilha dos resultados da sociedade, conforme os acordos
firmados entre sócios ou acionistas.
1 Lei 6.404/1976:
"Art. 205. A companhia pagará o dividendo de ações nominativas à pessoa
que, na data do ato de declaração do dividendo, estiver inscrita como proprietária
ou usufrutuária da ação."
2 Lei 6.404/1976:
"Art. 17. [...]. § 2º. Deverão constar do estatuto, com precisão e
minúcia, outras preferências ou vantagens que sejam atribuídas aos acionistas
sem direito a voto, ou com voto restrito, além das previstas neste artigo.
3 CC: "Art.
1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas
da sociedade simples."
4 "Art. 997. A
sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que,
além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará: [...] VII - a
participação de cada sócio nos lucros e nas perdas; [...]."; "Art.
1.054. O contrato mencionará, no que couber, as indicações do art. 997, e, se
for o caso, a firma social."
5 No ponto,
registra-se que o entendimento firmado no Acórdão 2102-01.496, de 24/08/11,
dispensa a exigência da previsão contratual por entender que a legislação
tributária não autoriza a tributação sobre a parcela dos lucros que exceder a
distribuição proporcional, sendo a lei fiscal silente quanto à forma de
distribuição.
6 Art. 538.
Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere
do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.
7 Art. 160. [...]. §
6º Para fins do disposto no § 5º, considera-se pessoa vinculada:
a pessoa física que
for cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, até o terceiro grau,
de outra pessoa física;
a pessoa jurídica
cujos diretores ou administradores forem cônjuges, companheiros ou parentes,
consanguíneos ou afins, até o terceiro grau, de pessoa física; ou
a pessoa jurídica da
qual pessoa física for sócia, titular ou cotista.
8 Art. 110. A lei
tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos,
conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente,
pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis
Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar
competências tributárias.
9 Conquanto a lei
13.874/2019, que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, não
seja aplicável diretamente ao direito tributário, vale o registro de que o que
o PLP 108/24 faz é alterar a legislação civil e societária, equiparando à
doação operações que foram pactuadas de forma diversa. Ademais, a Livre
Iniciativa tem valor constitucional por si só.
10 Art. 116. Salvo
disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e
existentes os seus efeitos: [...].
Parágrafo único. A
autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos
praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do
tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária,
observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
Autores:
Leonardo Maciel, advogado e Sócio Gestor da área de
Direito Empresarial de Queiroz Cavalcanti Advocacia. É Bacharel em Direito pela
Universidade Católica de Pernambuco e LL.M. em Direito Corporativo pelo
Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec).
Rodrigo Accioly, advogado e Sócio Gestor da área de
Direito Tributário de Queiroz Cavalcanti Advocacia. É Bacharel em Direito pela
Universidade Federal de Pernambuco e Pós-graduado em direito tributário pelo
Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Também é Consultor Legislativo da
Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco.
Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/417835/desproporcao-de-dividendos-e-nova-perspectiva-sobre-o-plp-108-24