A proposta de adoção
do split payment na tributação do consumo, caso aprovada pelo
Congresso Nacional na forma em que está, fará com que o poder público tenha de
incorrer em gastos bilionários absolutamente incompatíveis com a situação em
que se encontram as contas públicas, tão propalada pelo governo.
Na tomada dessa
decisão, portanto, o Congresso Nacional deverá ponderar, com extremo vagar, a
relação entre custos e benefícios do split payment, bem como todos os
desafios que terão de ser superados para a sua implementação.
O parâmetro
internacional
Desde o início dos
debates relativos à proposta de reforma tributária veiculada pela PEC 45/19, os
seus autores sempre sustentaram a necessidade da sua implementação no
desalinhamento existente entre o sistema de tributação do consumo nacional
então em vigor com o do resto do mundo.
Da mesma forma, ao
incorporarem o IVA dual no bojo da PEC 45/19, originalmente previsto na PEC
110/19, os seus idealizadores novamente se valeram intensamente das
experiências supostamente bem-sucedidas dos dois únicos países que o adotaram
(Canadá e Índia) para justificar e regulamentar a sua adoção.
Portanto, tanto na
elaboração da PEC quanto nos debates ocorridos na tramitação no Congresso
Nacional que culminaram na promulgação da Emenda Constitucional 132/23, a
experiência internacional sempre foi parâmetro absoluto no esforço de
convencimento de que a reforma tributária no sistema brasileiro era inevitável.
Se é essa a baliza
adotada no exame da adequação de regras relativas à tributação do consumo no
País, torna-se também mandatório que os mesmos parâmetros sejam utilizados na
avaliação de implementação do split payment. É imperioso, portanto, que se
verifique a experiência vivida pelos demais países que o adotaram,
para que se avalie o quanto acertada é a sua implementação no Brasil.
Nesse exame, a
primeira constatação a que se chega é a de que foram muito poucos os países que
adotaram essa sistemática. De fato, ao que saibamos, dos 175 países que
implementaram o IVA na tributação do consumo, apenas 13 [1] optaram
por utilizar essa sistemática, grande parte deles localizados no continente
europeu [2] e na América Latina [3].
Nessa modalidade de
pagamento, estabelece-se que, na liquidação de cada transação tributada pelo
IVA, o valor pago pelo adquirente ao fornecedor seja automaticamente dividido:
(a) a primeira parte, concernente ao preço ajustado da operação, é destinada ao
fornecedor; e (b) a segunda parte, correspondente ao valor dos tributos devidos
na operação, é imediatamente encaminhada aos cofres públicos.
A fundamentação da
adoção desse regime apresentada pelos idealizadores da reforma sempre foi a de
que ele seria eficiente, como de fato é, no combate a fraudes relativas ao
pagamento do IVA, como a Carousel Fraud e a Missing Trader Intra-Community
(MTIC).
Nessas fraudes,
empresas fictícias são criadas com o único objetivo de promover evasão fiscal
em operações intracomunitárias tributadas pelo IVA. Posteriormente, tais
empresas se apropriam indevidamente do valor do IVA incidente nas operações
subsequentes e, em seguida, simplesmente desaparecerem, causando prejuízos ao
Fisco [4].
Com a adoção
do split payment, essas fraudes são em tese eliminadas, uma vez que o
recolhimento do imposto deixa de depender da discricionariedade do
contribuinte. O valor devido é automaticamente direcionado aos cofres públicos
no momento da liquidação de cada operação tributada.
Apesar desse
louvável efeito, relativo à utilização do split payment no combate a
fraudes, dos seis países que adotavam esse método de recolhimento do IVA no
continente europeu, um terço deles (Bulgária e Romênia), optaram por
abandoná-lo devido à sua complexidade e aos significativos desafios que ele
acarretava [5].
A União Europeia e
o split payment
Essas mesmas
desvantagens, referidas no parágrafo anterior, levaram a União Europeia a
encomendar um estudo à Deloitte para avaliar os prós e contras da adoção do
regime pelos países-membros, cujas conclusões foram muito esclarecedoras [6].
