A EC 132/2023, além
da reformulação completa dos tributos incidentes sobre o consumo, incluiu novos
princípios tributários na CF/88, a saber: simplicidade, transparência, justiça
tributária, cooperação e defesa do meio ambiente (artigo 145, § 3º). O
parágrafo 4º do mesmo dispositivo prevê que "as alterações na legislação
tributária buscarão atenuar efeitos regressivos" e edifica uma espécie de
princípio da não regressividade no sistema tributário nacional, que será
fundamental no direcionamento de criação de novas regras tributárias.
Esse dispositivo
densifica o princípio da justiça tributária [1],
sendo uma grande inovação trazida pela EC 132 ao sistema tributário nacional, por
ser cláusula voltada à proteção dos consumidores finais pertencentes às camadas
menos favorecidas financeiramente da população. Trata-se de princípio que
deverá ser aplicado a todos os tributos que, direta ou indiretamente,
influenciem na formação de preços ao consumidor final [2].
Nesse cenário, temos
a figura do cashback, termo que vem do inglês e cuja tradução literal
significa "dinheiro de volta". É um mecanismo de reembolso onde uma porcentagem
do imposto pago em compras é devolvida ao consumidor.
A proposta de
reforma tributária, consolidada pela EC 132/2023 e detalhada na LC 214/2025,
incorpora o cashback como um mecanismo para devolver parte dos
tributos sobre o consumo às famílias de baixa renda. Essa possibilidade foi
prevista pelo artigo 156-A da CF/88, com as alterações introduzidas pelo art.
1º da EC 132:
"Art. 156-A. Lei
complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
(.)
§5º Lei complementar
disporá sobre:
(.)
VIII - hipóteses de
devolução do imposto a pessoas físicas, inclusive os limites e os
beneficiários, com o objetivo de reduzir as desigualdades de renda";
E o § 13 deste mesmo
artigo torna obrigatória a devolução "nas operações de fornecimento de
energia elétrica e de gás liquefeito de petróleo ao consumidor de baixa renda,
podendo a lei complementar determinar que seja calculada e concedida no momento
da cobrança da operação".
O cashback também
está previsto para a CBS (artigo 195, § 18, da Constituição).
Essas inovações,
embora ancoradas em objetivos de justiça fiscal, levantam questões cruciais
sobre sua implementação, eficácia e alinhamento com as metas de simplificação
tributária estipuladas na própria EC 132.
Abordagem mitiga a
regressividade
O cashback, de
acordo com a previsão da LC 214/2025, consiste na devolução parcial do CBS e
IBS para famílias cadastradas no CadÚnico, nos termos definidos pelos artigos
112 e 113 da referida lei complementar:
"Art. 112. Serão
devolvidos, nos termos e limites previstos neste Capítulo, para pessoas físicas
que forem integrantes de famílias de baixa renda:
I - a CBS, pela
União; e
II - o IBS, pelos
Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios.
Art. 113. O destinatário das devoluções previstas neste Capítulo será aquele
responsável por unidade familiar de família de baixa renda cadastrada no
Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), conforme
o art. 6º-F da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, ou por norma
equivalente que a suceder, e que observar, cumulativamente, os seguintes
requisitos:
I - possuir renda
familiar mensal per capita de até meio salário-mínimo nacional;
II - ser residente no território nacional; e
III - possuir
inscrição em situação regular no CPF.
§1º O destinatário
será incluído de forma automática na sistemática de devoluções, podendo, a
qualquer tempo, solicitar a sua exclusão.
§2º Os dados
pessoais coletados na sistemática das devoluções serão tratados na forma
da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de
Dados Pessoais), e do art. 198 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de
1966 (Código Tributário Nacional), e somente poderão ser utilizados ou
cedidos a órgãos da administração pública ou, de maneira anonimizada, a
institutos de pesquisa para a execução de ações relacionadas às devoluções".
Partindo do
princípio de que a reforma tributária, em seu novo modelo, busca a
simplificação e unificação da tributação sobre o consumo, sendo essa de grande
importância para a arrecadação, a tendência é que as pessoas de baixa renda
destinem uma parte considerável de seus recursos para essa área. Por isso, a
importância da implementação de benefícios, como o cashback e a
isenção de impostos sobre a cesta básica, direcionada aos grupos socialmente
vulneráveis.
A LC 214/2025, do
artigo 114 ao 118, traz os comandos normativos e institucionais da "Devolução
Personalizada do IBS e CBS (cashback)", bem como as alíquotas passíveis de
devolução. A CBS, de competência da União, será gerida pela Receita Federal,
enquanto o IBS, de competência dos estados e municípios, será gerido pelo
Comitê Gestor do IBS. É previsto que o repasse do valor às famílias ocorra em
até dez dias após a apuração do agente financeiro, que tem prazo máximo de 15
dias para análise.
