Em 2023, o Brasil
registrou 71,2 mil escrituras públicas de doação de imóveis em 2023, quase 10
mil a mais do que no anterior, segundo dados do Colégio Notarial do Brasil. A
busca pela doação em vida, medida prevista no artigo 2.005 do Código Civil,
ganhou destaque com a discussão no Congresso Nacional sobre mudanças na
alíquota do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação, em discussão na
reforma tributária.
Porém, a doação em
vida possui outros impactos tributários além do ITCMD, como a possibilidade de
cobrança do Imposto de Renda da Pessoa Física, tema analisado recentemente pelo
Supremo Tribunal Federal. Para compreender os aspectos tributários da medida, é
necessário entender o que é o adiantamento de herança.
Conforme o Código
Civil, no artigo 2.005, as doações feitas em vida, em favor de herdeiros, podem
ser consideradas como adiantamento da parte que corresponderá à herança. Isso
significa que o valor da doação antecipada será descontado da parte da herança
que o doador deixaria ao herdeiro, de modo que o valor doado será deduzido da
herança que o herdeiro irá receber.
Importante destacar,
de início, que a doação é o ato de transferir algo que você possui para outra
pessoa de forma voluntária, sem esperar nada em troca. Quando se trata de
doação, o mais comum é pensar em bens materiais, como dinheiro, imóveis ou
objetos, mas uma doação também pode ser feita de outros tipos de valores, como
direitos ou ações.
Quando alguém decide
doar algo em vida (antes de morrer), essa doação pode ter um grande impacto no
futuro. Muitas pessoas fazem doações em vida para aliviar o processo de
sucessão (distribuição dos bens após a morte) ou para ajudar familiares
enquanto ainda estão vivos. Por exemplo, um pai pode doar parte de sua casa
para um filho enquanto ainda é vivo, ou uma pessoa pode doar dinheiro para um
amigo ou familiar em necessidade.
Assim, a depender do
caso concreto, a doação pode estar diretamente ligada à herança. Normalmente,
quando alguém morre, seus bens (o patrimônio) são divididos entre os herdeiros,
conforme estabelecido por lei ou conforme o desejo da pessoa, expresso em um
testamento.
Porém, a doação em
vida para um herdeiro pode ser considerada um tipo de "adiantamento" dessa
herança. Isso significa que a doação feita em vida será descontada da parte da
herança que esse herdeiro receberia. Ou seja, se você já recebeu parte dos bens
da pessoa enquanto ela estava viva, o valor que você recebeu pode ser subtraído
do que você herdaria quando ela falecer.
Dessa forma, o
adiantamento de herança é uma prática jurídica que ocorre quando um doador
decide transferir parte de seus bens ou direitos para os herdeiros ainda em
vida, com o objetivo de antecipar a futura herança. Esse tipo de doação é uma
maneira de evitar conflitos futuros entre os sucessores e proporcionar uma
distribuição mais equitativa do patrimônio do falecido.
A doação em vida,
quando tratada como adiantamento de herança, pode gerar obrigações fiscais para
o doador, especialmente no que tange ao Imposto de Renda (IR), conforme será
exposto a seguir.
Implicações no
imposto de renda do doador
O IR incide sobre o
acréscimo patrimonial - juridicamente qualificado como "aquisição de
disponibilidade jurídica ou econômica" (artigo 43 do Código Tributário
Nacional) experimentada em um determinado período. A hipótese de incidência do
referido imposto nasce, então, de eventos que incrementam a capacidade
econômica do contribuinte.
Dentre eles, a
alienação de bens imóveis por valores superiores à aquisição, o chamado "ganho
de capital". Essa modalidade de incidência do IRPF pressupõe uma valorização do
bem que, quando vendido a preço de mercado, gerará mais valia ao
alienante.
A discussão, que não
é recente, sobre a possibilidade de cobrança do Imposto de Renda da Pessoa
Física no adiantamento da herança perpassa justamente pela aferição de
existência acréscimo patrimonial pelo doador, na modalidade ganho de capital,
no contexto da entrega da legítima em vida (doação).
A justificava da
cobrança do IRPF na antecipação da legítima encontra-se em alguns dispositivos
legais, entre eles, o artigo 3º, § 3º da Lei 7.713/88, bem como §1º e §2º,
inciso II, do artigo 23 da Lei 9.532/97. Todos eles, autorizam a cobrança do
IRPF nos casos de doação, inclusive a hipótese de antecipação de quinhão da
herança.
Essa hipótese de
cobrança do IRPF, defendida pela Receita Federal, ocorre nos casos em que o
dono da herança (doador) doa o imóvel a valor de mercado, que seja em patamar
superior ao valor declarado na sua última Declaração de Ajuste Anual. Ou seja,
no momento da doação, o valor do imóvel é atualizado e parametrizado ao valor
de mercado.
Para a Receita, o
fato de ser feita a atualização do valor do imóvel no momento da transferência,
seja ela onerosa ou gratuita, é suficiente para configurar-se o ganho de
capital. Neste sentido, leia-se parte da ementa da Solução de Consulta Cosit nº
66, de 23 de junho de 2020:
"Na transferência de
direito de propriedade por doação em adiantamento de legítima, os bens e
direitos poderão ser avaliados a valor de mercado ou considerados pelo valor
constante na declaração de bens do doador.
O valor relativo à
opção por qualquer dos referidos critérios de avaliação independe do valor
atribuído em avaliação adotada para efeito do pagamento do imposto estadual de
transmissão.
Se a transferência for efetuada por valor superior ao constante na declaração
de bens do doador, a diferença a maior constitui ganho de capital sujeito a
tributação definitiva. No entanto, o percentual fixo de redução, previsto
legalmente, pode ser aplicado sobre o ganho de capital apurado."
Referido
posicionamento fiscal, calcado nos dispositivos mencionados, foi objeto de
batalhas judiciais. Recentemente, a 1ª Turma do STF, no julgamento do Recurso
Extraordinário 1.439.539, exarou entendimento no sentido de afastar da
incidência do IRPF destes casos.
De acordo com o voto
do relator, ministro Flávio Dino, o doador que antecipa sua herança não experimenta
nenhum acréscimo patrimonial. A natureza da operação é gratuita, de forma que,
como destacado no voto vogal e convergente do ministro Alexandre de Moraes, o
doador não só não obtém acréscimo patrimonial, como diminui seu patrimônio -
desfazendo-se de seu bem.
Além disso,
extrai-se dos votos que legitimar a cobrança do IRPF sobre o "ganho de capital"
na doação representaria bitributação, pois o aumento patrimonial oriundo da
doação já é tributado pelos estados, através do ITCMD.
A Turma, desta forma,
reconheceu a inconstitucionalidade dos aludidos dispositivos legais (e outras
normas infralegais que os regulamentam). Fortaleceu-se, assim, uma tendência
que havia na Corte pelo afastamento da incidência do IRPF nos casos de
antecipação da legítima.
Autores:
Giovanna Spatti Rossagnesi, é advogada do escritório
Granito Boneli Advogados, especialista em Direito Contratual pela Faculdade
Cers e pós-graduanda em Direito Corporativo e Compliance pela Escola Paulista
de Direito.
Pedro Ceglio, é advogado do Granito Boneli Advogados e
pós-graduado em Direito Tributário pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
(Campus Campinas).