Os principais prós
apontados nesse estudo foram os seguintes
(1) Redução da
Fraude e da Evasão Fiscal - o mecanismo de split payment é
considerado medida eficaz para combater fraudes relacionadas ao IVA, como a
fraude do missing trader, ao eliminar a possibilidade de fornecedores
cobrarem o IVA e desaparecerem sem repassá-lo às autoridades fiscais;
(2) Melhoria na
Coleta do IVA - ao remover a responsabilidade do fornecedor pelo pagamento do
IVA, o mecanismo pode melhorar a eficiência na coleta do imposto, garantindo
que os valores devidos sejam direcionados diretamente aos cofres públicos,
Os contras, estes
outros:
(1) Pressão Sobre o
Fluxo de Caixa - pequenas empresas, que geralmente têm margens muito apertadas,
ou mesmo as de maior porte, podem ser seriamente afetadas com a separação
automática do IVA, seja pela redução da sua liquidez, seja pela quebra do seu
fluxo de caixa;
(2) Complexidade na
Implementação - a adoção do split payment requer mudanças
significativas nos sistemas de pagamento e faturamento, além de treinamento das
partes envolvidas, o que representa significativo desafio para empresas e
autoridades fiscais;
(3) Aumento dos
Custos Administrativos - a implementação do split payment pode
resultar em custos administrativos significativos (na ordem de bilhões) para
empresas e poder público, especialmente se o mecanismo for aplicado em larga
escala;
(4) Impacto do Split
Payment no Aumento da Informalidade - a implementação do mecanismo pode
levar algumas empresas, especialmente as pequenas e médias, a operar fora do
sistema formal (exatamente o contrãrio do que se quer evitar), tendo em vista
os custos adicionais relacionados à adaptação de seus sistemas e conformidade
com o regime.
Levando em
consideração, entre outros, os prós e contras acima referidos, o relatório
conclui que, embora o split payment possa reduzir a evasão fiscal no
âmbito do IVA (Vat gap), os benefícios, claramente, ficam muito aquém dos
custos associados, especialmente considerando a quebra do fluxo financeiro das
empresas, a complexidade do sistema e os desafios administrativos e financeiros
envolvidos.
O split payment na
reforma tributária
Na reforma
tributária, por sugestão dos seus idealizadores, o split payment foi
previsto na EC 132/2023 por meio da inserção do Artigo 156-A, §5º, inciso II,
no texto constitucional:
"Art. 156-A
(.)
§5º. Lei
complementar disporá sobre:
(.)
II - o regime de
compensação, podendo estabelecer hipóteses em que o aproveitamento do crédito
ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento do imposto incidente
sobre a operação com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com
serviços, desde que:
a) o adquirente
possa efetuar o recolhimento do imposto incidente nas suas aquisições de bens
ou serviços; ou
b) o recolhimento do
imposto ocorra na liquidação financeira da operação;" (grifos do
colunista)
Assim, ao lado da
risível previsão de permitir ao adquirente de bens e serviços recolher, ele
próprio, o imposto não pago pelo fornecedor para poder se creditar do
respectivo valor e compensá-lo com os tributos devidos em suas operações
futuras (quem em sã consciência faria isso?!), surge o split payment na
liquidação financeira da operação como alternativa a ser prevista em lei
complementar para viabilizar uma das maiores excrescências dessa reforma
tributária, inexistente em qualquer outro lugar no planeta: o condicionamento
do aproveitamento do crédito do imposto devido pelo elo anterior da cadeia ao
seu efetivo recolhimento pelos respectivos fornecedores.
Para a elaboração
dos projetos de lei complementar necessários à implementação das regras de
incidência do IBS e da CBS (incluindo aquelas relacionadas à implementação
do split payment), representantes das três esferas da Federação se
reuniram em 19 grupos de trabalho, sem que aqueles que "pagam a conta" (os
representantes de entidades do setor privado) tivessem assento nessas
discussões de forma efetiva. O resultado dessas reuniões foram os enviesados
PLPs 68/24 e 108/24.