Tratando-se das
alíquotas, o artigo 118 da LC 214/2025 determina os seguintes percentuais de
devolução:
Permite-se, também,
de acordo com o § 1º do artigo 118, que a União, os estados, o Distrito Federal
e os municípios, através de lei específica, fixem percentuais diferentes dos
previstos, em razão de outros critérios a serem definidos.
Na prática, a
proposta brasileira prevê uma devolução retroativa, operacionalizada através de
plataformas digitais, com base no uso de notas fiscais registradas [3].
Essa abordagem,
inspirada por experiências internacionais, apresenta vantagens importantes,
como a promoção da cidadania fiscal ao incentivar o consumidor a solicitar a
emissão de notas fiscais, contribuindo para a formalização do mercado e
fortalecendo a arrecadação tributária futura [4].
Além disso, mitiga a
regressividade tributária, devolvendo parte da carga tributária desproporcional
que recai sobre as famílias de baixa renda, que comprometem grande parte de
seus rendimentos com consumo essencial.
Isso porque, essa
devolução personalizada não se concentra no produto ou serviço consumido, mas
na condição econômica do consumidor, com foco na capacidade contributiva. Essa
abordagem personalista contrasta com regimes genéricos de isenção (desoneração)
e busca alcançar diretamente os mais necessitados, como medida para reduzir a
regressividade do sistema tributário brasileiro.
Adicionalmente, ao
privilegiar a devolução em itens essenciais, como alimentação, gás de cozinha,
água e energia elétrica, o cashback aproxima-se de uma política
fiscal orientada à dignidade da pessoa humana, tal como exige o art. 1º, III,
da Constituição Federal de 1988.
Apesar das intenções
louváveis, o cashback enfrenta desafios relevantes em sua
implementação. A começar pela necessidade de identificação precisa dos
beneficiários, exigindo o cruzamento de dados fiscais com cadastros sociais, o
que demanda investimentos tecnológicos robustos e integração entre esferas
administrativas [5]. Isso pode elevar os custos
administrativos e criar potenciais gargalos operacionais, dificultando a
execução eficiente do programa [6].
Outro ponto crítico
reside no fato de que, ainda hoje, é sabido que milhões de brasileiros não
possuem acesso regular à internet ou a ferramentas bancárias digitais, o que
pode restringir severamente o alcance do benefício. Esse fator é
particularmente problemático para um mecanismo voltado à população mais
vulnerável, que enfrenta barreiras estruturais de acesso à tecnologia e
serviços financeiros.
Os pequenos
comércios informais, mais utilizados pela população de baixa renda, raramente
emitem documentos eletrônicos. Isso também dificulta a detecção de fraudes e
provoca distorções no sistema de devolução.
Além disso, chamam a
atenção também os baixos percentuais mínimos de devolução, bem como o universo
bastante restrito de consumidores que farão jus ao benefício. Embora se trate
de camada mais carente da população brasileira (famílias cadastradas no
CadÚnico), fato é que existem outras faixas de renda que, ainda que superiores,
também careceriam de algum nível de devolução de tributos, de modo a conferir
maior eficácia aos novos princípios constitucionais de justiça e combate à
regressividade.
Viabilidade
Como não poderia
deixar de ser, a proposta enfrenta críticas que questionam a sua efetividade
como mecanismo de justiça fiscal. Fernando Facury Scaff argumenta que o
sistema, ao invés de ser uma devolução real do imposto pago, assemelha-se mais
a um programa de auxílio social, similar ao Bolsa Família. Para Scaff, a
vinculação do cashback ao CadÚnico como critério de elegibilidade
gera um sistema de auxílio sem critérios rigorosos, desvirtuando o objetivo
inicial de devolução do imposto pago no consumo [7].
Críticas à parte, as
quais somente serão respondidas com a implementação e a vivência do programa, a
viabilidade do cashback dependerá diretamente da forma como os entes
federativos regulamentarem a política de devolução e da capacidade do sistema
fiscal de garantir a efetividade das devoluções. A LC 214/2025 estabelece os
contornos gerais, mas será na legislação infralegal que se consolidarão os
critérios técnicos e operacionais.
Recomenda-se,
portanto, que as normas complementares priorizem a simplicidade, a
transparência e a automatização, evitando-se excessiva burocracia. O uso de
tecnologias como blockchain e inteligência artificial pode ser aliado
estratégico na verificação de consumo e elegibilidade, desde que acompanhados
de salvaguardas à privacidade (o que já está positivado no § 2º do art. 113 da
LC 215/2024).
