Abordar a questão sobre quais integrantes
de uma organização empresarial podem ser impactados pela utilização do
instrumento de desconsideração da personalidade jurídica quando se trata de
responsabilização, torna-se uma tarefa de intricada complexidade. Tal mister
requer a leitura e a aplicação de vários princípios jurídicos, frequentemente
entrelaçados de maneira multifacetada.
Um elemento primordial para a compreensão
deste assunto reside no conceito de "abuso da personalidade
jurídica", tal qual referido no espectro do Código Civil. Este conceito
abrange a exploração inadequada da estrutura corporativa com a finalidade de
obter vantagens ilícitas ou causar prejuízos a terceiros. Práticas comuns
englobam fraudes, desvio de finalidade, confusão patrimonial e situações em que
a empresa serve como um manto para ocultar ou facilitar ações ilegais [1].
Destarte, nos contextos em que se aplica
normativas de atribuição de deveres ou responsabilidades aos sócios e gestores,
ocorre uma "relação
jurídica material do sócio com o credor". Quanto à
desconsideração para fins de responsabilização, há necessidade de inadimplemento
de uma obrigação da sociedade e a fundamentação para responsabilizar o sócio
é "a relação
jurídica do sócio com a sociedade devedora" (CHAMBERLAIN,
2021) [2].
No âmbito do direito privado, existem duas
variantes principais de desconsideração, fundamentadas nos critérios para sua
aplicação: a Teoria Maior e a Teoria Menor. O artigo 50 do Código Civil
estabelece o abuso da figura jurídica como requisito para a desconsideração
(Teoria Maior). Já o artigo 28, caput, do Código de Defesa do Consumidor [3] lista diversas condições, que não se confundem com
abuso da personalidade jurídica, como pressupostos suficientes para a
desconsideração, como, por exemplo, a prática de atos ultra vires [4]. Além disso, a interpretação jurisprudencial do
parágrafo 5º [5] tem indicado a possibilidade
de desconsideração da personalidade jurídica para responsabilização dos sócios,
sem a necessidade de demonstração de abuso da personalidade jurídica; basta a
insolvência da sociedade (Teoria Menor).
Desse modo, uma vez deslindados o conceito
do instituto da desconsideração da personalidade jurídica e suas modalidades,
centraremos a análise no cerne deste artigo, que é a existência do "sócio
de boa-fé" nesse fenômeno.
Outrossim, o artigo 50 do Código Civil
postula que a desconsideração da personalidade jurídica deve ser implementada
de maneira excepcional, visando a proteção dos direitos de terceiros
prejudicados por tais abusos [6], conforme discorre
Liebman, ao afirmar que a fraude à execução busca repelir o "intuito de
prejudicar credores" (LIEBMAN, 2001, p. 134) [7].
Portanto, sob uma análise macroscópica, os
sócios que não participaram ou não se beneficiaram do abuso da personalidade
jurídica não deveriam ser impactados pela desconsideração.
Todavia, a definição de responsabilidade
não se revela tão clara na prática jurídica. Não existe consenso doutrinário ou
jurisprudencial acerca dos critérios exatos que devem ser utilizados para
determinar quais sócios podem ser responsabilizados. Tal decisão ficará a cargo
do julgador, que, com base nos elementos factuais de cada caso e em princípios
jurídicos como o da proporcionalidade, equidade, boa-fé, entre outros, definirá
a responsabilidade.
Porém, é crucial salientar que, com a
promulgação da Lei da Liberdade Econômica [8],
foram estipulados alguns critérios para a aplicação da desconsideração da
personalidade jurídica, como a demonstração de desvio de finalidade e confusão
patrimonial [9]. Tais medidas tendem a resguardar
os sócios que, agindo de boa-fé, não participaram do abuso.
Na desconsideração para fins de
responsabilização, a boa-fé será o critério norteador para identificar o abuso
da personalidade (requisito para configuração da fraude) e, após o
reconhecimento da conduta fraudulenta por meio da personalidade jurídica,
servirá como referência para determinar os sócios sujeitos à proteção judicial
(efeitos subjetivos da desconsideração).
De maneira sucinta, em alguns casos de
abuso da personalidade jurídica, será possível identificar a figura do sócio de
boa-fé. Assim como o adquirente de boa-fé [10], o
sócio não terá seu patrimônio impactado pelas atividades executivas, mesmo que
o órgão judicial reconheça a ocorrência da fraude patrimonial no caso
específico. Há situações, por exemplo, em que não se espera a mesma conduta de
todos os sócios, pois existe o sócio minoritário - aquele desprovido do
poder de controle - que não participa da administração, não tem poder de
influência e que não se beneficiou diretamente e nem tem ciência da natureza fraudulenta
da atividade ou atos societários. Entretanto, pode também ocorrer a situação
contrária - o sócio que, independente do poder de controle e de ser
minoritário ou majoritário, tem conhecimento e/ou participa da atividade
fraudulenta ou se beneficia diretamente dela - não haverá dúvida quanto a
sua sujeição à desconsideração da personalidade jurídica.
Se a desconsideração é um fenômeno
extremamente amplo, o critério para identificar seus limites subjetivos não
poderia ser outro senão o princípio da boa-fé objetiva, uma ferramenta
suficiente para orientar a justiça nos problemas jurídicos mais complexos e
variados. De fato, a utilização da boa-fé - conceito jurídico aberto e
indeterminado - permite ao juiz, diante da pluralidade de hipóteses e
circunstâncias da fraude perpetrada por meio da personalidade jurídica, buscar
a justiça do caso concreto (JUNIOR, 2011, p.49) [11].
Portanto, percebemos que o princípio da
boa-fé objetiva é a pedra de toque do problema discutido, servindo como base
para o desenvolvimento da própria teoria da fraude (LIMA, 1965, p.10-11) [12] e da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica (CORDEIRO, 2000, p. 152-154) [13].
Contudo, é importante frisar que a
desconsideração da personalidade jurídica não tem como objetivo punir quem
pratica esses atos de abuso da personalidade jurídica. Inclusive, quando esses
atos abusivos não causam prejuízos a terceiros, eles são irrelevantes. É
possível que uma pessoa jurídica exista durante toda a sua vida praticando atos
de confusão patrimonial, mas se não houver prejuízo aos credores, não há razão
para que seja instaurado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica
(CASTRO, 2019, p. 96) [14].
Dessa forma, apesar da inexistência de uma
regra definitiva, a tendência é que a desconsideração da personalidade jurídica
seja aplicada de maneira restrita, afetando apenas os sócios que efetivamente
participaram ou se beneficiaram do abuso da personalidade jurídica, protegendo
aqueles que, comprovadamente, agiram de boa-fé.
Referências
LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de
execução. Araras: Bestbook, 2001. p. 134
CORDEIRO, António Menezes. Da boa fé no
direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2017. p. 503.
AMADEO, Rodolfo da Costa Manso Real. A
relevância do elemento subjetivo na fraude de execução. 2010. Tese (Doutorado
em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2010. p. 139-140
VILLELA, João Baptista. Apontamentos sobre
a cláusula "...
ou devia saber". Revista Brasileira de Estudos Políticos,
v. 97, p. 182, jan./jun. 2008.
Autor: Italo Matheus
Azevedo Lima. Advogado e mestrando em Direito pela Universidade Europea del
Atlântico na Espanha.
Fonte: Revista Consultor Jurídico