O split payment foi
regulado pelo PLP 68/68, nos seus artigos 51 a 56. Nesses dispositivos propostos,
previram-se três diferentes modalidades:
(1) o split
payment (supostamente) "inteligente", previsto nos §§ 3º e 4º do artigo
52, pelo qual, no momento da liquidação financeira da operação, apura-se o
valor devido pelo sujeito passivo, já considerando os créditos relativos às
operações realizadas no período corrente, bem como eventuais saldos credores
acumulados de períodos de apuração anteriores;
(2) o split
payment simplificado, disciplinado no artigo 53, que é baseado em
alíquotas presumidas e se aplica, de forma facultativa, às vendas realizadas
para adquirentes que não sejam contribuintes do IBS/CBS; os valores recolhidos
dessa forma são utilizados para quitar os débitos do período de apuração; o
Comitê Gestor do IBS e a Receita Federal do Brasil (RFB) deverão transferir ao
fornecedor, em até 3 dias úteis após a conclusão da apuração, os valores
antecipados por meio do split payment simplificado que eventualmente
excedam o montante devido pelo sujeito passivo, apurado com base nos
créditos efetivamente existentes no período; e
(3) por fim, o split
payment manual, que não é propriamente um sistema de dessa natureza, mas
mero pagamento dos tributos diretamente pelo adquirente da mercadoria, conforme
previsto no artigo 56; nesse regime, não há um terceiro intermediando a
liquidação financeira entre o fisco e o adquirente; ele é aplicável somente aos
casos em que o pagamento for efetuado por meio de instrumentos que não permitam
a segregação de valores, como dinheiro em espécie ou cheque; sendo o adquirente
contribuinte regular do IBS/CBS, poderá recolher o tributo devido pelo
fornecedor e, em seguida, creditar-se do valor correspondente (essa é aquela
opção risível a que antes nos referimos).
O split payment e
os regimes de caixa e competência
Qualquer que seja a
modalidade de split payment adotada, haverá danosa quebra de fluxo
financeiro das empresas contribuintes (demonstrada pelo referido estudo da
Deloitte encomendado pela União Europeia), bem como incontornável ofensa ao
princípio da não cumulatividade, conforme sejam definidos os regimes (de caixa
ou de competência) aplicáveis aos lançamentos de créditos e débitos.
De fato, caso
adotado o regime de caixa para ambos os lançamentos, haverá indiscutível quebra
da neutralidade nas compras a prazo de mercadorias vendidas à vista, em
decorrência do descompasso temporal entre os respectivos lançamentos de
créditos e débitos. Isso porque, nessas circunstâncias, o lançamento integral
do débito ocorrerá, de uma só vez, quando da venda realizada e recebimento do
respectivo preço pelo contribuinte, e os seus créditos somente serão lançados
em momento futuro, no pagamento, pelo mesmo contribuinte, das parcelas futuras
devidas ao fornecedor.
Por sua vez, caso o
regime adotado seja o de competência tanto para créditos quanto para débitos,
haverá evidente comprometimento do cash flow do contribuinte nas
compras à vista de mercadorias vendidas a prazo. De fato, nesse cenário,
o débito do imposto será lançado sem que o contribuinte tenha recebido a
integralidade do preço da venda que realizou, o que comprometerá a sua
disponibilidade financeira para a quitação da respectiva obrigação tributária.
Somente na hipótese
de a compra e a venda serem realizadas ambas à vista ou a prazo, e desde que
adotada simetria de regimes (de caixa ou de competência), para lançamento de
créditos e débitos, haverá, em tese, neutralidade.
No entanto, a
redação atual do PLP 68/2024 prevê a ocorrência do fato gerador no fornecimento
ou no pagamento, o que ocorrer primeiro, ao passo que adota o regime de caixa
para fins do creditamento. Temos, assim, que, nas vendas à vista de bens cujo
preço de aquisição seja pago a prazo pelo contribuinte, sempre haverá a
obrigatoriedade de pagamento do tributo (débito) em momento anterior àquele em
que o contribuinte terá direito ao crédito relativo às incidências ocorridas
nas respectivas aquisições.