Em nossa opinião,
tendo em vista que a finalidade constitucional do cashback é a
redução de desigualdades de renda, o aumento dos beneficiários elegíveis para o
programa deveria ser uma preocupação importante do legislador complementar.
Isso porque, embora as famílias cadastradas no CadÚnico representem a camada
mais carente da população brasileira, já foi dito que existem outras faixas de
renda que também careceriam de algum nível de devolução de tributos, de modo a
conferir maior eficácia aos novos princípios constitucionais de justiça e
combate à regressividade.
Como exemplo, temos
as pessoas com renda entre 2 e 5 salários-mínimos e que poderão ter um aumento
significativo de carga tributária nos bens e serviços consumidos em decorrência
da reforma tributária. Não seria justo devolver também para essas pessoas parte
do imposto pago?
Outra sugestão
seria, além de preservar o modelo atualmente existente (devolução às famílias
cadastradas no CadÚnico), graduar a alíquota de devolução do tributo conforme a
essencialidade do bem ou serviço (e.g., alíquotas reduzidas para alimentos,
remédios, assistência médica, educação e transporte), aumentando os
beneficiados do programa com a utilização de outros parâmetros (como, por
exemplo, beneficiários de planos de assistência médica com renda entre 2 e 5
salários-mínimos).
Essas sugestões de
melhora do programa, além de muitas outras já aventadas, são passíveis de
implementação até em virtude da previsão de avaliação quinquenal do programa
constante do art. 475, II, da LC 214/2025.
O cashback,
como previsto na LC 215/2024, representa uma inovação relevante no sistema
fiscal brasileiro. Alinhado a princípios de justiça social e eficiência
econômica, o mecanismo pode, se bem estruturado, cumprir importante papel
redistributivo. Contudo, sua eficácia está condicionada à superação de obstáculos
operacionais e à coordenação federativa. É necessário evitar que uma boa ideia
acabe, na prática, se tornando mais um elemento de complexidade no já intricado
sistema tributário nacional.
[1] Nesse
sentido, GRECO, Marco Aurelio; ROCHA, Sérgio André. In "Vetores do Sistema
Tributário Nacional após a EC n. 132". Revista Direito Tributário Atual 56, 1º
quadrimestre de 2024, p. 770. Aqui.
[2] Barros.
Maurício. "IBS NOS SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES: OS AVANÇOS DA REFORMA NA
TRIBUTAÇÃO SUBNACIONAL INDIRETA". In SANTI, Eurico Marcos Diniz de, et al.
Nossa reforma tributária: análise da EC 132/23, do PLP 68/2024 (CBS/IBS) e do
PLP 108/2024 (Comitê Gestor, contencioso do IBS, ITCMD e ITBI) - São Paulo:
Editora Max Limonad, 2024. p. 217.
[3] Nos termos
do art. 117 da LC 214/2025, temos que as devoluções serão calculadas mediante
aplicação de percentual sobre o valor do tributo relativo ao consumo, formalizado
por meio da emissão de documentos fiscais.
[4] Há autores
que defendem o cashback como medida que inibe a informalidade nas
atividades econômicas, a sonegação fiscal e a concorrência desleal. ALEXANDRE,
Ricardo. ARRUDA, Tatiane Costa. Reforma Tributária. EC 132/2023 e LC 214/2025.
A Nova Tributação do Consumo no Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Editora JusPodivm,
2025. Pg. 158.
[5] Everardo
Maciel aponta que a descentralização administrativa tributária no Brasil
historicamente enfrenta desafios de coordenação. In MACIEL, Everardo.
Reforma Tributária e Federalismos Fiscal. Revista Brasileira de Tributação,
2023, p. 45.
[6] Tanto é
assim, que o art. 119 da LC 214/2025 prevê que, excepcionalmente, nas
localidades com dificuldades operacionais que comprometam a eficácia da
devolução do tributo na forma do art. 117 da Lei Complementar, poderão ser
adotados procedimentos simplificados para cálculo das devoluções.
[7] SCAFF,
Fernando Facury. O cash back da reforma tributária será um novo Bolsa Família.
Consultor Jurídico, 14 de março de 2023. Disponível aqui.
Nota M&M: Saiba mais sobre a Reforma Tributária,
acessando mais artigos e matérias sobre o tema, clicando em https://www.mmcontabilidade.com.br/Materia.aspx?id=23939
Autor: Luiz Carlos Fróes Del Fiorentino. É mestre em
Direito Econômico e Financeiro pela USP, bacharel em Direito pela Faculdade de
Direito da USP e advogado no Dias de Souza Advogados Associados.