Nos primeiros oito
meses de 2024, o estado de São Paulo depositou na conta dos municípios
paulistas mais de R$ 27,9 bilhões em recursos de ICMS.
Já no Rio de Janeiro
o destaque ficou para o aumento de 12,9% na arrecadação de ICMS, em especial
nas atividades de óleo e gás, comércio e energia elétrica. A receita com o
tributo apresentou elevação nos três primeiros bimestres de 2024 em comparação
ao mesmo período do ano passado. Por força de norma constitucional os
municípios também receberão fatia do incremento de ICMS.
Os repasses aos
municípios são liberados de acordo com os respectivos Índices de Participação
dos Municípios, conforme determina a Constituição, de 5 de outubro de 1988. Em
seu artigo 158, inciso IV está estabelecido que 25% do produto da arrecadação
de ICMS pertence aos municípios.
Esses rápidos
exemplos e números que podem ser encontrados facilmente nos sítios eletrônicos
dos Estado foram e serão fulminados com a aprovação da reforma tributária em
evidente colisão constitucional com a cláusula pétrea do pacto federativo.
Os estados membros
da Federação que fizeram seus deveres de casa e organizaram seus orçamentos nos
últimos 35 anos de vigência da Constituição Federal irão "acordar" sem suas
autonomias e, o que é pior, sem os seus números para administrar.
O problema é que de
acordo com o Supremo Tribunal Federal "a repartição de competências e de
receitas tributárias configura um dos pilares da autonomia dos entes" (STF,
RE 591.033, DJ 24/2/2011).
Ainda em controle
concentrado o Supremo decidiu que a repartição de receitas consagra a
descentralização e "divisão de centros de poder" no país (ADI 4.228, DJ
10/8/2018).
Sendo assim, por
óbvio, nem mesmo via emenda pode o Congresso relativizá-las "ou afastá-las", o
que ofenderia "o pacto federativo" e seria "tendente a aboli-lo", o que é
vedado (ADI 926, DJ 6/5/94).
Reforma suprimiu a
autonomia dos entes federativos
Competência
tributária é um conceito jurídico fundamental no Direito Tributário. Ela se
refere à capacidade conferida pela Constituição Federal a certas entidades
políticas (União, estados, Distrito Federal e municípios) para instituir
tributos. Ou seja, a competência tributária é a competência constitucional para
criar, inovar, extinguir ou modificar a lei tributária.
A competência
tributária é indelegável, o que significa que a entidade que recebeu essa
competência constitucional não pode transferi-la para outra.
Cada ente federativo
possui sua própria competência tributária e deve respeitar a autonomia dos
outros. Por exemplo, um estado não pode instituir um tributo que é de
competência municipal ou federal. Além disso, a competência tributária é
irrenunciável, ou seja, um ente não pode abdicar de sua competência para
instituir tributos.
Importante ressaltar
também a distinção entre competência tributária e capacidade tributária ativa.
Enquanto a primeira é a possibilidade de instituir tributos, a segunda é a
aptidão para ser sujeito ativo da obrigação tributária, ou seja, para exigir o
cumprimento da obrigação tributária, proceder à sua fiscalização e arrecadação.
Assim, fica claro
que a competência tributária, oriunda da Constituição Federal, é o poder de
instituir, mediante lei formal do próprio ente federado, tributos para sustento
e autonomia do ente federado e isso é inegociável e irrenunciável.
E aqui me pareceu
muito claro que a reforma tributária suprimiu e esvaziou a autonomia dos entes
federativos. Ora, se o ente federativo não tiver poder para instituir tributos
e nem autonomia para gerir suas receitas, provenientes de arrecadação, não
podemos falar que resta preenchido um dos alicerces da federação, que é a
autonomia dos entes federativos.
A lealdade
federativa é o princípio constitucional implícito ou não escrito que impõe aos
entes federados o dever de proceder com lealdade nas suas relações recíprocas,
buscando o entendimento mútuo na execução de suas tarefas e orientando-se pela
coordenação e cooperação. (STF, relator: Gilmar Mendes na ADI 6.341/DF MC Ref,
relator para o acórdão: ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. em 15/4/2020;
ADI nº 5.166/SP, rel. min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. em 4/11/2020; ADPF
848 MC-Ref, rel. min Rosa Weber, Tribunal Pleno, j. em 28/6/2021.
Sua função é
vincular os entes federados aos interesses dos demais e ao interesse comum de
todos quando do exercício de seus direitos e deveres, com o intuito de proteger
e fortalecer o pacto federativo. Sua aplicação deve combater o uso
excessivamente egoísta das competências constitucionais e os tensionamentos
excessivos que tendam à dissolução da ordem federal global.
Isso tudo foi
desprezado por absoluta deslealdade federativa quando se excluiu simplesmente
os impostos mais importantes (ICMS e ISS) dos estados e municípios tolhendo de
morte suas competências tributárias e autonomia administrativa e financeira.
O professor Fábio
Calcini rememora que "o texto constitucional, portanto, impede mesmo por
meio do poder de reforma da Constituição, único que tem por competência
alterá-la, qualquer tipo de pretensão que possa ter a tendência de abolir
direitos e garantias fundamentais (.) A vedação, assim, não é da abolição dos
direitos e garantias, mas de qualquer medida que possa restringir, diminuir sua
importância, interpretação ou aplicação. Equivale dizer, qualquer tendência ou
comportamento que possa levar, de forma indireta ou direta, mesmo que
sutilmente e ao longo do tempo, para este caminho, pois, quando se conduz desta
forma, nada mais temos do que uma tendência de abolição".
Nada simplificou,
nada desburocratizou, nada se aproximou dos países primeiro mundo porque
criamos mais exceções do que a própria regra.
Agora é aguardar e
confiar no Supremo Tribunal Federal, de novo.
Autor: Breno de Paula. Advogado tributarista, doutor e
mestre em Direito Uerj, especialista em Política e Direito Tributário Fundação
Getúlio Vargas-Brasília e professor de Direito Tributário Universidade Federal
de Rondônia.