Resultado semelhante
ocorrerá, se as vendas e aquisições forem feitas ambas a prazo. Nesse caso, o
sujeito passivo poderá se apropriar dos créditos somente na medida em que os
pagamentos forem efetuados, mas estará obrigado a recolher o IBS/CBS
integralmente no momento da venda, mesmo que ainda não tenha recebido o valor
correspondente à operação, o que comprometerá o fluxo de caixa da empresa, em
decorrência da redução de disponibilidade financeira causada nesse cenário.
Conclusão
Portanto, além da
ínfima aderência ao split payment no resto do mundo, seguida de
significativas desistências por parte de países que o adotaram - o que bem
demonstra o quanto a experiência internacional (tão valorizada pelos autores da
reforma) foi malsucedida na sua adoção -, há várias outras razões que apontam
para o grande equívoco que será a implementação dessa modalidade de pagamento
no Brasil.
E, mesmo que não
fosse esse o caso, ou seja, mesmo que esse sistema não contivesse em si vícios
intrínsecos incontornáveis, ainda assim, ele jamais poderia ser adotado para
todas e quaisquer operações realizadas em todos os setores da economia.
Ele teria de ser,
como no resto do mundo, restrito às operações realizadas no âmbito de setores
afeitos a práticas fraudulentas ou configuradoras de sonegação fiscal. Os
devedores contumazes, esses sim, estão acostumados com a violência própria de
um regime especial de fiscalização que os obriga a recolher o imposto em cada
operação de forma instantânea (como ocorre nos regimes especiais de
fiscalização, próprias do vigente ICMS). Os bons contribuintes, não!
[1] Argentina,
Peru, Equador, Chile, República Dominica, Polônia, República Tcheca, Holanda,
Itália, Romênia, Bulgária, Turquia e Quênia. Temos conhecimento também de que o
Reino Unido estaria realizando testes para possível implementação do split
payment.
[2] Obrzezgiewicz,
D. (2022). Split Payment Mechanism in the European Union - Comparative
Analysis. In: Procházka, D. (eds) Regulation of Finance and Accounting. ACFA
ACFA 2021 2020. Springer Proceedings in Business and Economics. Springer, Cham.
https://doi.org/10.1007/978-3-030-99873-8_12
[3] MACIEL, Ana;
TROIANI, Enrique, Minding the VAT Gap: Split Payment and RealTime Taxation
Insights from Latin America; link: https://www.vertexinc.com/sites/default/files/2018-12/Vertex_MindingtheVATGap.pdf;
acessado em 25.11.2024.
[4] https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2021/690462/IPOL_BRI(2021)690462_EN.pdf
[5] TEIXEIRA,
Alexandre Alkmim.To Split or not to Split: o split payment como mecanismo de
recolhimento de IVA e seus potenciais impactos no Brasil. Revista Direito
Tributário Atual nº 50, ano 40. São Paulo: IBDT, 2022. Pag. 31 e 32.
[6] https://taxation-customs.ec.europa.eu/system/files/2018-01/split_payment_report_execsummary_2017_en.pdf
Autor: Gustavo Brigagão. Presidente nacional do Cesa
(Centro de Estudos das Sociedades de Advogados); presidente honorário da ABDF
(Associação Brasileira de Direito Financeiro); vice-presidente do Fórum
Permanente de Direito Tributário da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro;
ex-membro do Executive Committee of The International Fiscal Association (IFA
- 2017/18); membro do conselho de administração da Câmara Britânica (Britcham);
diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE); membro do
Caeft (Conselho de Altos Estudos de Finanças e Tributação), da Associação
Comercial de São Paulo; professor da Faculdade de Direito da Universidade
Cândido Mendes (1993/2004); professor na pós-graduação de Direito Tributário da
Fundação Getulio Vargas - FGV; sócio fundador do escritório Brigagão, Duque
Estrada - Advogados.